29 de outubro de 2013

Deveres sem pessoas - parte 13

Esta é a mais longa série de postagens que já publiquei neste blog. Ao longo dela, venho tecendo comentários sobre o artigo A autonomia da ética, no qual o filósofo ateu David Owen Brink buscou mostrar que não há papel para Deus na objetividade moral. Nesta postagem, passo a me dedicar à seção Motivação moral e a autoridade da moralidade, [10.3-12.5]. Nela o autor busca excluir Deus do terceiro papel possível que ele pode ter na moral: o da motivação para uma conduta correta (as duas primeiras eram o papel metafísico e o epistemológico). Brink dá início à seção, em [10.3], declarando que "Deus desempenha um papel motivador na ética se fornece um incentivo necessário para sermos morais". Naturalmente, ele não crê que seja o caso. Mas nesse parágrafo inicial ele apenas descreve esse possível papel. Vejamos como o faz:

"Se calcularmos apenas os custos e benefícios terrenos da virtude, parece que não podemos sempre mostrar que é sempre melhor para nós sermos morais. Mas se a justiça exige que se puna o vício e se recompense a virtude, a justiça perfeita de Deus parece implicar que ele usaria o Céu e o Inferno para recompensar a virtude e punir o vício. Porque a vida depois da morte é eterna, as suas sanções e recompensas tornariam irrelevantes os custos e benefícios terrenos da virtude e do vício. Segue-se que a perspectiva de sanções e recompensas divinas poderia fornecer uma motivação prudencial para a moralidade que parece ausente se restringirmos a nossa atenção às sanções e recompensas seculares."

É essa a tese que o Dr. Brink pretende refutar no restante da seção. Considero interessante destacar que nesse ponto, embora o autor ainda não tenha sequer começado a argumentar, seu equívoco já está mais que evidente: o tratamento que ele dá à questão é estritamente "prudencial". O único papel motivacional que Brink é capaz de conceber para Deus é o de executor de um princípio impessoal de justiça, cuja existência torna pouco recomendável que cada um aja como bem entende. Como em todo o restante do artigo, nenhuma consideração séria de Deus como um ser pessoal é tentada aqui.

Que outras motivações Deus poderia exercer sobre a moralidade? Ora, imaginemos que o Dr. Brink chegue em casa certo dia e diga à sua esposa: "Querida, andei pensando e concluí que sua presença em minha vida é um excelente motivo para eu não procurar outras mulheres. Afinal, a probabilidade de você descobrir tudo é sempre alta, e isso geraria para mim consequências desagradáveis que vão desde o clima ruim aqui em casa até a perda da admiração de pessoas que eu prezo, o que fatalmente ocorreria se você contasse a elas sobre minhas escapulidas. Além disso, se você resolvesse se divorciar de mim, seria pior ainda: eu iria à falência pagando a pensão das crianças. Por isso, alegre-se: você tem para mim um papel motivador muito forte." Nesse caso, a sra. Brink teria algum motivo para se sentir amada e lisonjeada? Acharia ela que seu marido tem uma noção correta do que significa o casamento? Que ele está se privando do adultério pelos motivos corretos? É claro que não. Ao contrário, ela teria plena razão em se sentir insultada e humilhada.

No entanto, o "papel motivador" que Brink atribui a Deus nesse parágrafo é idêntico, exceto pelo fato de que Deus seria mais eficiente em descobrir seus deslizes. Brink insulta Deus com uma naturalidade tal que torna o insulto ainda mais grave. Sequer lhe ocorre que alguém possa ser motivado a uma vida moralmente correta por outros fatores: por amor a Deus (que leva naturalmente ao desejo de agradar a pessoa amada), por gratidão às tantas bênçãos recebidas da parte dele, por desejar glorificar seu nome no mundo, por desejar a semelhança de Cristo, por ter consciência de sua própria treva interior e estar convencido de que só Deus pode nos libertar dela... Não; Brink não tem nenhum interesse em Deus como pessoa, e não é capaz de conceber que alguém possa tê-lo. Para ele, Deus é só uma instância jurídica infalível. É assim que as motivações excusas do coração humano, em sua perversão e rebeldia contra Deus, são "inocentemente" convertidas em premissas dogmáticas de sofisticadas teorias filosóficas. A atitude do Dr. Brink em [10.3], bem como em todo o restante da presente seção, é uma excelente ilustração do que a filosofia reformada chama de "efeitos noéticos do pecado".

De [11.1] em diante, Brink passa a se ocupar da "razão pela qual havemos de dar importância às exigências morais"; em outras palavras, "procura-se uma defesa prudencial da autoridade da moralidade". Assim, ao menos por enquanto, o autor prosseguirá na mesma limitação auto-imposta declarada no parágrafo anterior, a qual é bastante artificial. Segundo Brink, não podemos "estar à procura de uma razão moral para sermos morais". Não vejo por que não, exceto pelo fato de que, para a teoria moral secular, é difícil responder a essa pergunta. A objetividade da moral é em si uma razão suficiente para sermos morais, pois taz como implicação imediata a normatividade do aspecto moral da realidade. E todo o problema do compromisso de Brink é que ele não é capaz de fundamentar adequadamente essa objetividade.

Não obstante, uma vez constatada a (ao menos possível) tensão entre as exigências da moral e o nosso interesse próprio, é necessário responder a ela. Brink começa uma "defesa secular tradicional da moralidade" dizendo, em resumo, o seguinte em [11.2]:

"Apesar de poder ser desejável ficar com os benefícios do cumprimento alheio das normas de temperança e cooperação sem incorrermos nós próprios nesse ónus, as oportunidades para o fazer são infrequentes. [...] Por esta razão, o cumprimento é tipicamente necessário para usufruir dos benefícios do cumprimento constante dos outros. [...] o cumprimento é muitas vezes necessário para evitar sanções sociais."

Os destaques são meus, e os fiz a fim de mostrar que Brink reconhece as limitações desse método. Isso fica explícito em [11.3], quando ele diz que, "desde que entendamos a justificação prudencial da moralidade em termos de vantagem instrumental, a coincidência secular entre a moralidade relativa aos outros e o interesse próprio iluminado tem de ser sempre imperfeita. [...] A coincidência imperfeita entre a moralidade e o interesse próprio implica que a imoralidade não tem sempre de ser irracional". De fato, e talvez aqui resida o maior mérito de Brink nessa seção. Na medida em que reduz a moralidade à racionalidade, essa visão não pode deixar de conceder ao indivíduo o direito (moral) de avaliar racionalmente quais são as exceções que valem a pena. Assim, essa justificativa falha completamente. Afinal, os critérios podem variar de pessoa para pessoa. E, ainda que o juízo de alguém sobre a conveniência de agir mal em um dado caso seja equivocada, só poderemos acusar essa pessoa de ser pouco inteligente, mas não de ser imoral.

Em [12.1], Brink volta a introduzir Deus na conversa: "É claro que um Deus omnisciente, omnipotente e perfeitamente bom poderia fazer sanções e recompensas eternas, de modo a tornar perfeita a coincidência entre a moralidade e o interesse próprio", e assim "poderia fortalecer a justificação prudencial secular da moralidade". Embora reconheça isso, no entanto, Brink levanta objeções ao papel motivador de Deus na moralidade. A primeira é que talvez a moralidade não exija "uma justificação prudencial perfeita", e "o que é moralmente correto não seja sempre prudente". Sem dúvida, a moralidade secular precisa lidar com essa possibilidade. Mas esse fato não chega a ser uma objeção, pois depende de um "talvez" para cuja demonstração não é feito nenhum esforço. E, na verdade, só a inexistência de Deus poderia constituir prova suficiente, de modo que, dado o escopo do artigo, o argumento é circular. Pois, se Deus existe, o que é moral é sempre prudente.

Na próxima postagem trarei o restante de minhas considerações sobre essa seção, e também os comentários finais ao artigo e, com isso, a conclusão desta série.