1 de maio de 2014

Sobre critérios e limites

Várias pessoas já me perguntaram o que penso do trabalho de William Lane Craig e de seu método apologético. A resenha abaixo responde em parte a essa pergunta. Escrevi-a quando ainda residia em Fortaleza, e ela foi publicada na revista Fides Reformata no segundo semestre de 2012 (volume XVII, número 2, p. 129-132). Pesam sobre ela algumas limitações, decorrentes sobretudo da limitação de espaço, uma exigência da revista que trouxe, por outro lado, a vantagem de me obrigar a colocar de lado minha costumeira prolixidade e ir direto ao que interessa.

Essa resenha não existiria sem o meu amigo Yago Martins. Foi ele quem me convenceu de que eu devia ler o livro, e para isso me emprestou seu exemplar. Meses mais tarde, ele me emprestou o livro de novo, para que eu pudesse escrever a resenha. Fica aqui registrada, portanto, minha dupla gratidão.

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CRAIG, William Lane. Em guarda: defenda a fé cristã com razão e precisão. São Paulo: Vida Nova, 2011. 317 pp.

William Lane Craig é um dos mais famosos defensores da fé cristã vivos. Seus dois doutorados – em filosofia e teologia, sob a orientação de John Hick e Wolfhart Pannenberg, respectivamente – foram voltados para a apologética, sua paixão e vocação. Nessa obra, Craig fala ao cristão que busca se comunicar com incrédulos ou fortalecer a própria fé contra as tentações do intelecto. O tom é simples e didático, podendo ser digerido pelo leitor atento mesmo quando trata dos temas mais difíceis.

Os capítulos iniciais são introdutórios, explicando a natureza (cap. 1) e importância (cap. 2) da apologética. Os seguintes trazem argumentos em favor da existência de Deus. Dois são cosmológicos: o de Leibniz (cap. 3) e o kalam (cap. 4), baseado nas obras de Abû Al-Ghazâlî e Stuart Hackett. Seguem-se o argumento do ajuste fino das constantes físicas fundamentais à existência de vida (cap. 5) e o argumento moral (cap. 6). O sétimo lida com a objeção posta pelo sofrimento. Os capítulos finais tratam de Jesus: dois defendem a historicidade de sua declaração de divindade (cap. 8) e de sua ressurreição corpórea (cap. 9), e o último defende Cristo como único caminho para Deus (cap. 10).

A descrição da estrutura do livro mostra que Craig segue o método da “apologética clássica”, que busca estabelecer primeiro o teísmo em geral e só depois o cristianismo[1]. Em minha opinião, os argumentos mais sólidos são levantados nos capítulos 3 a 5. O argumento moral de Craig é menos persuasivo que o de C. S. Lewis[2]. O capítulo 8 é o menos didático, podendo soar algo obscuro ao leitor pouco familiarizado com debates sobre a historicidade dos evangelhos. E o capítulo 10 não chega a arranhar as formas mais sofisticadas de pluralismo.

O método de Craig consiste em buscar premissas aceitáveis igualmente ao cristão e ao incrédulo e extrair daí conclusões favoráveis ao cristianismo, de modo estritamente silogístico: “argumentar é apenas apresentar uma série de enunciados ou premissas que levem a uma conclusão. E isso é tudo” (p. 14). Essa via leva naturalmente à busca de atalhos que minimizem a quantidade dessas premissas e simplifiquem o trajeto até a conclusão. E tal minimalismo leva à necessidade de não discutir o que não é essencial à linha argumentativa escolhida; assim, o apologeta é levado a fazer concessões estratégicas à cosmovisão do incrédulo.

Os resultados de tais concessões formam um padrão notável em todo o livro. Ao defender que Jesus declarou ser Deus, Craig admite a teoria liberal-secular sobre a formação dos evangelhos e constrói seu argumento usando apenas as perícopes “unanimemente” tidas como autênticas. Ao fortalecer o kalam, ele endossa a autoridade da ciência moderna como palavra final sobre as origens do mundo físico. E, ao defender a justiça da condenação ao inferno, concede que nenhum pecado é grave o bastante para requerer uma punição perpétua, que ele justifica por outros meios. Assim, de concessão em concessão, Craig desperdiça a chance de expor a cosmovisão cristã de modo consistente, profundo e íntegro.

Não há problema em adotar provisoriamente os pressupostos do incrédulo para fins de discussão, em especial para revelar a inconsistência interna de sua cosmovisão. Francis Schaeffer fazia isso com muita propriedade[3]. Craig revela certa influência schaefferiana, mas restringe o alcance da apologética ao fazer dessa abordagem o método por excelência. Dentre as manifestações deletérias dessa restrição, nenhuma é tão severa quanto a desconsideração do aspecto espiritual que há em toda rejeição intelectual do Evangelho. Afinal, a escolha de um punhado de premissas comuns como ponto de partida só faz sentido se não houver nada de errado nelas, ou por trás delas. Mas por trás de um cérebro incrédulo há sempre um coração rebelde contra o Criador e apegado a uma ilusão de inocência. Craig não ignora isso, mas sua percepção do fato não tem grande efeito sobre seu método, que trata o problema como primariamente cognitivo ou, quando muito, emocional. Sua apologética se propõe a desfazer mal-entendidos, e não a remover pretextos, denunciar ídolos e convocar rebeldes ao arrependimento.

Isso se manifesta com especial clareza no capítulo sobre o problema do sofrimento. Craig levanta toda sorte de explicações: Deus não pode violar a liberdade humana; um mundo sem sofrimento talvez não fosse melhor; o bem disponível é incomparavelmente superior; Deus se importa e sofre conosco. Mas não diz a verdade que leva diretamente ao cerne do Evangelho: o sofrimento brota da depravação do coração rebelde contra Deus[4]. O incrédulo, nesse capítulo, é apenas alguém que tem direito a explicações pelo sofrimento que lhe impuseram. E Craig age como bom advogado, esforçando-se por mostrar que seu cliente foi posto no banco dos réus por engano, não merecendo estar ali porque fez o melhor que pôde para evitar nosso sofrimento. Ele não dá sinais de notar que há algo muito perverso na pretensão de julgar a correção moral do decreto divino. Como é dito no fim, “o verdadeiro problema” do sofrimento é apenas de ordem emocional (p. 189).

Depreende-se daí que a premissa basilar do método de Craig é a boa fé do incrédulo, em oposição à doutrina bíblica e reformada da depravação total, repudiada por ele juntamente com a absoluta soberania de Deus. A apologética de Craig é criticável em muitos pontos, mas não é incoerente com sua teologia, arminiana com dois ou três passos na direção do teísmo aberto. O problema da apologética de Craig é, pois, teológico, já que sua teologia gera uma antropologia que, eivada de concessões ao humanismo, minimiza os efeitos da queda.

O que impede Craig de confrontar os pressupostos do incrédulo é o fato de ele próprio compartilhar deles em certa medida. Decorre daí a relativa superficialidade de sua argumentação e de suas metas. Se a função da apologética fosse mostrar a veracidade do cristianismo ao incrédulo segundo os critérios dele próprio, jamais seria possível desafiar esses mesmos critérios e expor a cosmovisão cristã de modo contundente. O apologeta se perderia então no esforço colossal de descer ao nível do interlocutor, reduzindo o cristianismo até que coubesse nos padrões pré-definidos pela mente não-regenerada. Levado às últimas consequências, tal método desfaria o próprio escândalo da cruz para provar que nossa fé é muito razoável segundo critérios “neutros” e “objetivos”. Mas então a apologética já teria se tornado muito mais islâmica que cristã. Qualquer método que apela a alguma faculdade humana (razão, inteligência, intuição, sentimento etc.) ou disciplina científica (física, biologia, história, ontologia etc.) como árbitro soberano está apenas se recusando a remover um ídolo.

A despeito dessas severas limitações, o livro possui várias qualidades notáveis que tornam sua leitura proveitosa. É justo dizer, parafraseando Cornelius Van Til, que Craig é muito mais virtuoso que sua teologia, e devemos aprender com ele a não ser menos virtuosos que a nossa[5]. Transparece na obra seu amor por Cristo e pelo Reino, sua humilde alegria em tomar parte no que é, a despeito da sofisticação, um ministério de pregação do Evangelho e auxílio aos santos. Craig não ignora a importância do amor e da mansidão na apologética, e é notório que o livro foi escrito com profundo zelo professoral e compaixão, pelos leitores cristãos e pelos incrédulos que, através deles, ouvirão a mensagem da salvação.

É louvável também a presença da pessoalidade na obra. Craig sabe que a pessoa toda deve se envolver no ato da apologética. Entre as partes mais interessantes estão o relato de sua conversão e dois interlúdios intitulados “A jornada de fé de um filósofo”, que narram seu encontro com a apologética e o modo pelo qual Deus lhe abriu caminho para os estudos e a carreira de defesa da fé. Fica patente a ação soberana da Providência, que levantou e tem usado esse servo para manifestar a glória de Cristo.

As evidências discutidas no livro podem e devem ser aproveitadas como ferramentas apologéticas úteis em determinados contextos. As verdades ali expostas podem ser absorvidas por um programa apologético mais bíblico, abrindo espaço para um confronto intelectual e moral que o Espírito pode usar para convencer o incrédulo de seu pecado. E o valor dado por Craig ao rigor, à clareza e à leveza da argumentação constituem lições valiosas transmitidas ao leitor, menos pela teoria que pelo exemplo.

Em guarda pode ser instrutivo para cristãos que vivem dúvidas intelectuais honestas ou não têm a necessária maturidade para anunciar a mensagem da cruz com rigor intelectual e compaixão. O leitor, seja jovem, pastor, líder ou educador, pode ser levado por essa leitura a um contato salutar com novos conhecimentos e à expansão de seus interesses.

As limitações apontadas aqui não devem, pois, ser tomadas como sinais da inutilidade do livro ou de propostas apologéticas similares. Ao contrário, o leitor que tiver consciência dessas limitações poderá aproveitar muito melhor seus vários pontos positivos. Não devemos desconsiderar que, a despeito delas, Craig tem desempenhado um ministério bem-sucedido na conversão de incrédulos e no aprimoramento intelectual dos santos, para a glória de Deus. Admitir isso não é fazer concessão ao pragmatismo ou minimizar a importância dos erros expostos, mas sim apontar um motivo de encorajamento para todos nós: tal fato demonstra que, na manifestação do poder salvador e santificador, Deus não se deixa limitar pelas limitações de seus filhos.


[1] GEISLER, Norman, Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã. São Paulo: Vida, 2002, p. 61-64 e 182-184.
[2] LEWIS, Clive Staples, Cristianismo puro e simples. 5ª ed. São Paulo: ABU, 1997, p. 1-18.
[3] SCHAEFFER, Francis August, O Deus que intervém. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
[4] Na verdade, em meio às 32 páginas do capítulo há meia página sobre nosso “estado de rebelião contra Deus” (p. 184), mas esse ponto é mencionado de passagem apenas para descrever a explicação cristã para o sofrimento, sem o intuito de desafiar a rebeldia de quem quer que seja.
[5] “Muitos arminianos são muito mais virtuosos que suas teorias. [...] E aqui é necessário confessar que [nós, reformados], muito frequentemente, somos menos virtuosos do que nossa posição.” (VAN TIL, Cornelius, Apologética cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 142-143). Cf. a resenha de José Carlos Piacente Júnior em Fides Reformata, v. XVII, n. 1, 2012, p. 105-109.