17 de novembro de 2007

Briga de família

O assunto de que vou tratar hoje é um tanto complicado pela multiplicidade de seus aspectos. Quem já conversou comigo a respeito sabe que sou um dos protestantes menos anticatólicos que existem. Pretendo agora explicar 1. o que quero dizer precisamente com isso, 2. como vim a adotar essa posição, 3. por que acho que devo permanecer nela, 4. por que acho que seria bom se mais protestantes concordassem comigo, 5. as razões pelas quais acredito que isso não ocorre e 6. quais as conseqüências que isso pode trazer para o corpo de Cristo; não necessariamente nessa ordem, é claro. Farei apenas algumas considerações avulsas, em parte teóricas e em parte autobiográficas, na esperança de lançar alguma luz sobre o tema. Sendo este, aliás, um terreno bastante escorregadio, farei um esforço para não me desviar demais dele, deixando para ocasiões futuras o aprofundamento de certos pontos que porventura pareçam importantes.

Antes de começar, porém, creio que convém fazer dois importantes esclarecimentos, a fim de evitar interpretações equivocadas sobre minhas intenções em relação a este texto. O primeiro é que, embora o próprio objetivo a que me proponho me leve naturalmente a enfatizar os pontos de acordo, isso não significa que não haja de minha parte desacordos razoavelmente severos com relação à Igreja Católica, tanto em sua teologia quanto em certas atitudes dela, ou de parte dela, frente a certos acontecimentos. Minhas objeções ao catolicismo são basicamente todas as que podem existir da parte de um protestante razoavelmente bem informado, e isso é o máximo que posso ter a pretensão de ser. Apenas acho que, numa escala puramente relativa, as posições que temos em comum são mais importantes que aquelas nas quais discordamos. Conseqüentemente (e essa é a minha segunda observação preventiva), a despeito das minhas simpatias pelo catolicismo, sou contrário a qualquer ecumenismo, especialmente se ele envolve alguma tentativa de unificação administrativa ou mesmo litúrgica. Não creio que haja, de nenhum dos dois lados, maturidade suficiente para que a concretização dessa hipótese possa trazer algum bem. Sou favorável ao diálogo amistoso (ou mesmo à briga amistosa), ao esforço sincero de compreensão mútua e à aliança em defesa de interesses comuns, mas podemos perfeitamente fazer tudo isso fora dos horários das missas e cultos.

Nem sempre pensei assim, naturalmente. As razões que me levaram a isso foram surgindo tão discreta e gradualmente que seu efeito se acumulou de maneira quase imperceptível ao longo dos anos. Não, é claro, que eu tenha alguma vez me sentido inclinado a pensamentos, atos ou sentimentos rancorosos. Isso jamais ocorreu, nem encontrei qualquer incentivo nesse sentido por parte da minha família ou da minha igreja. Mas, aos seis anos de idade, a única conclusão a que pude chegar a partir do que me foi ensinado foi a de que a humanidade dividia-se nitidamente em dois grupos: os membros das igrejas genuinamente cristãs, que iam para o céu, e os demais, que iam para o inferno. O critério em questão era, evidentemente, a ortodoxia teológica. É claro que não era necessário ser presbiteriano para ser salvo. Era possível sê-lo mesmo não batizando as crianças ou não crendo na predestinação. Mas os limites do admissível não iam muito além disso.

Embora essa concepção possuísse um horizonte nitidamente estreito, como não poderia deixar de ser vindo de uma criança, ela já continha em si o germe do seu futuro crescimento: a percepção de que ao menos alguma pluralidade de idéias e de instituições era possível dentro do cristianismo autêntico. Já no fim da adolescência, estudando história, descobri que a doutrina não nasceu pronta, e que a formulação de muitos pontos dela foi fruto de intensos debates, em boa parte dos quais não havia razão para duvidar que ambos os lados eram defendidos por cristãos sinceros e piedosos. Mesmo com relação à Reforma e todos os debates e contendas que se produziram em torno dela, logo vi que era ingênua demais a suposição de que um lado contava com todos os cristãos sinceros, inteligentes e bem intencionados e o outro com todos os hipócritas, estúpidos e egocêntricos. E, estudando melhor a história dessas controvérsias, bem como o pensamento católico em geral, logo fui obrigado a abandonar também a noção de que todos os clérigos que permaneceram fiéis ao Papado o fizeram apenas por ignorância, comodismo ou covardia, muito embora esse reconhecimento não tenha me levado a concordar com eles.

Na verdade, a presença contínua do corpo de Cristo, a Igreja invisível, neste mundo, desde a ascensão do Senhor até seu futuro retorno, é um ponto explícito na teologia protestante. Isso bastaria para concluir, diante da inexistência de protestantes até o século XVI, que provavelmente houve ao longo da história muitos nestorianos, ortodoxos e católicos romanos que desfrutaram de uma real comunhão com Deus. E se tais existiam até meio milênio atrás, não há razão para que não possam continuar existindo, já que o conteúdo doutrinário dessas igrejas permanece essencialmente o mesmo. Mas só percebi isso bem depois de ter constatado o óbvio, ainda no começo da minha adolescência: a existência de pessoas com concepções teológicas impecáveis que, não obstante, estavam muito longe de conhecer e viver de fato aquilo que pregavam. Tendo notado que a correlação entre ortodoxia e proximidade em relação a Deus, num sentido mais amplo, não era tão alta quanto eu supunha, pude finalmente deduzir que, se há tantas pessoas com idéias corretas e vidas erradas, é bem possível que haja também pessoas com idéias erradas e vidas corretas, ou seja, atitudes corretas diante de Deus, embora acompanhadas de algumas noções equivocadas a respeito dele, noções essas que ele próprio, por alguma razão qualquer, não julgou necessário corrigir, ao menos de imediato.

Mas essa conclusão é justamente o passo que muitos protestantes não ousam dar, e que no meu próprio caso levou muito mais tempo do que seria necessário. Só pude dá-lo depois que tomei contato com alguns grandes escritores e intelectuais católicos, cuja sabedoria me fez parecer mais fácil duvidar da presença de Deus na minha própria vida do que na deles. E não me refiro apenas aos antigos, mas também aos modernos. Hoje, tendo conhecido J. R. R. Tolkien, G. K. Chesterton, Peter Kreeft, Auguste Etcheverry, Gustavo Corção e Olavo de Carvalho, para mencionar apenas alguns exemplos, sou forçado pelos fatos a reconhecer que há, sim, cristianismo verdadeiro e sabedoria espiritual genuína, enfim, que Cristo está presente também dentro da Igreja Católica, e que seu alcance é muito maior do que eu supunha na infância. Neles, e em vários outros, reconheci membros antes ignorados do mesmo corpo a que também pertenço.

Nesse quadro todo também contribuiu um elemento psicológico que não deve ser desprezado, pois também é responsável em parte pelo atual estado de incompreensão entre protestantes e católicos. Quando eu era criança, as diferenças entre as duas partes pareciam constituir um abismo intransponível pelo simples fato de que abarcavam praticamente toda a diversidade de idéias que eu então conhecia. Entretanto, depois de ter conhecido não só algumas seitas pseudocristãs, mas também o espiritismo, o judaísmo, o islamismo, o hinduísmo, o budismo, o taoísmo e, principalmente, o agnosticismo e o ateísmo, quando voltei minha atenção novamente para o catolicismo, ele pareceu muito menos monstruoso do que parecia quando eu era criança. Isso se fez sentir tanto nos meus estudos filosóficos e teológicos pessoais quanto na minha vida pública, em especial depois que cheguei à universidade. Ali, a profusão de idéias tolas e doutrinas insensatas era tanta que eu não pude jamais deixar de me sentir satisfeito quando encontrava um católico praticante e sincero.

Eu disse que esse efeito é psicológico, mas obviamente há nele um elemento objetivo, pois é um reflexo direto do fato de que, por mais que as desavenças entre protestantes e católicos possam ser importantes em si mesmas, são relativamente insignificantes dentro do quadro geral das idéias em conflito no mundo de hoje. Creio que essa é a percepção que falta a muitas pessoas, ao menos nas igrejas protestantes tradicionais, para as quais o catolicismo parece ser a doutrina mais diferente da sua própria que pode existir, ao menos na prática, isto é, a mais diferente dentre as mais atuantes e significativas dentro do seu campo de visão. Porém, mesmo no século XVI, época em que já floresciam o humanismo racionalista e cultos neopagãos diversos, esse diagnóstico não seria muito exato. Atualmente, numa sociedade muito menos cristã em todos os aspectos, com inimigos se levantando por todos os lados para combater o cristianismo culturalmente, quando não fisicamente, manter essa idéia é um erro completo. No entanto, é isso o que fazem muitos membros das igrejas protestantes, e mesmo alguns de seus líderes: ignoram praticamente todo o resto e combatem com veemência as relativamente pequenas diferenças da Igreja Católica, como se fossem a coisa mais anticristã que já passou pela cabeça de alguém.

O risco que todos, de ambos os lados, corremos com isso é enorme. Se não aprendermos a discernir o estado atual da cultura moderna, se não superarmos o que resta do rancor decorrente das velhas perseguições mútuas (e esse rancor não é tão grande assim; ao menos é bem menor do que a maioria dos que observam de fora normalmente imagina) e, principalmente, se não aprendermos a ouvir a voz de Cristo também do lado de lá das trincheiras que cavamos uns contra os outros, seremos todos presas fáceis da modernidade, e nossas diferenças serão facilmente canalizadas contra nós mesmos por alguns espertalhões totalitários que odeiam o cristianismo sem distinções denominacionais. É loucura ficarmos remoendo as velhas perseguições levadas a cabo pelos inquisidores não sei quantos séculos atrás quando temos diante de nós, agora mesmo, um inimigo comum e pior que mil inquisições (é claro que o mesmo vale para as perseguições movidas por nós contra os católicos). Seremos todos esmagados de repente pelo verdadeiro adversário, que tomou nossas outrora inexpugnáveis fortalezas enquanto estávamos distraídos e desperdiçando todas as nossas energias numa briguinha de família.

Um comentário:

Anônimo disse...

A gnose moderna

No universo cristão a gnose emerge com a mesma idéia central, a de que o homem pode ser aperfeiçoado nesta vida e buscar a salvação ainda nesse mundo. Pelágio é o ancestral mais vistoso dessa heresia, derrotada, no campo teórico, teológico e político pelo grande Santo Agostinho. Mas a gnose acompanhou, como sombra, o Cristianismo pelos séculos seguintes até triunfar na modernidade (entendida esta como a cultura que moldou a civilização ocidental a partir do século XIV). Embora não seja um corpo de doutrina único e se manifeste em diferentes teorias e movimentos religiosos e políticos, o gnosticismo moderno tem como denominador comum declarar a imanência da salvação e reduzir a psique do homem à relação binária busca do prazer/fuga da dor. Essa caricatura espiritual gerou a criatura bifronte dada pelos falsos opostos liberalismo ateu e o marxismo revolucionário.

Os grandes restauradores do epicurismo na modernidade foram Locke e Rousseau, autores que geraram as tradições paralelas do liberalismo ateu e do marxismo revolucionário. Veja, meu caro leitor, que dessa árvore frondosa nasceu a falsa verdade filosófica estabelecida por pelo menos três séculos seguidos. Essa gente tomou conta dos Estados nacionais na Europa e nas Américas e, depois, no resto do mundo. Então quando eu falo em modernidade eu falo da linha de pensamento que seguiu seu curso a partir desses nomes que são familiares a toda a gente. Basta recordar que gigantes como Kant, Hegel, Marx e Nietzsche, sem falar nos autores do ramo britânico do liberalismo, como Smith e Ricardo, são os caudatários diretos dessa nova suposta verdade da alma.

A oposição entre a gnose moderna e o Cristianismo

O inimigo dessa gente é um só, a Igreja Católica e o Cristianismo ele mesmo. Na verdade as denominações protestantes são elas próprias uma plena manifestação do gnosticismo usando a roupagem evangélica. Sei que muitos dos seguidores dessas religiões ditas cristãs talvez nem tenham a noção do que se passou, porque não é tarefa fácil encontrar livros de história e menos ainda livros de filosofia política que relatem fielmente o que aconteceu. A decretação de morte de Deus por Nietzsche é o coroamento da modernidade e a síntese de tudo, o corolário da Reforma.

Nivaldo Cordeiro

http://www.sacralidade.com.br/mundo2008/0191.comunismo