29 de junho de 2013

Deveres sem pessoas - parte 8

Na última postagem desta série encerrei uma parte importante de meus comentários ao artigo A autonomia da ética, do filósofo ateu americano David O. Brink: as considerações sobre a seção Voluntarismo, naturalismo e o problema de Êutífron, em que o autor ataca o "teísmo" enquanto base metafísica da objetividade moral. Vem em seguida a seção Variedades de naturalismo, [6.2-9.2], para a qual me volto agora. Para o autor, como já vimos, rejeitar Deus como base para a moral é sinônimo de abraçar o que ele chama de naturalismo ético. Segue-se, então, com naturalidade a pergunta que motiva toda essa seção, e que aparece já em [6.2]: "Mas em que consistem as exigências ou qualidades morais se não consistem na atitude ou vontade de Deus?" Essa parte do artigo é importantíssima por não ter propósito primariamente crítico; ou seja, nela o autor busca construir algo positivo, mostrando como, em sua opinião, é possível conhecer os valores morais e seus fundamentos prescindindo de Deus. Na verdade, como veremos, ele apresenta várias possibilidades naturalistas, e é daí que advém o título da seção.

Em vários sentidos, essa seção é decepcionante. Ainda na segunda parte, apontei que um dos problemas mais sérios do artigo é sua persistência em ignorar uma necessidade básica: a de dizer qual é, afinal, o fundamento metafísico da objetividade moral. Por isso, quando li em [6.2] a pergunta acima transcrita pensei: "Oba! Agora ele vai entrar no que realmente interessa." Mas nada parecido com isso aconteceu. Desse ponto de vista, o que se segue é deveras frustrante. Como em todas as páginas precedentes, aqui também o Dr. Brink pressupõe sem argumentação a necessidade de leis que estejam acima de Deus, silêncio de que já reclamei na quinta parte. Não percebe a natureza eminentemente pessoal e relacional (isto é, pactual) da moralidade, que defendi na mesma quinta parte. Dá claras mostras de que ignora o conteúdo da teologia cristã, fato de que reclamei na sétima parte. E continua na mesma ambivalência que sua definição de naturalismo produziu, como demonstrei também na sétima parte. Em suma, sou obrigado a manter todas as críticas que já lhe fiz, acrescidas de mais algumas, que aparecerão no devido tempo. Mas isso, do ponto de vista dialético, é nada menos que natural: o autor apenas pressupõe a solidez da parte do edifício que erigiu até aqui, e continua construindo em cima.

Por outro lado, há elementos nessa seção que são nada menos que preciosos. O que Brink está fazendo, em última análise, é explorar as possibilidades do naturalismo ético de um ponto de vista epistemológico. Em outras palavras, ele está tentando elaborar os princípios possíveis de uma autêntica ciência dos valores morais. Estou plenamente convencido de que o resultado de seu esforço foi nada menos que um fracasso total, e que isso se deu porque os pressupostos teológicos e filosóficos adotados por ele não permitem outro desfecho. Mas Brink fracassou fazendo bom uso de sua inteligência e de seus conhecimentos em sua área de especialidade, e assim me ensinou várias coisas interessantes. Além de fazer as perguntas certas, essa seção mostra que há, em um nível não-último, uma dose considerável de consistência e autoconsciência naquilo que o autor está empreendendo. Pretendo ressaltar alguns pontos positivos da abordagem de Brink na medida em que a comentar, mas mesmo assim creio que será impossível fazer-lhes plena justiça. Tudo o que posso fazer de antemão é dizer que há algumas percepções pontuais fantásticas ao longo de sua argumentação.

Em [6.4], Brink começa a colocar ordem na casa considerando que é "útil distinguir afirmações morais com diferentes níveis de abstracção e generalidade", e assim estabelece, em [7.1], três categorias de juízos morais, hierarquicamente estruturadas: "verdades morais particulares", "regras morais", mais abrangentes que as primeiras, e "princípios" que explicam "por que esse factor particular é moralmente relevante". Na verdade, Brink não chega a se posicionar sobre a existência ou não destes últimos, e tampouco sobre sua quantidade - isto é, não diz se haveria um único princípio por trás de todas as afirmações morais ou vários princípios irredutíveis. Considero essa percepção hierárquica dos juízos morais muito valiosa e plenamente compatível com a visão cristã da ética. Na verdade, encontrei-a pela primeira vez no livro Ética cristã: alternativas e questões contemporâneas, de Norman Geisler. O tratamento que Geisler dá ao tema me parece mais consistente e rigoroso. A divisão que Brink faz dos juízos morais em três níveis me parece um tanto arbitrária. Por que não quatro, cinco ou dez? Ainda mais grave é o fato de que a pluralidade e a inexistência de princípios, hipóteses não descartadas por Brink, expõem seu sistema ao risco de contradição interna. Se há vários princípios morais últimos, é preciso assegurar que nenhuma situação concreta da vida humana pode produzir conflito entre eles; se esse conflito ocorresse, a questão só poderia ser resolvida mediante o apelo a um princípio superior a ambos, ou à hierarquização dos dois, e em ambos os casos o resultado teria de ser a existência de um único princípio no topo da hierarquia. E, se não há princípios, o mesmo dilema se aplica às regras morais. Brink não parece se dar conta dessas dificuldades. Mas não creio que elas sejam o problema central da seção, de modo que me contento em mencionar minha insatisfação e passar adiante.

Em [7.2-3] o autor desenvolve um argumento que considero genial, e inteiramente compatível com a visão bíblica da moralidade. Ele diz que alguns, com base nessa visão hierárquica dos juízos morais, "Defendem que podemos justificar juízos particulares em termos de regras morais e que estas se podem justificar em termos de princípios morais fundamentais", os quais "têm de ser auto-evidentes", pois "nada mais há em termos do qual estes princípios se pudessem justificar", uma vez que, por definição, "estes primeiros princípios formulam factores morais últimos". Essa é uma visão bastante racionalista da epistemologia dos valores morais. O Dr. Brink objeta a ela nos seguintes termos:

"Podemos ter dúvidas quanto a juízos e regras morais particulares, mas certamente que há alguns juízos e regras morais particulares com respeito aos quais temos bastantes certezas, muitas mais do que com respeito a qualquer recôndito primeiro princípio. Por exemplo, tenho muito mais a certeza de que o Holocausto foi perverso ou que o genocídio é incorrecto do que tenho quanto à verdade do utilitarismo ou quanto ao imperativo categórico de Kant. Além disso, temos tendência para conseguir fornecer razões para aceitar ou rejeitar hipotéticos primeiros princípios."

Esse é um retrato bem mais realista dos modos pelos quais efetivamente apreendemos os valores morais, sem reduzi-los a esquemas sistemáticos abstratos. Não, é claro, que a abstração e a sistematização não tenham seu lugar apropriado; mas esse lugar vem depois, e não antes, da nossa interação direta e pessoal com o aspecto ético da realidade.

Argumentei na segunda parte desta série que Brink é mais sensato que a maioria dos ateus pelo fato de reconhecer a objetividade da ética; mas, por isso mesmo, sua visão é mais inconsistente com o ateísmo. De modo análogo, sua excelente percepção quanto à epistemologia da moral o coloca acima de quase todos os materialistas; mas, por isso mesmo, também o coloca em uma enrascada bem mais profunda. Isso pode ser visto com especial clareza em [7.5], parágrafo em que Brink esboça "uma metodologia para a teoria moral secular". Apesar do curto espaço, o tema é razoavelmente bem desenvolvido. Não obstante, citarei apenas um trecho, que me parece conter o espírito de toda a metodologia apresentada:

"Podemos tentar resolver a incerteza ou a discórdia a níveis mais particulares do pensamento moral tentando encontrar um terreno comum plausível a um nível mais geral. Mas podemos também tentar resolver a incerteza e a discórdia a um nível mais geral testando as implicações que um princípio moral potencial tem relativamente a casos particulares, comparando-as com a avaliação independente que fazemos desses casos. Assim, introduzimos um princípio moral para sistematizar as nossas convicções morais ponderadas, especialmente no que respeita a casos particulares e regras morais. Examinamos princípios possíveis, em parte, traçando as implicações que têm relativamente a casos reais ou imaginados, e comparando essas implicações com a nossa avaliação preexistente ou reflectida desses casos."

Em resumo, o autor está declarando o mesmo que afirmei acima ao dizer que nenhum juízo moral, qualquer que seja seu grau de abrangência, tem prioridade sobre os outros. Afirmações particulares podem ser usadas para contestar regras gerais, e vice-versa; ambas podem ser usadas para condenar candidatos a princípios universais, e estes também podem ser empregados para corrigir aquelas. Mesmo as intuições morais básicas não são infalíveis, como o autor deixa claro em [8.1]. Em virtude de sua profunda consciência (lamentavelmente ausente em certos pontos do artigo) da falibilidade epistêmica humana, Brink não é capaz de encontrar um ponto de partida seguro para construir seu sistema. Ele sabe disso, e sua melhor solução é a seguinte: "Idealmente, modificamos os nossos princípios, convicções morais ponderadas e outras perspectivas em resposta a conflitos, como a coerência parece exigir, até as nossas perspectivas éticas chegarem a um equilíbrio dialéctico". No parágrafo seguinte, Brink é ainda mais explícito: "A teoria moral secular deve começar com convicções morais ponderadas. Em muitos casos, apelar a estas intuições será adequado. [...] temos de tentar identificar princípios morais que forneçam um ajuste dialéctico adequado com essas convicções". O "ajuste dialético", ou seja, a coerência interna de juízos e intuições estabelecida pela razão, é o critério epistemológico final da "teoria moral secular". Na próxima postagem levantarei algumas objeções a esse método.