20 de fevereiro de 2007

Primeira colheita

É com grande alegria que anuncio que, do ponto de vista dos meus objetivos iniciais, que expliquei no texto inaugural, este blog tem sido um enorme sucesso. E não apenas isso, mas também já me trouxe benefícios que eu não havia sequer cogitado. Devo tudo isso, é claro, aos meus leitores. Recebi, ao longo desses quase dois meses, incentivos e demonstrações de interesse por parte de pessoas de quem eu não esperava nada disso; vários amigos gostaram tanto da idéia que resolveram, por conta própria, me ajudar na divulgação deste blog; recebi visitas de pessoas que nem conheço, de modo que este projeto me rendeu também algumas novas amizades; também recebi elogios, críticas e comentários neutros; alguns comentaram aqui mesmo no blog, outros me enviaram e-mails, outros ainda me procuraram pessoalmente ou pelo MSN para discutir alguns temas, e recebi até um telefonema com esse fim.

A quantidade de questões interessantes levantadas em todas essas interações somadas é enorme, e estive pensando num jeito de transmitir isso aos leitores, que naturalmente não presenciaram todas elas, numa tentativa de retribuir todo o bem que elas me têm feito. Depois de pensar um pouco a respeito, concluí que a melhor maneira seria escrever, de vez em quando, um post dedicado exclusivamente a isso, algo como um relatório de prestação de contas. Também será útil para esclarecer algo que não tiver sido bem explicado, ou mesmo para anunciar e justificar minhas mudanças de opinião, quando acontecerem. Nesse sentido, essa decisão pode ser vista também como uma tentativa de remediar o problema mencionado pelo Presunto em seu comentário ao meu post inicial: a dificuldade de evitar os mal-entendidos que, numa conversa travada pessoalmente, seriam mais fáceis de desfazer.

Passo agora a discorrer resumidamente e de maneira mais específica sobre alguns comentários, perguntas e críticas que me foram dirigidos a propósito das minhas declarações. Só deixarei de lado, por enquanto, algumas conversas que tiveram início em decorrência de algo que eu disse, e que possivelmente ainda irão longe; nesse caso, esperarei que terminem a fim de fazer depois uma apreciação mais completa das mesmas.

Em comentário sobre o Mitologia bioquímica, dois amigos sugeriram (um deles, o Marco, aqui mesmo no blog) que a causa real do engodo pode estar no orgulho intelectual ferido, que não admite a própria ignorância nem para si mesmo. Não nego que exista tal coisa, e esse é um tema que se relaciona a muitas questões interessantes, sobre as quais farei aqui uma análise mais cedo ou mais tarde. Por enquanto, tentando não fugir muito do assunto, limito-me a dizer que esse fator, embora exista, possui um papel bastante limitado na difusão de tais concepções erradas entre os estudantes colegiais. Nas publicações especializadas, lidas quase exclusivamente pelos pesquisadores do ramo, a ignorância geral é algo livremente admitido e debatido. É apenas diante dos leigos que surge esse esforço conjunto de demonstrar um conhecimento e uma certeza que não existem. Por isso, considero que o problema está menos no orgulho pessoal do que no orgulho de classe, isto é, na tentativa de uma comunidade inteira de preservar um punhado de dogmas filosóficos e metodológicos considerados essenciais para a manutenção do seu status. Nada, exceto uma motivação política e ideológica profundamente arraigada, explica um sistema de desinformação tão vasto e uniforme.

Outro ponto que considero digno de atenção no comentário do Marco é a referência à teoria abiogênica como uma "hipótese sem provas". Nisso meu amigo Otávio, mais conhecido como Marreco, segue uma tendência parecida, ao tecer comparações entre essa teoria e certos modelos da física nuclear que são usados e ensinados com reservas e que não dão conta de todos os resultados que deveriam explicar, mas de apenas 30% deles, em certos casos. Ora, o problema com isso tudo é que assim não se faz justiça às especificidades do problema que discuti. A teoria abiogênica não é uma hipótese sem provas, e sim uma com muitas provas em contrário. E também não é uma teoria que chega a explicar 30%, 10% ou mesmo 1% dos dados observados. A vida só surgiu uma vez no universo, até onde sabemos, e a abiogênese não só não explica esse surgimento como também não chega a explicar, de maneira isenta de problemas graves, sequer uma etapa isolada desse processo. Compará-la a teorias nucleares, ou chamá-la de hipótese não provada é, portanto, uma indulgência intelectual excessiva diante de um absurdo sem tamanho. Já seria muito dizer que é uma teoria mais plausível que a da geração espontânea, aquela que foi refutada por Pasteur.

Quanto à sugestão do Otávio de que a abiogênese é, apesar de suas imperfeições, a teoria científica mais plausível que temos à disposição, só posso dizer que isso depende do que se considera como teoria científica, isto é, daquilo que os filósofos da ciência denominam "critérios de demarcação". Isso é assunto para uma longa discussão, de modo que o deixo pra depois. Seja como for, não considero eticamente aceitável ensinar como verdade uma teoria de plausibilidade nula apenas porque não se dispõe de uma melhor.

Eu soube que meu post sobre A divina comédia despertou em algumas pessoas o desejo de ler ou reler essa obra. Considero isso muito bom, pois, embora não fosse meu objetivo, isso indica que transmiti pelo menos parcialmente o entusiasmo que essa leitura causou em mim. Mas sinto necessidade de fazer um esclarecimento a respeito de um trecho cujo potencial para dar origem a mal-entendidos é particularmente alto:

"Se eu fosse um progressista, diria que ele foi um homem à frente de seu tempo, inclusive por ter defendido que a Igreja não deveria se preocupar em ter nas mãos o poder temporal e que estava aí a causa da decadência e corrupção da mesma. Mas posso igualmente dizer que nisso Dante era um cristão primitivo, e não um evoluído."

Quem me fez ver a necessidade de explicar melhor esse ponto foi meu amigo André Luiz. Ao contrário do que pode parecer, meu objetivo aqui não era o de assumir um posicionamento sobre a teoria política de Dante, nem sobre a situação política medieval, pela simples razão de que não conheço com suficiente profundidade nenhuma das duas coisas. A segunda exigiria um estudo histórico mais intenso do que o que empreendi até o momento, e a primeira demandaria pelo menos uma leitura atenta de um outro livro de Dante, o Da monarquia, que eu não li. Nesse trecho, portanto, eu pretendia apenas chamar a atenção, de passagem, para o engodo lingüístico que é erigir o calendário como critério de valor, o que parece ser um dos dogmas centrais de todos os movimentos progressistas, sejam eles políticos, filosóficos ou religiosos. No caso em questão, quem acha que a Igreja não deve se meter com o Estado pode sustentar isso tanto por ser mais moderno quanto por ser mais antigo que a Idade Média.

Meu post sobre o Chico foi o que levantou mais polêmicas. Uma amiga, cujas simpatias pelo marxismo são muito mais intensas que as minhas, procurou-me indignada para dizer que só se refreou de publicar uma contestação às minhas acusações porque nunca leu Marx. Eu lamento esse fato, apesar de achar que ela não está perdendo grande coisa. Mas fico feliz por despertar em alguém o desejo de ler Marx ou qualquer outra coisa, mesmo que a pessoa em questão resolva estudar apenas para demonstrar quão ridículas são as minhas opiniões. Eu, de qualquer forma, aprenderei algo com isso, e ainda cumprirei a importante função social de incentivar os outros ao estudo. Nada de ruim pode advir daí.

Apesar disso, não considero que um conhecimento profundo da obra de Marx seja necessário para a apreciação do que eu disse. Apresentei minha análise dessa música como apenas um exemplo do parasitismo moral que o marxismo exerce sobre a tradição judaico-cristã. Para entender que isso é assim desde o início, basta notar que Marx foi cristão em sua juventude (como foi muito bem lembrado por meu amigo Gustavo) e era judeu por nascimento. Não pode haver dúvida de que a preocupação social de Marx, por mais distorcida que fosse, inspirou-se nessa tradição (especialmente nos textos dos profetas do Antigo Testamento) para depois se voltar contra ela e acusá-la de ser a fonte de legitimação da injustiça e acomodação diante da mesma. Eis o que eu denomino "parasitismo". Se Marx percebeu ou não a incongruência do que estava fazendo, é outra história. Ir além disso no estudo da biografia de Marx é irrelevante para os propósitos da minha crítica.

Outro ponto importante a esclarecer é que eu não atribuí a Marx o incentivo à promiscuidade sexual. Atribuí isso ao Chico em particular, embora tenha apontado que esse caso específico exemplifica algo que é, isso sim, parte essencial do marxismo: o uso da bagagem moral e cultural cristã distorcida contra o próprio cristianismo, como acabei de dizer. Daí não se segue necessariamente que cada pormenor envolvido num dado caso seja parte do pensamento marxista em si. O que fiz foi identificar nessa filosofia um aspecto meramente destrutivo, corrosivo, parasitário, sem me preocupar com o que ela tem, e se tem, a oferecer em substituição ao que destrói.

Vale a pena registrar, aliás, que alguns comentários que ouvi sobre minha análise da música Geni e o zepelim exemplificam perfeitamente o que eu disse antes: que muita gente nota na letra dessa música apenas a sua denúncia da hipocrisia, o que significa que o engodo psicológico destinado a fazer com que a depravação sexual pareça algo insignificante foi engolido sem que o ouvinte chegasse a percebê-lo.

Também me foi sugerido que Chico Buarque, na verdade, não tinha a intenção de promover ou mesmo justificar a promiscuidade com base em sua utilidade social. O que ele pretendia era dar um maior tom de realismo à sua narrativa, retratando a heroína de maneira a não ocultar seus defeitos, de modo a justamente evitar que a analogia que tracei entre ela e Jesus Cristo fosse sustentável. Essa interpretação pareceu-me interessante no momento em que a ouvi, mas, depois de reler a letra da música tendo-a em mente, deixei de considerá-la plausível. Lá é dito claramente que Geni era odiada pelo povo da cidade por causa de seus hábitos sexuais e que ela era.odiada por ser "um poço de bondade". Por aí fica silogisticamente claro em que consistia toda essa bondade. E isso é reforçado pelo fato de que o verso dezesseis é apresentado como conclusão extraída das ações da dama descritas nos quinze versos anteriores. Convido o leitor que estiver em dúvida a reler a música e verificar isso. Parece-me claro que, longe de apresentar as peripécias de Geni em favor dos excluídos como um defeito a ser desculpado, Chico as trata como prova mesma de sua bondade superior.

Uma última questão, levantada pelo meu amigo Nelson, dentre outros, é se o compositor teria mesmo pensado em tudo o que eu disse. Na verdade eu não havia pensado muito nisso, e redigi aquela análise mais preocupado em mostrar algo que se me afigurou óbvio depois que um livro de Phillip Johnson me fez notar o parasitismo praticado por ideologias anticristãs em seu combate ao cristianismo. E o exemplo que tomei mostra isso de maneira tão óbvia que nenhum dos meus leitores o contestou; fizeram, no máximo, objeções secundárias. Na verdade, não acho muito provável que o Chico tenha pensado nisso tudo. É bem possível que ele tenha se preocupado apenas em pregar o que achava certo, e talvez tenha sido ele mesmo a primeira vítima de sua própria peça de propaganda. Isso, é claro, não afetaria seu brilhantismo como garoto-propaganda do marxismo, de modo que meu elogio se mantém. Mas certamente isso diminuiria seu mérito intelectual no desempenho dessa tarefa.

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