7 de abril de 2013

Deveres sem pessoas - parte 2

No final da primeira parte, afirmei que ainda não decidira "que estratégia expositiva e argumentativa" seria utilizada em meus comentários ao artigo do Dr. David O. Brink, A autonomia da ética. Eu não sabia se era melhor seguir a sequência ditada pelo artigo ou organizar os tópicos segundo meus próprios critérios de relevância. A segunda ideia me pareceu atraente num primeiro momento por haver no artigo alguns temas, méritos e equívocos que são recorrentes ao longo de todas as quinze páginas. No entanto, o modo de organização do autor tem suas vantagens, e creio que, ao segui-lo, facilitarei a vida do leitor que queira ir lendo-o aos poucos, paralelamente aos meus comentários. Com isso, alguns temas serão abordados diversas vezes ao longo da presente série, e cada vez, assim espero, acrescentará algo ao que já havia sido dito. Não obstante, reservo-me o direito de sair algumas vezes da sequência para explorar certas conexões que considero relevantes. Hoje lidarei com a seção introdutória do artigo, [1.1-2.1].

O parágrafo inicial do artigo, [1.1], é muito importante, pois apresenta pressupostos úteis para a compreensão de todo o texto, e antecipa também alguns de seus pontos fortes e fracos. Ali o autor declara seu compromisso "profundo" com a "objetividade da ética", no sentido de que há "factos ou verdades sobre o que é bom ou mau [...] independentemente das crenças morais ou das atitudes de quem os avalia". Sem isso, a ética seria subjetiva. O autor deixará claro, sobretudo em [6.1], que, para ele, essa independência precisa existir também em relação à vontade de Deus. Para mim, essa dualidade entre subjetividade e objetividade não faz sentido na descrição do ser de Deus. Mas ainda estamos na introdução, e haverá momentos melhores para discutir isso. Para não complicar desde já, aceitarei provisoriamente essa definição de objetividade aplicada aos seres humanos. O autor levanta então três pontos, todos ligados ao comprimisso com a objetividade da ética.
 
1. Tal compromisso "faz parte de um compromisso com a normatividade da ética. Os juízos morais exprimem afirmações normativas sobre o que devemos fazer e valorizar." Concordo com isso. Se a moral, em algum sentido, não estiver acima do indivíduo, não pode impor deveres sobre ele. Sem objetividade não há normatividade.
 
2. "A normatividade [...] pressupõe a falibilidade, e a falibilidade implica a objectividade." Também aqui concordo, e aprecio a clareza e a concisão com que o autor expressou essa ideia. C. S. Lewis afirmou algo semelhante em Cristianismo puro e simples, do seguinte modo:

"Discutir significa tentar mostrar que o outro está errado. E não haveria sentido em tentar fazê-lo a menos que houvesse algum tipo de acordo sobre o que é Certo e Errado; assim como não faria sentido dizer que um jogador de futebol cometeu uma falta se não houvesse algum acordo sobre as regras do futebol."

Não há possibilidade de erro sem um padrão do que é correto e deve ser reconhecido como tal, e nesse sentido a falibilidade moral do homem pressupõe tanto a objetividade quanto a normatividade da ética.

3. "Claro que este pressuposto pode estar errado. Poderá não haver padrões
morais objectivos. O nosso pensamento e discurso morais podem estar sistematicamente errados. Mas esta seria uma conclusão revisionista, a aceitar apenas em resultado de argumentação alargada e irresistível a favor da ideia de que os compromissos da objectividade da ética são insustentáveis."


Aqui a coisa começa a esquentar. O autor sabe que poucos ateus estão dispostos a um compromisso com a objetividade da ética. Eu mesmo conheço bem poucos ateus assim, sendo a filósofa liberal Ayn Rand talvez a mais famosa. Quase todos assumem alguma teoria subjetiva (ou cultural, isto é, intersubjetiva) da moral e, ao fazê-lo, embora geralmente não se deem conta disso, abrem mão da possibilidade de uma visão consistente sobre a normatividade da ética e a falibilidade humana - os pontos 1 e 2 acima, respectivamente. De algum modo, o mesmo ateu que acaba de estabelecer um domínio de validade restrito para o conteúdo da lei moral condenará, no instante seguinte, o procedimento de alguém que, segundo sua própria teoria, não estava sujeito àquele domínio. O momento não é apropriado para uma discussão ampla do problema, mas devo mencionar pelo menos um exemplo comum do que tenho em mente: o ateu para quem não há moralidade possível fora do consenso cultural e social, mas que se apressa em condenar a (real ou imaginária) execução de ateus pela Inquisição medieval. Ora, se sua teoria fosse correta, não só os inquisidores estariam moralmente justificados, pois seu procedimento era bem aceito socialmente, mas também o ateu queimado na fogueira seria imoral, pois o ateísmo não era tolerado por aquela sociedade.

Brink claramente tem uma percepção correta desse tipo de problema, e é por isso que fez questão de conectar a normatividade à objetividade da ética. O ateu que acabo de citar não vê essa conexão: ele pretende abrir mão da objetividade da ética mantendo, no entanto, sua normatividade, e é só com base nessa incoerência que pode condenar o inquisidor e justificar o ateu executado. Sem objetividade, a moral se torna simples questão de gosto, e mesmo um gosto compartilhado por quase todos não tem caráter normativo. No caso, a unanimidade da cultura moderna contra a criminalização do ateísmo não impõe nenhum dever sobre o inquisidor do século XIII. Se ele estava errado, só pode ter sido por alguma outra razão. Brink é consequente nesse ponto, e só isso já basta para colocá-lo em situação de vantagem sobre quase todos os ateus que conheço.

Também vejo justiça em sua afirmação de que a objetividade da moral deveria ser negada "apenas em resultado de argumentação alargada e irresistível". Ao menos dentro de meu reconhecidamente limitado universo de leituras, nunca vi um ateu fazendo isso. Quase todos a descartam sumariamente depois de algumas linhas, em que aludem à poligamia ou ao canibalismo praticados não sei onde, com a mesma sutileza metodológica com que Allan Kardec, em O evangelho segundo o espiritismo, provou que João 3.3 ensina a reencarnação. Tal atitude é nada menos que inconsequente, na medida em que a normatividade e a possibilidade coerente de uma falibilidade moral humana objetiva são jogadas pela janela sem que os que o fazem se deem conta disso.

Por outro lado, há um sentido em que considero os ateus que acabo de criticar mais coerentes que o Dr. Brink. Se este tem uma melhor percepção da natureza da lei moral, aqueles têm dela uma visão mais consistente com sua ontologia materialista. Isso se manifesta no próprio argumento da não-objetividade da lei moral com base na falta de consenso entre as diversas culturas. Por que a falta de consenso seria uma evidência de não-objetividade? Não há consenso entre as culturas sobre muitas coisas, como a origem do homem, a idade do universo, a natureza dos astros e muitos outros temas acerca dos quais o ateu moderno não é nem um pouco relativista. Portanto, a falta de consenso não é em si mesma um bom argumento, e essa diferença de posturas deve se basear em algo mais profundo.

Por que o materialista aceita o argumento da falta de consenso contra a objetividade da moral, mas não, por exemplo, contra a objetividade da idade atribuída pela ciência ao universo material? Precisamente porque é um materialista. Para ele, só a matéria tem existência objetiva, de modo que as questões relativas a ela podem, ao menos em princípio, ser investigadas racionalmente, e a falta de consenso, que pode durar séculos, milênios ou para sempre, de modo algum depõe contra a existência de uma verdade objetiva. Mas juízos morais não são feitos de matéria. É só por isso que o ateu geralmente não se dispõe a esperar milênios, nem séculos, e muitas vezes nem cinco minutos, antes de declarar inúteis quaisquer tentativas de estabelecer uma visão objetiva da moralidade. O materialismo é causa, e não consequência, de uma visão subjetivista da ética. Consequentemente, o apelo à falta de consenso moral como argumento contra a existência de uma lei moral objetiva (de origem divina, por exemplo) é nada menos que um argumento circular.

Como não sou materialista, minha ontologia não me induz a engolir com tanta facilidade a crença na subjetividade da moral. De meu posto de observação, portanto, vejo como positiva a censura velada do Dr. Brink à falta de rigor argumentativo e à má percepção da realidade moral dos que negam a objetividade da ética. Mas, dados os pressupostos metafísicos do materialismo, a adesão apressada e irrefletida de seus partidários ao subjetivismo ético me parece mais justificável que a persistência de Brink, que muitos ateus poderão ver como resquício de uma ontologia "religiosa" furada. Sua tentativa de lançar sobre eles o ônus da prova só faria sentido fora do materialismo que ambos os lados compartilham.

Essa questão se relaciona ao que vejo como um dos problemas fundamentais da abordagem de Brink, do qual voltarei a falar em várias ocasiões: em [9.4], por exemplo, é dito expressamente que "as exigências da moralidade têm uma fonte metafísica que não a vontade de Deus". Essa mensagem é transmitida em vários momentos, de modo explícito ou não. Mas em momento algum do artigo existe sequer o mais leve esforço de dizer que fonte metafísica é essa; sempre que o autor a menciona, o faz apenas para dizer, de algum modo, que Deus não tem nada a ver com isso. Mas, ainda que ele tivesse razão, seria temerário estabelecer a objetividade moral sobre um fundamento metafísico absolutamente desconhecido, sem explicar como ele se encaixa em uma ontologia materialista - ou seja, explicar como um universo feito apenas de energia, tempo, espaço e leis físicas pode conter uma moral objetiva. O autor não dá sinais de perceber isso como um problema.

Não devo, porém, ser injusto. O artigo informa em [n3] que Brink tem um livro inteiro destinado à "defesa sistemática da objectividade ética". Trata-se da obra Moral Realism and the Foundations of Ethics [O realismo moral e os fundamentos da ética], de 1989. É claro que não li o livro, e por isso a crítica do parágrafo anterior não deve ser tomada como absoluta. Mas sinto-me à vontade para fazer essa crítica com base em duas razões. A primeira é que o site da Amazon traz uma resenha muito bem escrita (a melhor que encontrei) que inclui um resumo do livro, e tudo nela sugere que o autor toma ali um caminho muito diferente, passando longe dos problemas que acabo de levantar. E a segunda é que, ainda que o autor tenha se pronunciado sobre eles em outro lugar, é sintomático que ele não tenha julgado relevante fazer algum comentário mais direto, ainda que breve, sobre a pertinência do problema para o tema específico do artigo.

Em resumo, o que estou tentando mostrar com meus comentários sobre [1.1] é que o ateísmo leva necessariamente a um de dois becos sem saída no terreno da ética: há os que, como Brink, buscam fazer justiça ao senso moral e privilegiam a consistência de sua filosofia ética, mas, enquanto fazem isso, fingem que não vivem em um cosmos de pura matéria. Mas muitos se mantêm fiéis e consistentes com o materialismo, exceto ao condenar moralmente aquilo que consideram condenável - como alguns aspectos do cristianismo, por exemplo.

No restante dessa seção introdutória, [1.2-2.1], há alguns detalhes que deixarei para comentar futuramente. Mas esse trecho expõe as motivações para o estabelecimento da autonomia da ética, que são basicamente três:

1. Em [1.2], o autor se queixa do "apelo frequente a académicos religiosos ou membros do clero como autoridades em questões moralmente significativas", devido à ideia de que "a única maneira de compreender os padrões morais objectivos é em termos de mandamentos divinos", do qual dependeriam também os "direitos constitucionais", "apesar da separação entre igreja e estado".

2. Em [1.3], o Dr. Brink diz que entender a moral dessa forma é perigoso porque, "se o teísmo for falso, então o pressuposto de uma ética objectiva fracassa, e temos de acolher o niilismo moral [...] ou o relativismo", e assim "rejeitar a possibilidade de uma moralidade secular objectiva".

3. Em [2.1], é dito que a conclusão de que "a objectividade da ética não fica refém da verdade do teísmo" é "bem-vinda na medida em que o teísmo é em si um compromisso problemático".

Prefiro comentar essas motivações no final, depois de analisar os argumentos do Dr. Brink em defesa da autonomia da ética. Mas creio que é conveniente explicitá-las desde já, para entendermos o que ele está colocando em jogo. Ele acha importante estabelecer a autonomia da ética porque sem ela somos obrigados a escolher entre o relativismo ou o niilismo (seculares, mas não objetivos) e o "teísmo" (objetivo, mas não secular), e nenhuma das opções lhe parece desejável. Em especial, evitar o compromisso com uma moral teísta é necessário para salvaguardar a "separação entre igreja e estado" e reduzir o poder cultural e político dos líderes religiosos. Além disso, o ateu poderá viver de modo intelectualmente mais confortável, sem se inquietar muito com o "teísmo".

Admiro a transparência do autor na expressão de suas motivações pessoais, ainda que ele o faça em tom acadêmico, de modo indireto e impessoal. Essas motivações são de natureza cultural, política e religiosa. Naturalmente, suas motivações só apelarão para o coração dos leitores na medida em que eles compartilharem de seus compromissos fundamentais. O relativista, o niilista e o "teísta" poderão simplesmente discordar da pertinência (ou mesmo da correção moral, exceto no caso do niilista) das motivações do Dr. Brink. De qualquer modo, meu interesse nessa parte é sobretudo negativo: o autor admite que, sem a autonomia da ética, não resta lugar para uma moralidade secular objetiva. Concordo com ele e, uma vez mais, admiro sua argúcia. Apenas gostaria de saber qual das três alternativas ele escolheria se fosse convencido da falsidade de sua "autonomia da ética".

Um comentário:

Roberto Vargas Jr. disse...

Meu caro herege,
Se há a afirmação de que há fundamento metafísico (o que em si é bom sinal), mas não se apresenta tal fundamento (sinal perdido), constrói-se sobre o que?
Para minha leitura, o discurso morre aí. Mas como você costuma tirar leite de pedra, sou todo "ouvidos".
NEle,
Roberto