30 de setembro de 2010

O futuro do pretérito

Não sou leitor assíduo de ficção científica, mas ocasionalmente faço minhas incursões por esse campo. Uma das obras de que mais gostei nesse gênero foi Contato, escrita pelo famoso astrônomo Carl Sagan e publicada em 1985. A narrativa envolve um contato com alienígenas distantes mediado por ondas eletromagnéticas, através das quais os ETs enviam instruções para a construção de uma máquina de tecnologia avançadíssima. O custo total fica em trilhões de dólares, e o mundo todo se mobiliza em parcerias para levar a cabo o projeto extraterrestre. É nesse contexto que se insere o trecho a seguir, em que o narrador explica a razão pela qual a União Soviética não foi capaz de cumprir a contento algumas de suas atribuições:

"Na verdade, os soviéticos vinham enfrentando mais dificuldades na construção da Máquina do que se imaginava no Ocidente. Utilizando a Mensagem decodificada, o Ministério da Indústria Meio-Pesada fez consideráveis progressos na extração de minério, metalurgia, máquinas-ferramentas, etc.. Os novos campos da microeletrônica e da cibernética apresentaram maiores dificuldades, e a maioria desses componentes era produzida para os soviéticos, por empreitada, na Europa e no Japão. Mais difícil ainda para a indústria nacional soviética foi a parte de química orgânica, que dependia fortemente de técnicas desenvolvidas na área da biologia molecular. A genética soviética sofrera um golpe quase fatal quando, na década de 30, Stálin decidira que a moderna genética mendeliana era inadequada do ponto de vista ideológico, promulgando, por decreto, a ortodoxia científica da teoria amalucada de um agricultor politizado, Trofim Lysenko. Duas gerações de brilhantes estudantes soviéticos nada haviam aprendido de importante sobre os fundamentos da hereditariedade. Agora, sessenta anos depois, a biologia molecular e a engenharia genética estavam relativamente atrasadas na URSS; os cientistas soviéticos tinham contribuído com poucas descobertas importantes nessa área. Coisa semelhante quase aconteceu nos Estados Unidos, onde, por motivos teológicos, tentara-se fazer com que os alunos das escolas públicas não estudassem o evolucionismo, o princípio básico da biologia moderna. O litígio era claro, pois uma interpretação fundamentalista da Bíblia era tida como contrária ao processo evolutivo. Felizmente para a biologia molecular americana, os fundamentalistas não tinham, nos Estados Unidos, tanta força quanto tivera Stálin na União Soviética."


Há um enorme equívoco em descrever os movimentos criacionistas americanos como opostos ao ensino da evolução, uma vez que eles lutaram apenas pelo direito de expor ao lado dela sua teoria sobre a criação. É um equívoco igualmente grande supor que os criacionistas, assim como os "fundamentalistas" em geral, tenham "quase" conseguido alguma coisa, ao invés de ser acuados de todos os lados, como têm sido desde sempre. E não creio que Sagan fosse mal informado o suficiente para ignorar tudo isso. Não obstante, o fundo histórico aludido no trecho acima é verídico: Lysenko persuadiu o governo soviético de que a genética mendeliana era contrária ao materialismo dialético. Em decorrência disso, não apenas o desenvolvimento científico nessa área foi prejudicado, mas também o foi a agricultura do país, que estava sob responsabilidade do próprio Lysenko. O caso tornou-se proverbial no meio acadêmico científico como ilustração do fato de que os pressupostos ideológicos são nocivos ao progresso da ciência.


A União Soviética acabou bem mais depressa do que Sagan poderia ter previsto em 1985, de modo que ele deve ser perdoado por mantê-la de pé em seu romance levemente futurista. Em sua opinião, contudo, permaneceu intocada a validade da aplicação que ele fez da lição implicada nesse caso: o questionamento à teoria da evolução pelos "fundamentalistas" é tão pernicioso quanto o desprezo devotado por Lysenko às leis mendelianas da hereditariedade. A mesma comparação, quase com as mesmas palavras, apareceu num livro posterior e bem mais dissertativo de Sagan, O mundo assombrado pelos demônios, obra que pode ser, conforme o ponto de vista, tanto um manual de ceticismo quanto de credulidade.


É fácil entender os motivos de Sagan para ver tamanha semelhança entre os dois casos. Em sua opinião, o evolucionismo é "o princípio básico da biologia moderna". Além disso, existe uma crença, muito difundida nos meios cultos e pseudocultos, que vê na genética e na biologia molecular as principais provas do processo evolutivo. Sagan evidentemente endossa esse ponto de vista. Estabelecidas as premissas nesses termos, a conclusão é inevitável: sem aderir ao princípio básico, ninguém pode conhecer nada sobre a disciplina em questão. Alguns cientistas evolucionistas costumam comparar a teoria de Darwin à mecânica de Newton quanto ao papel de princípio unificador, sem o qual restam apenas fatos isolados que não podem ser devidamente compreendidos. A associação que muitos fazem entre o "criacionismo científico" e o "socialismo científico", ambos os quais alegam dispor de fundamentos científicos sem que, no entanto, a maior parte da comunidade científica lhes atribua esse mérito, basta para completar o quadro, convencendo muitos leitores de Sagan de que meia dúzia de caipiras crentes reunidos para estudar a Bíblia numa aldeia do interior são tão perigosos para o mundo quanto uma Internacional Socialista.


Mas será verdade que a bioquímica e a biologia molecular dependem tanto assim da teoria evolucionária? Essa pergunta foi respondida em 1996, apenas um ano depois que Sagan republicou seu argumento pretensamente fulminante contra o criacionismo, pelo bioquímico Michael Behe em seu livro A caixa preta de Darwin, cujo objetivo principal é justamente demonstrar a ineficiência da explicação evolucionária nesses campos. Diz Behe:


"A fim de compreender os sucessos do darwinismo como ortodoxia e seu fracasso como ciência no nível molecular, temos de examinar os livros didáticos utilizados pelos aspirantes a cientistas. Um dos mais populares textos de bioquímica das últimas décadas foi escrito em 1970 por Albert Lehninger, professor de biofísica da Johns Hopkins University, tendo sido atualizado ao longo dos anos. Na primeira página do primeiro capítulo de seu primeiro livro, Lehninger menciona a evolução. Pergunta por que as biomoléculas, que existem em quase todas as células, parecem extraordinariamente bem adaptadas às suas tarefas. [...] Lehninger, um excelente professor, estava passando a seus estudantes a visão de mundo dos bioquímicos - que a evolução é importante para compreender bioquímica, que é um de dois 'pontos de vista' apenas, a partir dos quais devemos estudar as moléculas da vida. Embora um estudante imaturo possa aceitar a palavra de Lehninger, um observador imparcial procuraria evidências da importância da evolução para o estudo da bioquímica. Um lugar excelente para começar é o índice do livro. Lehninger fornece um índice muito detalhado, a fim de ajudar os estudantes a localizar informações prontamente. Muitos dos tópicos do índice possuem entradas múltiplas, uma vez que devem ser estudados em vários contextos. Os ribossomos, por exemplo, contam com vinte e uma entradas no índice da primeira edição de Lehninger; a fotossíntese, com vinte e seis; a bactéria E. coli, com quarenta e duas; e sob 'proteínas' há setenta referências. No total, há quase seis mil entradas no índice, mas apenas duas sob o título 'evolução'. [...] Com apenas duas entradas em seis mil, o conselho professoral de Lehninger a seus alunos sobre a importância da evolução para seus estudos é desmentido pelo índice. Nele, Lehninger incluiu quase tudo o que era relevante para a bioquímica. Ao que parece, porém, a evolução raramente é tópico relevante."


Behe prossegue apresentando uma tabela que mostra o número de entradas sobre evolução em trinta edições de dezesseis livros, publicados entre 1970 e 1995. A evolução está inteiramente ausente de treze delas, e outras sete possuem de uma a três entradas com essa palavra. O número máximo de ocorrências aparece numa edição posterior do próprio Lehninger: vinte e duas em oito mil. É muito pouco para um princípio unificador importantíssimo sem o qual não se pode entender nada. É por esse tipo de coisa que considero Carl Sagan um ótimo exemplo de um sujeito extremamente crédulo, e suas tentativas de parecer (ou ser) cético só o tornam mais divertido. E seus juízos sobre temas científicos que envolvem religião só valem alguma coisa no mundo ficcional criado por ele mesmo, o qual ele nem sempre era capaz de distinguir da realidade.