20 de fevereiro de 2007

Primeira colheita

É com grande alegria que anuncio que, do ponto de vista dos meus objetivos iniciais, que expliquei no texto inaugural, este blog tem sido um enorme sucesso. E não apenas isso, mas também já me trouxe benefícios que eu não havia sequer cogitado. Devo tudo isso, é claro, aos meus leitores. Recebi, ao longo desses quase dois meses, incentivos e demonstrações de interesse por parte de pessoas de quem eu não esperava nada disso; vários amigos gostaram tanto da idéia que resolveram, por conta própria, me ajudar na divulgação deste blog; recebi visitas de pessoas que nem conheço, de modo que este projeto me rendeu também algumas novas amizades; também recebi elogios, críticas e comentários neutros; alguns comentaram aqui mesmo no blog, outros me enviaram e-mails, outros ainda me procuraram pessoalmente ou pelo MSN para discutir alguns temas, e recebi até um telefonema com esse fim.

A quantidade de questões interessantes levantadas em todas essas interações somadas é enorme, e estive pensando num jeito de transmitir isso aos leitores, que naturalmente não presenciaram todas elas, numa tentativa de retribuir todo o bem que elas me têm feito. Depois de pensar um pouco a respeito, concluí que a melhor maneira seria escrever, de vez em quando, um post dedicado exclusivamente a isso, algo como um relatório de prestação de contas. Também será útil para esclarecer algo que não tiver sido bem explicado, ou mesmo para anunciar e justificar minhas mudanças de opinião, quando acontecerem. Nesse sentido, essa decisão pode ser vista também como uma tentativa de remediar o problema mencionado pelo Presunto em seu comentário ao meu post inicial: a dificuldade de evitar os mal-entendidos que, numa conversa travada pessoalmente, seriam mais fáceis de desfazer.

Passo agora a discorrer resumidamente e de maneira mais específica sobre alguns comentários, perguntas e críticas que me foram dirigidos a propósito das minhas declarações. Só deixarei de lado, por enquanto, algumas conversas que tiveram início em decorrência de algo que eu disse, e que possivelmente ainda irão longe; nesse caso, esperarei que terminem a fim de fazer depois uma apreciação mais completa das mesmas.

Em comentário sobre o Mitologia bioquímica, dois amigos sugeriram (um deles, o Marco, aqui mesmo no blog) que a causa real do engodo pode estar no orgulho intelectual ferido, que não admite a própria ignorância nem para si mesmo. Não nego que exista tal coisa, e esse é um tema que se relaciona a muitas questões interessantes, sobre as quais farei aqui uma análise mais cedo ou mais tarde. Por enquanto, tentando não fugir muito do assunto, limito-me a dizer que esse fator, embora exista, possui um papel bastante limitado na difusão de tais concepções erradas entre os estudantes colegiais. Nas publicações especializadas, lidas quase exclusivamente pelos pesquisadores do ramo, a ignorância geral é algo livremente admitido e debatido. É apenas diante dos leigos que surge esse esforço conjunto de demonstrar um conhecimento e uma certeza que não existem. Por isso, considero que o problema está menos no orgulho pessoal do que no orgulho de classe, isto é, na tentativa de uma comunidade inteira de preservar um punhado de dogmas filosóficos e metodológicos considerados essenciais para a manutenção do seu status. Nada, exceto uma motivação política e ideológica profundamente arraigada, explica um sistema de desinformação tão vasto e uniforme.

Outro ponto que considero digno de atenção no comentário do Marco é a referência à teoria abiogênica como uma "hipótese sem provas". Nisso meu amigo Otávio, mais conhecido como Marreco, segue uma tendência parecida, ao tecer comparações entre essa teoria e certos modelos da física nuclear que são usados e ensinados com reservas e que não dão conta de todos os resultados que deveriam explicar, mas de apenas 30% deles, em certos casos. Ora, o problema com isso tudo é que assim não se faz justiça às especificidades do problema que discuti. A teoria abiogênica não é uma hipótese sem provas, e sim uma com muitas provas em contrário. E também não é uma teoria que chega a explicar 30%, 10% ou mesmo 1% dos dados observados. A vida só surgiu uma vez no universo, até onde sabemos, e a abiogênese não só não explica esse surgimento como também não chega a explicar, de maneira isenta de problemas graves, sequer uma etapa isolada desse processo. Compará-la a teorias nucleares, ou chamá-la de hipótese não provada é, portanto, uma indulgência intelectual excessiva diante de um absurdo sem tamanho. Já seria muito dizer que é uma teoria mais plausível que a da geração espontânea, aquela que foi refutada por Pasteur.

Quanto à sugestão do Otávio de que a abiogênese é, apesar de suas imperfeições, a teoria científica mais plausível que temos à disposição, só posso dizer que isso depende do que se considera como teoria científica, isto é, daquilo que os filósofos da ciência denominam "critérios de demarcação". Isso é assunto para uma longa discussão, de modo que o deixo pra depois. Seja como for, não considero eticamente aceitável ensinar como verdade uma teoria de plausibilidade nula apenas porque não se dispõe de uma melhor.

Eu soube que meu post sobre A divina comédia despertou em algumas pessoas o desejo de ler ou reler essa obra. Considero isso muito bom, pois, embora não fosse meu objetivo, isso indica que transmiti pelo menos parcialmente o entusiasmo que essa leitura causou em mim. Mas sinto necessidade de fazer um esclarecimento a respeito de um trecho cujo potencial para dar origem a mal-entendidos é particularmente alto:

"Se eu fosse um progressista, diria que ele foi um homem à frente de seu tempo, inclusive por ter defendido que a Igreja não deveria se preocupar em ter nas mãos o poder temporal e que estava aí a causa da decadência e corrupção da mesma. Mas posso igualmente dizer que nisso Dante era um cristão primitivo, e não um evoluído."

Quem me fez ver a necessidade de explicar melhor esse ponto foi meu amigo André Luiz. Ao contrário do que pode parecer, meu objetivo aqui não era o de assumir um posicionamento sobre a teoria política de Dante, nem sobre a situação política medieval, pela simples razão de que não conheço com suficiente profundidade nenhuma das duas coisas. A segunda exigiria um estudo histórico mais intenso do que o que empreendi até o momento, e a primeira demandaria pelo menos uma leitura atenta de um outro livro de Dante, o Da monarquia, que eu não li. Nesse trecho, portanto, eu pretendia apenas chamar a atenção, de passagem, para o engodo lingüístico que é erigir o calendário como critério de valor, o que parece ser um dos dogmas centrais de todos os movimentos progressistas, sejam eles políticos, filosóficos ou religiosos. No caso em questão, quem acha que a Igreja não deve se meter com o Estado pode sustentar isso tanto por ser mais moderno quanto por ser mais antigo que a Idade Média.

Meu post sobre o Chico foi o que levantou mais polêmicas. Uma amiga, cujas simpatias pelo marxismo são muito mais intensas que as minhas, procurou-me indignada para dizer que só se refreou de publicar uma contestação às minhas acusações porque nunca leu Marx. Eu lamento esse fato, apesar de achar que ela não está perdendo grande coisa. Mas fico feliz por despertar em alguém o desejo de ler Marx ou qualquer outra coisa, mesmo que a pessoa em questão resolva estudar apenas para demonstrar quão ridículas são as minhas opiniões. Eu, de qualquer forma, aprenderei algo com isso, e ainda cumprirei a importante função social de incentivar os outros ao estudo. Nada de ruim pode advir daí.

Apesar disso, não considero que um conhecimento profundo da obra de Marx seja necessário para a apreciação do que eu disse. Apresentei minha análise dessa música como apenas um exemplo do parasitismo moral que o marxismo exerce sobre a tradição judaico-cristã. Para entender que isso é assim desde o início, basta notar que Marx foi cristão em sua juventude (como foi muito bem lembrado por meu amigo Gustavo) e era judeu por nascimento. Não pode haver dúvida de que a preocupação social de Marx, por mais distorcida que fosse, inspirou-se nessa tradição (especialmente nos textos dos profetas do Antigo Testamento) para depois se voltar contra ela e acusá-la de ser a fonte de legitimação da injustiça e acomodação diante da mesma. Eis o que eu denomino "parasitismo". Se Marx percebeu ou não a incongruência do que estava fazendo, é outra história. Ir além disso no estudo da biografia de Marx é irrelevante para os propósitos da minha crítica.

Outro ponto importante a esclarecer é que eu não atribuí a Marx o incentivo à promiscuidade sexual. Atribuí isso ao Chico em particular, embora tenha apontado que esse caso específico exemplifica algo que é, isso sim, parte essencial do marxismo: o uso da bagagem moral e cultural cristã distorcida contra o próprio cristianismo, como acabei de dizer. Daí não se segue necessariamente que cada pormenor envolvido num dado caso seja parte do pensamento marxista em si. O que fiz foi identificar nessa filosofia um aspecto meramente destrutivo, corrosivo, parasitário, sem me preocupar com o que ela tem, e se tem, a oferecer em substituição ao que destrói.

Vale a pena registrar, aliás, que alguns comentários que ouvi sobre minha análise da música Geni e o zepelim exemplificam perfeitamente o que eu disse antes: que muita gente nota na letra dessa música apenas a sua denúncia da hipocrisia, o que significa que o engodo psicológico destinado a fazer com que a depravação sexual pareça algo insignificante foi engolido sem que o ouvinte chegasse a percebê-lo.

Também me foi sugerido que Chico Buarque, na verdade, não tinha a intenção de promover ou mesmo justificar a promiscuidade com base em sua utilidade social. O que ele pretendia era dar um maior tom de realismo à sua narrativa, retratando a heroína de maneira a não ocultar seus defeitos, de modo a justamente evitar que a analogia que tracei entre ela e Jesus Cristo fosse sustentável. Essa interpretação pareceu-me interessante no momento em que a ouvi, mas, depois de reler a letra da música tendo-a em mente, deixei de considerá-la plausível. Lá é dito claramente que Geni era odiada pelo povo da cidade por causa de seus hábitos sexuais e que ela era.odiada por ser "um poço de bondade". Por aí fica silogisticamente claro em que consistia toda essa bondade. E isso é reforçado pelo fato de que o verso dezesseis é apresentado como conclusão extraída das ações da dama descritas nos quinze versos anteriores. Convido o leitor que estiver em dúvida a reler a música e verificar isso. Parece-me claro que, longe de apresentar as peripécias de Geni em favor dos excluídos como um defeito a ser desculpado, Chico as trata como prova mesma de sua bondade superior.

Uma última questão, levantada pelo meu amigo Nelson, dentre outros, é se o compositor teria mesmo pensado em tudo o que eu disse. Na verdade eu não havia pensado muito nisso, e redigi aquela análise mais preocupado em mostrar algo que se me afigurou óbvio depois que um livro de Phillip Johnson me fez notar o parasitismo praticado por ideologias anticristãs em seu combate ao cristianismo. E o exemplo que tomei mostra isso de maneira tão óbvia que nenhum dos meus leitores o contestou; fizeram, no máximo, objeções secundárias. Na verdade, não acho muito provável que o Chico tenha pensado nisso tudo. É bem possível que ele tenha se preocupado apenas em pregar o que achava certo, e talvez tenha sido ele mesmo a primeira vítima de sua própria peça de propaganda. Isso, é claro, não afetaria seu brilhantismo como garoto-propaganda do marxismo, de modo que meu elogio se mantém. Mas certamente isso diminuiria seu mérito intelectual no desempenho dessa tarefa.

15 de fevereiro de 2007

Idéias em gestação

"Somente a consciência individual do agente dá testemunho dos atos sem testemunha, e não há ato mais desprovido de testemunha externa do que o ato de conhecer."

Nesta semana não tenho tido vontade de levantar polêmicas neste blog, e mal me disponho a continuar as que já foram iniciadas em outros lugares. Não sei exatamente a razão disso, mas considero essas flutuações emocionais como algo inteiramente normal, até certo ponto. Seja como for, estive procurando um tema que não tivesse a mínima chance de suscitar discussões. Tal tema não existe, naturalmente. Mas a melhor maneira de chegar perto disso é falar sobre algo de que ninguém possa saber a não ser eu mesmo. Tendo chegado a essa conclusão, lembrei-me das palavras transcritas acima, de autoria do filósofo Olavo de Carvalho, acerca do processo de obtenção de conhecimento.

Não pretendo escrever sobre nada tão profundo assim. Apenas narrarei um curto capítulo da minha própria jornada intelectual, a qual não tem nada de muito interessante, e menos ainda de original. Muitas vezes eu acreditei ter feito grandes descobertas sobre a realidade. Mas, em praticamente todos os casos, soube depois ou que eram idéias idiotas ou que alguém já as tinha tido muito antes de mim. Esse tipo de engano é talvez a pior conseqüência de viver numa sociedade que é estúpida mesmo pelos padrões de uma civilização intelectualmente decadente. Mas deixarei as lamentações para outra semana (alguma em que eu porventura esteja particularmente melancólico) e contarei agora uma das pequenas coisas que descobri na minha busca, particular e sem testemunha externa, pelo conhecimento.

Para quem tem o costume de ler, conversar, debater ou se informar por quaisquer outros meios, uma das coisas mais comuns da vida é o contato com idéias desconhecidas, ou pelo menos com novas formulações e articulações de idéias já conhecidas. Isso me acontece tão freqüentemente hoje quanto acontecia no início da minha vida intelectual, que se deu lá pelos meus dezesseis anos. Logo percebi que era impossível, por exemplo, ler um livro qualquer sem encontrar no mínimo duas ou três afirmações que contradissessem de algum modo meu ponto de vista. Rapidamente aprendi que precisava lidar com aquelas afirmações, e descobri que a variedade de experiências advindas dessa simples decisão era incrivelmente ampla, rica e, em alguns casos, mais compensadora que tudo o que eu aprendera em todo o restante do livro.

Em alguns casos, a idéia contida numa afirmação dessas era tão claramente absurda que eu a identificava imediatamente como tal e a colocava sumariamente de lado, limitando-me a registrá-la no sempre crescente rol de besteiras a evitar. Em outros, tratava-se de uma verdade daquelas que nos espantamos de não ter visto antes; nesse caso, eu a recebia com reverência, tratando logo de situá-la o melhor possível dentro da paisagem mais ampla de minha visão de mundo, à qual ela demonstrava se encaixar melhor que sua negação que estivera ali provocando uma contradição não percebida. Havia ainda aquela situação muito comum em que uma mesma sentença continha a verdade misturada ao erro, restando-me a tarefa de separar este daquela e tentar entender como era possível que viessem a se apresentar com tal aparência de inquebrantável união. Em outras ocasiões, ainda, a idéia em questão vinha trazer luz sobre um tema no qual eu nunca pensara detidamente, ou que ignorava completamente, de modo que eu não tinha opinião alguma a respeito ou tinha uma fortíssima convicção baseada em absolutamente nada. No primeiro caso, eu acabava aprendendo algo na tentativa de pensar melhor sobre o assunto, nem que fosse apenas para relacioná-lo toscamente a outros que eu conhecia melhor. No segundo, a súbita percepção da ignorância antes ignorada normalmente me enchia de vergonha, e seu efeito prático mínimo era o de me levar a pôr o assunto na lista dos que precisava estudar antes de morrer, e sobre os quais não deveria opinar enquanto não tivesse feito isso.

Convém esclarecer que, embora eu esteja usando os verbos no pretérito, todas essas experiências continuam a ocorrer com alguma freqüência na minha vida, e estou certo de que continuarão enquanto eu tiver condições de estudar alguma coisa.

Mas há uma outra experiência ainda mais notável que as acima descritas, e é sobre ela que pretendo discorrer um pouco mais. É a que ocorre quando leio algo e simplesmente não gosto daquilo. Não pela forma como é dito, nem por qualquer fator externo; não gosto da idéia mesma. O que define essa estranha sensação é a total incapacidade de formular o que está errado naquela sentença. Leio e releio, penso e repenso, mas não consigo dizer qual é o problema. É uma sensação aparentemente contraditória, justamente por ser uma mera sensação. Parece-se muito mais com um desconforto quase físico diante de um problema que é, ou deveria ser, puramente intelectual.

Creio que todo mundo já passou por isso ao menos uma vez na vida, de modo que espero que essa tentativa de descrever tão esquisita sensação seja suficiente para que meus leitores se lembrem dela. Antes de contar como aprendi a lidar com isso, porém, direi o que aprendi a não fazer: não se deve ignorar esse sentimento, e muito menos permitir que ele estabeleça por si próprio, na nossa mente, um juízo de valor sobre a idéia em questão. É necessário descobrir o que está errado, e saber expressar isso com palavras que façam sentido. É preciso pensar, mas pensar com o cérebro, e não com o estômago. A pior coisa que pode ocorrer nessa situação é a pessoa pensar: "Esta idéia me causa desconforto; portanto, não deve ser verdadeira", e a partir daí não tornar a pensar no assunto.

A solução que encontrei não apresenta qualquer garantia de eficácia perfeita, mas tem a vantagem de ser bastante simples; tanto, aliás, que alguém poderá pensar que fui buscá-la em algum livro de auto-ajuda. Ela consiste apenas em aliar a paciência à perseverança. Para quem não tiver muito dessas qualidades, uma boa dose de teimosia também serve; pelo menos costuma dar certo no meu caso.

Num certo sentido, a coisa funciona como a resolução de um problema difícil de física ou matemática: se, depois de alguns dias pensando nele, as idéias se esgotam e a solução não surge, o melhor a fazer é deixar o assunto para ser examinado algumas semanas ou meses depois, quando a mente estiver revigorada e mais madura. Em muitos casos, inesperadamente, você tornará a pensar no problema e verá um caminho não notado antes. Mas é de fato necessário ter disciplina suficiente para voltar a pensar nisso com uma certa periodicidade, ou nunca se chegará a lugar algum.

Num outro sentido, porém, essa situação é totalmente diferente de um problema de física ou matemática: trata-se de aprender algo a respeito de si mesmo, e não sobre o universo ou a mente de Deus. O problema é, portanto, muito mais pungente e aterrador, pois resulta na necessidade de mapear mais um trecho do labirinto interior e trazer à plena luz da consciência algo que desde sempre tem permanecido nas trevas, muito embora seja parte do eu. Descobrir que não sei o suficiente nem sobre mim mesmo foi uma experiência sumamente desagradável, e sinto isso novamente sempre que meu subconsciente reage contra uma declaração qualquer sem que eu saiba o motivo. É nessas horas que a exigência gravada em Delfos, que Sócrates tomou como lema máximo de sua vida, surge diante de meus olhos em seu pleno e terrível caráter de urgência.

O meio que encontrei de resolver esse problema foi colocando em palavras, de maneira claramente inteligível, a minha objeção ao pensamento que acaba de me atingir, vindo de alguma outra mente. Essa solução freqüentemente exige um longo e intenso esforço, como já expliquei, e devo confessar que em alguns casos não fui bem sucedido até o presente momento. Isso requer que eu divague pelas minhas próprias posições, reexaminando-as uma a uma a fim de descobrir qual delas chocou-se contra o pensamento intruso enquanto eu olhava em outra direção. Requer também uma boa dose de interpretação, bem como a capacidade de reformular o conteúdo recém-apreendido de todos os modos concebíveis, a fim de verificar se com isso é possível obter uma imagem mais nítida daquilo que o subconsciente insiste em rejeitar intransigentemente. E requer também, às vezes, uma boa dose de imaginação, na tentativa de ordenar tudo isso de um modo que permita lançar nova luz sobre o problema.

Decidi, por analogia, chamar esse processo de "gestação de idéias", já que, assim como a gestação propriamente dita, é algo árduo, doloroso, demorado, incômodo e com um resultado muito difícil de se prever. E também porque, apesar de todas as dificuldades, precisa ser levado a cabo. Abdicar disso é simplesmente cometer voluntariamente um aborto intelectual (que me perdoem as eventuais leitoras feministas que acham o aborto uma coisa ótima). Se o bebê-idéia tiver de ser jogado na lata de lixo mental em algum momento, que seja depois de vermos a cara dele, e não antes. Nas vezes em que consigo consumar o terrível parto mental, a solução é imediata. Quando consigo explicar a mim mesmo qual era exatamente a razão do meu desconforto diante da tal sentença, só existem dois desfechos possíveis. Em um deles eu noto imediatamente o quanto essa minha objeção é estapafúrdia, descabida, sem sentido, e assim vejo o quanto minhas sensações viscerais eram irracionais e me mantinham afastado da verdade. Vencida a barreira inicial, estou agora pronto para aceitar a referida idéia, ou pelo menos considerá-la com maior seriedade e justiça. Ou então percebo claramente que minha sensação estava certa, que havia mesmo, por trás dela, alguma razão válida para a minha desconfiança, embora bem escondida. Nesse caso, minha opinião anterior é reforçada por uma maior consciência de suas implicações lógicas.

É impossível prever com antecedência se o que sairá do ventre é um bebê ou um alien, se do ovo sairá um pássaro qualquer ou um filhote de cuco. Esse estado de expectativa é deveras interessante, pois em decorrência dele temos a possibilidade de aprender mais acerca de nós mesmos e de desenvolver melhor e, se for o caso, corrigir nossas concepções, embora não possamos fazê-lo sem um estímulo externo apropriado e sem um esforço pessoal nesse sentido. O resultado, de qualquer forma, é sempre mais um passo rumo à coerência, à verdade e a uma consciência mais profunda e madura acerca de nós mesmos e de tudo o mais. Daí decorrem muitas surpresas; e também, é claro, muitas alegrias.

5 de fevereiro de 2007

Assalto ao velho restaurante

Eu disse a alguns amigos na semana passada que meu próximo post seria destinado a criticar o Chico Buarque. Mas andei pensando melhor a respeito, e acho que não é bem isso o que vou fazer. Não que eu tenha mudado de idéia quanto ao conteúdo do texto. Apenas pensei melhor sobre o mesmo e concluí que é mais correto dizer que vou fazer um grande elogio ao Chico. Considero que ele tem seus pontos positivos e também seus pontos negativos. O principal ponto positivo é seu talento como compositor, tanto pelas letras quanto pelas melodias. O principal ponto negativo normalmente aparece quando ele passa a dar opiniões sobre assuntos que fogem à sua especialidade. Pelo menos é o que me parece a partir do que já chegou dele aos meus ouvidos, tanto num caso quanto no outro.

Mas eu estive há algum tempo refletindo sobre uma de suas músicas, e cheguei à conclusão de que há algo ali que é simplesmente genial. Refiro-me à famosa e polêmica Geni e o zepelim. É uma das músicas mais inteligentes que já ouvi na vida, muito embora seu vocabulário seja propositalmente vulgar. Apesar de eu não gostar muito disso, considero que nesse caso até cai bem, combinando perfeitamente com o tom satírico e com a mensagem transmitida. Mas vamos ao que interessa. Coloquei a letra aí embaixo para quem porventura não a conheça. Em seguida, farei uns poucos comentários a respeito da mesma.

De tudo que é nego torto
do mangue e do cais do porto
ela já foi namorada.
O seu corpo é dos errantes,
dos cegos, dos retirantes,
é de quem não tem mais nada.

Dá-se assim desde menina,
na garagem, na cantina,
atrás do tanque, no mato.
É a rainha dos detentos,
das loucas, dos lazarentos,
dos moleques do internato.

E também vai amiúde
com os velhinhos sem saúde
e as viúvas sem porvir.
Ela é um poço de bondade,
e é por isso que a cidade
vive sempre a repetir:

"Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!"

Um dia surgiu brilhante,
entre as nuvens flutuante,
um enorme zepelim.
Pairou sobre os edifícios,
abriu dois mil orifícios
com dois mil canhões assim.

A cidade, apavorada,
se quedou paralisada,
pronta pra virar geléia.
Mas do zepelim gigante
desceu o seu comandante
dizendo: "Mudei de idéia!

Quando vi nesta cidade
tanto horror e iniqüidade
resolvi tudo explodir.
Mas posso evitar o drama
se aquela formosa dama
esta noite me servir."

Essa dama é a Geni!
Mas não pode ser Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!

No entanto logo ela,
tão coitada, tão singela,
cativara o forasteiro.
O guerreiro tão vistoso,
tão temido e poderoso,
era dela prisioneiro.

Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela -
também tinha seus caprichos.
E a deitar com homem tão nobre,
tão cheirando a brilho e a cobre,
preferia amar com os bichos.

Ao ouvir tal heresia,
a cidade em romaria
foi beijar a sua mão.
O prefeito de joelhos,
o bispo de olhos vermelhos
e o banqueiro com um milhão.

"Vai com ele, vai, Geni!
Vai com ele, vai, Geni!
Você pode nos salvar!
Você vai nos redimir!
Você dá pra qualquer um!
Bendita Geni!"

Foram tantos os pedidos,
tão sinceros, tão sentidos,
que ela dominou seu asco.
Nessa noite lancinante
entregou-se a tal amante
como quem dá-se ao carrasco.

Ele fez tanta sujeira!
Lambuzou-se a noite inteira
até ficar saciado.
E, nem bem amanhecia,
partiu numa nuvem fria
com seu zepelim prateado.

Num suspiro aliviado,
ela se virou de lado
e tentou até sorrir.
Mas logo raiou o dia,
e a cidade em cantoria
não deixou ela dormir:

"Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!"

A primeira coisa a ser notada, e que considero mais interessante, é o fundo moral dessa história. Podemos descobri-lo facilmente fazendo abstração, por um momento, de todas as particularidades e focalizando nossa atenção nos aspectos essenciais da narrativa. Contada dessa maneira, ela fica assim:

Era uma vez um lugar cheio de gente perversa, soberba e hipócrita. Um dia, porém, um ser poderoso decidiu dar um basta nisso e punir merecidamente todo mundo por suas respectivas maldades. Em meio àquele povo existia apenas uma pessoa justa e boa, e era a única que poderia fazer algo para salvá-lo. Havia duas dificuldades, porém. Primeira: a pessoa em questão era odiada e desprezada por todo mundo, justamente por sua virtude superior. Segunda: ela só poderia trazer salvação através de um grande sacrifício pessoal. Amorosa e humilde como ela só, renegou todas as ofensas anteriores e desempenhou corajosa e resignadamente seu papel sacrificial em prol de todos aqueles seres cruéis e desprezíveis. Mas, longe de comover aqueles corações duros, o ato só suscitou ainda mais desprezo e ódio por parte deles. E, presumivelmente, todos viveram infelizes para sempre.

Alguém conhece essa história? Todo mundo, é claro! Dando os devidos nomes às pessoas envolvidas e ao contexto, essa é a narrativa (ou melhor, a parte mais importante dela) sobre a qual foi construída a nossa civilização ancestral, cujos fundamentos morais, mesmo que não percebamos isso, ainda conservamos parcialmente. Pois bem, o primeiro fato para o qual desejo chamar a atenção é esse: Chico Buarque pegou uma velha história, de significação profunda para a alma ocidental, despiu-a de suas particularidades e preencheu-a com outras. O valor moral da letra foi diretamente tomado de empréstimo do cristianismo.

Acredito que não é grande o número de pessoas que percebem esse fato; mas isso não é tudo. Chico pegou a história dos evangelhos e fez-lhe umas modificações. A próxima questão que surge é: o que ele faz com essa adaptação? Seria ele um padre ou pastor disfarçado, pregando subliminarmente a doutrina cristã aos seus ouvintes? A realidade está muito longe disso. O critério de moralidade defendido na música não é cristão, e sim marxista. A bondade da heroína está no fato de que ela faz de tudo pelos pobres, marginalizados e excluídos pela sociedade, não importando que o faça por meios inteiramente imorais segundo os critérios da doutrina cristã. Sua virtude consiste unicamente em dar aos pobres (no mais popular sentido desse verbo) e em desprezar os demais. E quem são os principais adversários de tamanha bondade? O poder político constituído (a maldita direita, como todos sabem), o cristianismo (prestem atenção nisso) e o capitalismo (que não vem muito ao caso no momento), personificados pelas figuras do prefeito, do bispo e do banqueiro.

De quebra, Chico ainda faz uma eficiente apologia da idéia de que não há nada de errado na libertinagem sexual. Não, é claro, que a música forneça algum argumento em favor dessa tese. Esse tipo de coisa é normalmente defendido sem qualquer argumento, e o artista em questão não foge à regra. O expediente usado aqui, e em muitos outros lugares, é simplesmente o de insistir na comparação de um defeito moral pequeno com um grande, a fim de que o ouvinte se enfureça com o segundo e, por contraste, acabe se acostumando a não dar muita importância ao primeiro. A afirmação de que o orgulho e a hipocrisia são doenças espirituais muito mais graves que a mera promiscuidade sexual é, em si mesma, perfeitamente cristã. Mas nosso compositor extrai daí a conclusão de que esta última é uma coisa inteiramente boa, especialmente se colocada a serviço dos apetites sexuais dos pobres.

Eis, em suma, o método usado por Chico Buarque para pregar seu novo evangelho: apropriar-se do conteúdo moral da velha doutrina e depois deturpá-la a fim de que possa ser usada contra sua própria fonte. E o compositor prega isso não só sem usar justificativa racional alguma, mas também de maneira muito bem camuflada. Sem chegar a compreender o que está acontecendo, o público acaba por engolir o engodo psicológico como se fosse a expressão máxima da autêntica moralidade. Isso faz com que eu me lembre daquela piada sobre o sujeito que, após comer fartamente num excelente restaurante, não só se recusou a pagar como também tentou convencer o gerente de que o garçom o roubara no troco. É o inadimplente, orgulhoso de sua miséria, negando a existência da dívida e exigindo que o credor lhe pague.

Esse é apenas mais um exemplo de algo que descobri há um bom tempo: a moral marxista é um mero parasita da tradição judaico-cristã. Mas trata-se de um parasitismo muito bem calculado e planejado, como tudo o mais na moderna revolução cultural. Provavelmente nem todos concordarão com o que estou dizendo. Mas não se pode negar, penso eu, que Chico Buarque é um propagandista genial a serviço de sua ideologia. É esse o elogio que eu tinha a fazer.