26 de agosto de 2010

Aventuras no berço do Ocidente - parte 9

O maior aperto que passei em terras francesas ocorreu unicamente por minha falta de competência para lidar com alguns dos elementos práticos mais básicos da vida. Passei a primeira semana numa pequena casa vizinha à do professor Yves, que gentilmente me dava carona até a universidade e de lá para casa. Depois disso, "mudei-me" para um quarto vago no apartamento da Caroline, amiga do professor Stéphane. Cheguei num domingo à noite, se não me engano, ao seu apartamento, situado no terceiro andar do edifício Le Toucan. Fui muito bem recebido, mas as caronas acabaram e passei a ir para o campus de ônibus. Mui solicitamente, Caroline me levou até o ponto na manhã seguinte, me disse qual linha eu deveria tomar e me deu o número de seu celular, para o caso de eu precisar de algo.

Trabalhei o dia todo, e naquele dia fiquei até mais tarde, tendo saído do laboratório por volta das 20h. Chegando ao ponto, descobri que o último ônibus da linha que eu deveria tomar passara 15min antes. Meu primeiro deslize: não olhei a tabela dos horários de ônibus pela manhã, tendo pressuposto que todas as linhas funcionariam até umas 23h, como em minha cidade do interior paulista. O segundo deslize eu só descobri dois dias depois: do lado oposto do campus existia um ponto pelo qual ainda passaria outro ônibus que me deixaria perto de meu lar temporário. Mas não me informei sobre isso também.

Eu não sabia se existiam táxis funcionando nas redondezas, nem como chamar um por telefone. A solução era ir a pé. Porém, a casa ficava em outra cidade. Eu já viera de Toulon a La Garde a pé, tendo gasto três horas, como já contei. Porém, não me animei com a ideia de fazer o mesmo caminho. Ele era bem complicado; talvez eu não fosse capaz de reconhecer à noite os locais por onde passara durante o dia; e eu estava ainda na outra casa quando o percorri, e não saberia, de qualquer modo, ir da antiga moradia à nova. Decidi, portanto, fazer um caminho que sabia ser mais curto e menos cheio de curvas: o caminho do ônibus que me levara à universidade pela manhã.

Mais tarde, lamentei essa decisão. O problema começou porque o ônibus fazia boa parte do trajeto em uma rodovia. Evidentemente, não era um lugar muito seguro para se caminhar. Porém, eu esperava poder acompanhar a rodovia andando pelas ruas vizinhas, e assim fui. Com o tempo, percebi que isso era impossível, dada a quase inexistência de ruas retilíneas naquela parte do mundo, como já tive oportunidade de ressaltar. Cada rua que eu tomava na esperança de poder acompanhar a rodovia vizinha logo se desviava de um modo que tornava difícil ou impossível cumprir meu intento. Várias vezes tive de voltar e tentar outro caminho, ou fui em frente e me perdi para só reencontrar a rodovia meia hora mais tarde e descobrir que avançara muito pouco. Toulon não era muito distante de La Garde, mas acabei, em vista de tudo isso, gastando três horas para chegar ao centro, coisa que eu esperara fazer em apenas uma hora.

Então surgiu outro problema. O lugar me parecia familiar. Eu sabia que passara de ônibus por ali e que não estava muito longe de "casa". Mas eu não tinha o endereço, e tampouco me preocupara em memorizar o caminho ou pontos de referência: precauções desprezadas por minha inépcia, mais uma vez. Só lembrava que o Le Toucan ficava próximo ao prédio da Securité Sociale. Eu tinha o número da Caroline, mas não tinha um cartão telefônico e não sabia onde comprá-lo. Na verdade, parecia-me impossível obter um, já que o comércio estava todo fechado. As ruas estavam quase desertas, mas encontrei numa esquina dois sujeitos que conversavam animadamente. Eram pobres pelos padrões do país e, como muitos franceses daquela região provençal, tinham um jeito que os fazia parecer italianos. Trataram-me com muita paciência e amabilidade, e com muito esforço consegui levá-los a entender que desejava comprar um cartão telefônico (eles não sabiam onde ficava o edifício, ou não entenderam minha pergunta). Explicaram-me como chegar a uma loja ainda aberta. Eu agradeci e fui andando na direção indicada. Não era difícil: bastava virar a terceira rua à esquerda. Mas os dois ficaram com medo de eu não ter entendido, de modo que, um minuto depois de haver me ausentado de sua companhia, fui alcançado por um deles, que decidiu me acompanhar até o local. Era mais uma prova da bondade do povo francês do sul. Meu guia se despediu de mim na entrada da loja, onde comprei o cartão. Mas, chegando à cabine telefônica mais próxima, descobri que o celular da Caroline estava desligado. E eu não tinha o telefone de mais ninguém naquele país; outro fruto de minha incompetência.

Sabendo que Le Toucan não estava longe, comecei a andar à sua procura. Acabei encontrando outros locais por onde já passara em meus passeios, em especial nos arredores da praça central. Ali encontrei uma placa indicando que o local continha um ponto de táxi. E, exatamente sob a placa, um banco de taxistas; e, sobre o banco, um sujeito sentado. Abordei-o, e descobri que falava inglês. Ele teve alguma dificuldade para entender aonde eu desejava ir, mas enfim disse que me levaria até lá por quarenta euros. Eu fora informado de que os táxis são caros na França, e eram mais de 23h, mas o sujeito visivelmente queria se aproveitar de minha péssima situação, já que o edifício procurado não poderia estar a mais de 2km dali. "É natural", pensei, e estava, em princípio, disposto a aceitar a exploração. Mas eu estava desconfiado, por vários motivos. O primeiro era que, pelas reações do homem, eu não estava muito convencido de que ele de fato sabia onde ficava o Le Toucan. O segundo era que a placa acima de nós dizia que o serviço de táxi só funcionava até as 20h. Será que o homem era taxista mesmo? O terceiro motivo reforçava minha desconfiança: não havia táxi algum nas redondezas. Eu disse que lhe daria os quarenta euros se ele me levasse até o Le Toucan. Ele queria pagamento adiantado. Minha suspeita aumentou. Perguntei-lhe onde estava seu carro. Ele disse que estava logo ali. Convidei-o a me levar até o carro. Ele respondeu que eu poderia esperar ali mesmo, pois ele buscaria o carro. Eu concordei e lhe disse que fosse buscar o carro. Mas ele queria que eu desse o dinheiro antes. Isso foi demais para mim. Agradeci-lhe a gentileza e disse que encontraria o lugar sozinho. Eu sou bobo, mas tudo tem limite.

Depois dessa que foi a coisa mais parecida com uma tentativa de assalto que experimentei naquele país, perambulei pelas redondezas por quase uma hora, mas sem sucesso. Estava exausto, faminto, sujo, irritado, abatido, com os pés doendo e xingando a mim mesmo constantemente por ser tão distraído e desprevenido. Dois pensamentos me ocorriam regularmente. O primeiro era o de dormir na praça. Seria minha primeira noite ao relento na vida, mas não estava frio, não havia perigo de violência e talvez não fosse tão desconfortável assim. O segundo era o de pedir a Deus que interviesse para me ajudar a resolver a situação. Mas eu sempre recuava diante da ideia, pois me parecia um atrevimento. Eu estava naquela situação por minha própria culpa, e não me sentia no direito de incomodar Deus. Ainda mais em se tratando de coisa tão pequena: que importância haveria em evitar uma noite ao relento numa praça limpa, numa noite fresca e sem perigo algum de qualquer espécie? Um teto e uma cama pareciam-me, naquele momento, uma espécie de luxo, e eu nunca gostara de pedir ou esperar luxo algum. Portanto, eu achava que a melhor coisa a fazer era aceitar meu castigo e aprender a lição com resignação.

Foi assim que completei minha quarta hora na rua. Decidi fazer uma última tentativa entrando por uma das ruas. Mas avancei cerca de três quarteirões e logo me convenci de que jamais estivera naquele lado da cidade. Profundamente desanimado, elevei a Deus uma curta oração, num tom de quem espera levar uma bronca por interromper algo importante para tratar de algo insignificante: "Bem, Pai, se o Senhor pretende fazer algo para me tirar dessa stiuação, a hora é esta". Nada aconteceu, e não fiquei nada surpreso com isso. Fiz meia-volta e comecei a me dirigir à praça, que ficava a uns 500m dali, já conformado com o que me aguardava.

Fiz o que me pareceu ser o caminho de volta, mas não saí exatamente no ponto onde achei que sairia. Era só o que faltava: temi que nem a praça eu conseguiria encontrar mais. Eu provavelmente viera por outra rua. Mas não importava: indo numa dada direção, pensei, certamente sairia na avenida que leva à praça, ainda que mais longe dela do que supusera. E de fato cheguei à avenida, mas vindo de um ângulo inteiramente inédito. Do outro lado dela vi a cruz da torre de uma igreja, que passara de todo despercebida até então. De súbito, lembrei-me vagamente de ter passado por uma igreja na manhã anterior, quando me encaminhava para o ponto de ônibus. Esperançoso, entrei naquela rua. No quarteirão seguinte, vi o prédio dos correios pelo qual também havia passado. E, pouco à frente, o enorme estacionamento do prédio da Securité Sociale, cercado de vários condomínios. Um deles era o Le Toucan, que logo localizei. Dez minutos depois de ter feito aquela patética oração, e sem ter me desviado do caminho uma única vez, eu estava entrando no meu quarto. Em meio à minha exausta alegria, palavras em francês brotaram espontaneamente de meus lábios: "Merci beaucoup, Senhor!"

Ao contar essa história, não tenho expectativa nenhuma de convencer algum cético da realidade do cuidado de Deus por mim. A importância do episódio só pode ser apreendida à luz de todo o restante de minha vida; e, por isso mesmo, não vejo como alguém poderia apreendê-lo tão bem quanto eu, uma vez que a mensagem foi dirigida justamente a mim, e sua importância vai muito além de qualquer coisa que uma cama e um teto possam representar por si mesmos. O ocorrido é um símbolo de toda a minha vida; mas não só porque foi a cruz de Cristo que me colocou no caminho certo, que minha incapacidade inata me impedira de encontrar por meu próprio esforço. E não só porque o encontro com a cruz representou o fim de toda consideração de meus méritos. Mas também porque ela me apresentou um Deus gracioso não só no essencial, mas também no secundário. Um Deus que não liga para meu ascetismo barato e pessimista. Ou, dizendo mais precisamente, que liga, já que decidiu me livrar dele.

Constatei naquela noite que havia algo profundamente errado em minha concepção de Deus. Minha visão da vida neste mundo - refiro-me à vida do cristão regenerado - dava pouco espaço à ideia da antecipação da glória futura e muito aos resquícios do inferno precedente. Ou, dizendo de outra maneira, dava muito espaço ao poder santificador do sofrimento e pouco ao da autêntica alegria. O efeito disso foi um pessimismo profundamente enraizado quanto aos assuntos deste mundo, uma constante expectativa de que tudo passaria a dar errado a qualquer momento, expectativa que se tornava quase uma convicção de que é assim que as coisas funcionam - a ponto de eu muito me espantar cada vez que algo importante dava certo em minha vida. Aconteceu isso quando passei no vestibular, quando consegui a bolsa de iniciação científica, quando consegui estágio, quando entrei no mestrado, quando foi aprovada a própria viagem à França. O curioso é que sempre fui muito abençoado por Deus em tudo o que fiz. Mas os fatos não bastaram para me convencer de que eu estava errado. Naquela noite, a misericórdia de Deus me ensinou uma lição que sua severidade não poderia ter ensinado. Deus me convenceu de que havia pecado em mim: uma parte de meu ser ainda não fora tocada pela alegria de ser filho de Deus, e continuava cedendo constantemente à tentação da religião fria, sisuda e ingrata.

Em boa hora Deus me deu esse puxão de orelha, pois ele estava me preparando para aceitar com a devida gratidão e confiança a maior bênção de todas - exceção feita, é claro, à própria salvação. Uma semana depois de voltar ao Brasil, comecei a namorar a Norma. Também em boa hora conto tudo isso no blog, nesta que é minha centésima postagem. A mudança vai muito além do acréscimo de um algarismo. Casamo-nos no último dia 31, e portanto este é o primeiro post que faço já casado. Nosso relacionamento foi, desde o começo, o mais poderoso instrumento já usado por Deus, não só para minha santificação, mas também para minha alegria. Hoje vejo que não há coincidência alguma nessa associação entre as duas coisas. Em nossa cerimônia, o pregador (o pastor Orebe) leu o texto bíblico que diz que "O que acha uma esposa acha o bem e alcançou a benvolência do Senhor" (Provérbios 18.22). Sem aquelas quatro horas perdido num recanto da Europa, talvez eu tivesse dificuldade para apreender plenamente o tamanho dessa benevolência da qual fui alvo recentemente. Durante certa fase de minha vida, considerei que uma esposa também fosse um luxo. Hoje me arrependo de ter subestimado os planos de Deus. O propósito desta postagem não é romântico, mas não posso deixar de dizer que a vida e a companhia da Norma me enchem da mais vibrante alegria e da mais humilde gratidão a Deus, de quem aprendi a receber graciosamente bênçãos que superam todas as minhas expectativas.