11 de setembro de 2011

Sutilezas causais - parte 4

Esta é a segunda postagem sobre o segundo capítulo do livro A soberania banida: redenção para a cultura pós-moderna, de R. K. McGregor Wright, intitulado A incoerência da teoria do livre-arbítrio. Na primeira parte expus o que me pareceu verdadeiro nesse capítulo, denunciei a falta de rigor filosófico de Wright e contestei a validade de seu argumento principal. Na segunda e na terceira partes respondi aos comentários do Dr. Alan Myatt acerca da primeira. Agora, voltando desse interlúdio, darei continuidade ao empreendimento inicial ao mostrar, contrariando as pretensões do autor, que existe ao menos a possibilidade historicamente concretizada de outras visões dentro da teologia e da filosofia reformadas. E farei isso analisando sua crítica ao posicionamento de William Shedd, um importante teólogo calvinista do século XIX, tal como se encontra delineado em sua Teologia sistemática. Wright diz sobre Shedd:

"Ele enfatiza detalhadamente que o conceito de uma vontade indeterminada é uma autocontradição. Ele desce aos mínimos pormenores para explicar como a vontade deve ter suas raízes na causação moral a fim de produzir caráter. [...] Ele diz que Anselmo faz uma distinção entre uma 'necessidade antecedente' e uma 'necessidade subsequente', que ele supõe poder ajudar-nos a entender 'o automovimento e a responsabilidade da vontade escravizada'. [...] Shedd continua: 'Aplicando essa distinção à queda da raça humana em Adão, não havia nenhuma necessidade antecedente de que essa queda da raça ocorreria. Foi deixado à autodeterminação da vontade humana que ela ocorresse.' Em outras palavras, na sua ânsia por preservar algum tipo de autodeterminação para a vontade, Shedd finalmente admite que as ações da vontade são não-causadas. [...] Shedd é um dos calvinistas típicos que sustentam uma boa visão da soberania de Deus, mas não querem abandonar algo do livre-arbítrio que torna, em última instância, o pensamento deles indistinguível do indeterminismo arminiano. Eles podem tentar encobrir suas ideias com palavras como mistério, paradoxo ou antinomia, mas, no final das contas, uma contradição permanece."


O juízo acima proferido contra Shedd me parece grosseiramente injusto, por três razões. A primeira delas é que o exposto de modo algum justifica a acusação de que o pensamento de Shedd é indistinguível do arminianismo, ainda que apenas "em última instância". Wright tem certa mania de exagerar tudo, parecendo insensível a sutilezas. Ele dividiu o mundo entre os que concordam com ele em todos os detalhes, quanto ao assunto em questão, e os demais, que são, assim, indistinguíveis. Esse não é um bom hábito mental.


A segunda razão é que a exposição do pensamento de Shedd também não justifica qualquer menção a "mistério, paradoxo ou antinomia". Shedd claramente não fez uso de nada disso; ao contrário, ele buscou - e julgou ter encontrado - uma solução racional para o problema. Talvez se possa dizer que a solução que ele encontrou não é válida; nesse caso, caberia a Wright demonstrar isso, coisa que ele não fez. De qualquer modo, o fato é que em lugar algum, a julgar pela descrição de sua argumentação dada pelo próprio Wright, Shedd apelou a um "mistério, paradoxo ou antinomia". Aqui a capacidade de leitura de Wright foi prejudicada pelo que ele andou lendo em outros lugares.


E, finalmente, a descrição que Wright faz "em outras palavras" da posição de Shedd não corresponde às palavras em si. Dizer que a Queda foi causada pela "autodeterminação da vontade humana" não é o mesmo que dizer que "as ações da vontade são não-causadas". Aqui Wright se baseia em uma pressuposição implícita, a qual não é compartilhada por Shedd: a de que livre-arbítrio é sinônimo de acaso, entendido como ausência de causa. Na verdade, porém, Shedd está apenas dizendo que a Queda não brotou espontaneamente do estado anterior do universo. Quem considera o conceito de causalidade ligado de modo intrínseco à sucessão temporal, de maneira que a causa de um evento necessariamente se situa antes dele no tempo, é o próprio Wright. Ao descrever a visão de Shedd segundo categorias que, na verdade, representam apenas suas próprias concepções prévias, ele se privou da oportunidade de sequer entender o que disse o velho teólogo. Sem isso, seu desacordo não vale nada, e seu julgamento vale ainda menos.


Vai ao encontro das declarações de Shedd, acima transcritas, o pensamento de Alvin Plantinga, filósofo reformado ainda vivo que se expressou melhor do que eu seria capaz. Eu ainda não o havia lido quando formulei minhas conclusões sobre o segundo capítulo de A soberania banida, mas ao lê-lo, meses mais tarde, fui por ele ajudado a ver o problema de modo mais claro. Plantinga trata do assunto no artigo Conselhos aos filósofos cristãos, cuja tradução foi revisada e publicada pelo meu amigo Roberto Vargas Jr. aqui. O texto todo é muito interessante, e recomendo entusiasticamente sua leitura a todos os interessados em compreender algumas ênfases da filosofia reformada, em especial no que tange ao pressuposicionalismo. Mas a questão da liberdade humana é abordada de modo mais específico na quarta seção, intitulada Teísmo e as pessoas. Ali, em meio a outras coisas, Plantinga diz o seguinte:


"O que está realmente em questão nessa discussão é a noção de agente causal: a noção de uma pessoa como fonte última de uma ação. De acordo com os partidários do agente causal, alguns eventos são causados, não por outros eventos, mas por substâncias, objetos - tipicamente agentes pessoais. E, pelo menos desde a época de David Hume, a ideia de agente causal tem se enfraquecido. É justo dizer, eu acho, que a maioria dos filósofos cristãos que trabalham nesta área rejeita o agente causal completamente ou suspeita desta ideia. Eles veem a causação como uma relação entre eventos; eles conseguem entender como um evento causa outro evento, ou como eventos de um tipo podem causar eventos de outro tipo. Mas a ideia de uma pessoa, digamos, causando um evento, lhes parece ininteligível, a menos que possa ser analisada, de alguma forma, em termos de evento causal. É claro que é essa devoção ao evento causal que explica a alegação de que, se você realiza uma ação sem ter sido levado a isso de modo causal, então sua ação é obra do acaso. Pois se eu afirmar que toda causação é, em última análise, um evento causal, então suporei que, se você realiza uma ação sem ter sido levado a isso de modo causal por eventos prévios, então sua realização da ação não é causada e é, portanto, obra do acaso."


Considero esse trecho útil por duas razões. A primeira é que ele explica onde reside o erro filosófico de quantos pensam como Wright no que diz respeito à dualidade "acaso e causa": no ato de, reduzindo tudo a eventos, ignorar justamente os elementos mais pessoais da realidade criada. A segunda razão é que Plantinga vai além disso, identificando, na história da filosofia, a fonte da qual se disseminou o erro em questão: a obra do agnóstico empirista David Hume. É desnecessário dizer que semelhante figura jamais deveria ser seguida pelos filósofos cristãos, reformados ou não, de modo tão acrítico. E tamanha semelhança entre seu pensamento e o de autores como Wright é apenas um indício adicional do racionalismo que venho enxergando e denunciando nessa escola.


Há ainda dois problemas que merecem menção no segundo capítulo. Um deles se manifesta neste trecho:


"O arminiano pode objetar com C. S. Lewis que Deus, estando 'fora do tempo', simplesmente veria os acontecimentos coincidindo com o caminho e feito a predição com base na sua presciência, do modo como teríamos presciência de como um filme termina por ver o roteiro do filme. O calvinista é, então, levado a perguntar: quem criou esse futuro que Deus é capaz de ver antecipadamente? Deus obteve esse conhecimento do mundo do mesmo modo que o empirista o obtém? [...] Se o futuro já existe em algum sentido na mente de Deus, é esse conhecimento certo e verdadeiro?"


Eu concordo em alguma medida com esse argumento, pois a cosmovisão de Lewis não é capaz de fazer justiça ao decreto divino. Contudo, Wright deseja levar o leitor a concluir que a presciência divina elimina a possibilidade da liberdade humana, visto que Deus não poderia prever algo que tem em si a possibilidade intrínseca de ocorrer de outro modo. O problema é que Boécio já havia respondido a isso com mais de um milênio de antecedência, ao defender filosoficamente que o que pode ou não ser conhecido sobre um ente não é determinado por sua própria ontologia, e sim pelas faculdades cognitivas do sujeito cognoscente. Talvez haja em algum lugar uma resposta convincente a esse argumento, mas o livro de Wright não é esse lugar. Aliás, o nome de Boécio sequer consta entre as dezenas de nomes ilustres envolvidos nessa controvérsia e citados no fim do livro ou na introdução histórica do capítulo inicial. Meu propósito com esta reclamação não é tanto o de endossar as posições de Boécio ou Lewis (que rejeito em boa parte) quanto o de enfatizar que parece, em certos momentos, que Wright tem um conhecimento demasiado superficial da história dos debates em torno do tema de seu livro. Não afirmo que isso seja um fato. Mas afirmo que faltaram no livro as evidências de que ele possui tal conhecimento.


Um último problema é que, embora levante argumentos que se opõem a todo tipo de liberdade, como esse que mencionei por último, Wright, mui contraditoriamente, afirma defender a inexistência da liberdade humana apenas no domínio espiritual, no autêntico sentido da palavra. É mais uma situação em que ele raciocina ou se expressa mal. Depois de criticar meio mundo calvinista por não levar sua teologia às últimas consequências, ele aparece com um papo que qualquer calvinista poderia endossar. O problema é conciliar isso com o restante do que ele mesmo disse. Transcrevo o trecho para que o leitor possa constatar isso por si:


"O calvinista prontamente concorda que é óbvio que façamos escolhas reais e que, portanto, a vontade existe como uma capacidade de tomar decisões. [...] Pode ser dito que a vontade é livre para realizar algumas escolhas, mas não outras. A maioria dos calvinistas concorda com Martinho Lutero que nós somos livres para fazer muitas coisas 'dentro do mundo'. Essas coisas incluiriam comer e jejuar, escolher café em vez de chá para a refeição matinal ou fazer um curso sobre história francesa em vez de história da Rússia. Contudo, quando entramos na esfera das coisas espirituais, somos muito mais limitados, não possuindo capacidade espiritual nem mesmo para entender o que Deus quer, muito menos o poder de fazê-lo."


Para concluir estas minhas considerações, retornarei ao comentário de Wright acerca de Shedd. Wright reconhece que a leitura de Shedd provoca no leitor a sensação de que ele "foi uma das mentes mais sutis que já escreveram sobre esse assunto". Nunca li as obras de Shedd diretamente, mas, em vista da grande quantidade de provas de que o próprio Wright não possui nada parecido com uma mente tão sutil, acho justo dar um voto de confiança ao primeiro e não tomar o último como autoridade no assunto. Infelizmente, essa comparação, desvantajosa para o autor de A soberania banida, ressalta de modo nítido aquele que é, por todas as razões que expus, o aspecto mais notório do capítulo em questão.

7 de setembro de 2011

Sutilezas causais - parte 3

Na presente postagem, darei continuidade ao post anterior, respondendo aos comentários que o Dr. Alan Myatt fez à primeira parte.

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Passemos agora ao argumento que levantei contra a dualidade entre "causa e acaso" defendida por Wright. Sua resposta, que apela para a autocontenção de Deus e a ausência de autocontenção no homem, já me passou pela cabeça, e é a que eu usaria para responder a mim mesmo, se fosse esse o propósito do post. Mas não é. O sr. disse sobre meu argumento: "Não vejo como isto serve para comprovar que o mesmo seja possível no caso do homem". Porém, eu não disse que meu argumento comprova alguma coisa. O que eu disse foi: "Esse fato deveria bastar ao menos para levantar a possibilidade de que o universo dos seres pessoais, entre os quais se encontra o próprio Deus, não seja regido pela mesma categoria de leis que se aplica ao universo inanimado". Em outras palavras, eu apresentei meu argumento como uma possibilidade não discutida por Wright, sem ter interesse em levar, de imediato, a linha sugerida por esse argumento até o final, o que fugiria demais ao simples propósito de criticar o autor naqueles pontos que ele não discutiu por se encontrarem fora de seu horizonte mental de possibilidades. E é por isso que eu concluí dizendo: "A incapacidade de vislumbrar essa alternativa me parece semelhante a um daqueles vícios de pensamento que aparecem de modo muito mais evidente em pensadores materialistas".

Mas, de qualquer modo, seu argumento exige resposta. Posso dar uma resposta exaustiva, e pretendo vir a escrever mais sobre isso, mas também posso dar uma resposta sucinta e suficiente, que é o que passo a fazer. Em termos lógicos, nossos argumentos se equivalem: eu afirmei a possibilidade da liberdade apontando uma semelhança entre o homem e Deus, em contraste com a natureza; o sr. negou essa possibilidade com base em uma semelhança entre o homem e a natureza, em contraste com Deus. Ora, todos sabemos que de fato existem no homem ambas as categorias de semelhanças e contrastes. Resta saber apenas em qual delas a liberdade se encaixa. Portanto, apelar a contrastes entre os modos de existência divino e humano não é, em si, objeção à possibilidade que levantei, de modo que ela continua de pé. Isso não significa, entretanto, que o sr. não tenha levantado alguma objeção ao que eu disse. Levantou esta aqui:

"No contexto do universo, negar que Deus tivesse determinado tudo que acontece levanta a questão: então quem, ou o que, o determinou? O arminiano gostaria de dizer: ou nada, ou o próprio homem. Mas o fato é: a coisa não causada, no caso de um ente finito, deve ser resultado do acaso. Qual seria a possibilidade intermediária? Deus é o único ser autocausado. O homem é, e sempre será, uma criatura."

Como está, sua afirmação é imprecisa, pois não conheço nenhum arminiano que sustente que o homem determina tudo o que acontece. Mas pude entender o que o sr. quis dizer. Porém, é justamente essa declaração do "fato" que precisava de uma demonstração. É na admissão desse "fato" como algo incontestável que reside o que descrevi como "um daqueles vícios de pensamento que aparecem de modo muito mais evidente em pensadores materialistas". O sr., na verdade, apenas repetiu o que Wright disse dezenas de vezes no livro, sem levantar um argumento melhor que o dele. Não darei uma resposta completa à sua pergunta sobre a "possibilidade intermediária" porque espero que a parte 2, que já estava pronta e será publicada em alguns dias (agora como parte 4), o ajude a entender melhor o que quero dizer.

No entanto, farei desde já alguns esclarecimentos: na minha opinião, a pergunta "quem determinou o que acontece?" é semelhante àquela famosa pergunta "você já parou de espancar sua mulher?": ao menos para quem nunca espancou sua mulher, o que quer que se responda será um erro. Digo isso porque não associo o decreto divino ao determinismo, e tampouco identifico a liberdade humana com uma suposta autonomia, no sentido em que Wright entende o termo. Essas associações me parecem fruto de uma confusão de níveis ontológicos.

Depois, o sr. disse: "Creio que a questão agora seria uma de exegese, para ver se a Bíblia realmente ensina a noção de livre arbítrio, no sentido no qual os arminianos (e talvez você, mas não sei com certeza) acreditam". Respondo, em primeiro lugar, que o sr. não deu atenção ao que eu disse já no segundo parágrafo do texto, nem ao que eu disse no parágrafo final do mesmo texto. Além disso, meu desacordo com Wright é filosófico, e não exegético, como expliquei acima. Fico feliz em saber que Wright e o sr. mesmo creem em mistérios. Contudo, não há nenhuma evidência disso em A soberania banida: há ali, ao contrário, um constante tom de condenação aos que creem nessas coisas. Ele chega até a dizer que a apologética cristã é enfraquecida por admissões desse tipo. Então, ou Wright se expressou mal nisso também, ou há alguma outra coisa que não estou captando, e que o sr. poderá explicar se quiser. Só posso julgar o livro pelo que nele está escrito, e o livro é racionalista. Não acuso o sr. de racionalismo. A única coisa de que o "acuso" é de não ter lido meu texto com suficiente isenção e atenção, talvez por ter visto nele juízos negativos (e, na sua opinião, injustos) sobre um amigo querido - o que, aliás, é bastante compreensível.

Concordo quando o sr. diz que "não é racionalismo não bíblico recusar-se a crer em contradições quando existem explicações razoáveis, tanto filosóficas como exegéticas, para removê-las". Naturalmente, eu não acusaria alguém de racionalismo (bíblico ou não) apenas por fornecer explicações razoáveis para algo. Apenas não acho que Wright tenha fornecido essas explicações razoáveis. Acuso Wright de racionalismo por fornecer explicações irrazoáveis à maneira racionalista. E isso nos leva às perguntas adicionais que o sr. fez a partir de minha resposta ao comentário do Aprendiz.

1. "O que é este desvio e qual evidência existe de que é uma novidade?" O desvio é a crença de que a relação entre a soberania divina e a responsabilidade humana não tem nada de inacessível à nossa mente, e também a adesão a um esquema determinista que nega a liberdade do homem. Com relação ao primeiro ponto, já que o sr. leu minha crítica a Crampton (espero que tenha lido as quatro partes), sugiro que leia o texto indicado ali, nas últimas frases, para o post Eu não sei, do pastor Augustus Nicodemus, com o qual concordo inteiramente e que trata do assunto com grande clareza. Veja também o longo comentário feito ao texto do pastor Augustus por Hermisten Maia, mostrando que Calvino tinha uma posição semelhante. Além disso, mostrei na primeira parte de minha crítica a Crampton que essa visão está também declarada na Confissão de Fé de Westminster, que também afirma expressamente a existência de liberdade no homem. É a isso, basicamente, que eu me refiro. E em minhas outras leituras dos reformadores e puritanos não encontrei nada que se assemelhasse às posições de Wright quanto a esses pontos específicos. Se o sr. encontrou, peço que use algo de seus trinta e tantos anos de estudos para demonstrar isso. Para mim, será um prazer ouvi-lo.

2. "Você está dizendo que a negação do livre-arbítrio que ele faz é um desvio recente?" Essa é outra daquelas perguntas irrespondíveis. Como eu disse acima, apenas nego o entendimento determinista (no plano ontológico) que Wright constrói a partir da soberania de Deus e da total depravação humana.

3. "Também, qual é a natureza do estrago que isto tem feito?" Sobre a confiança excessiva na razão, expliquei o estrago nas críticas a Crampton, sobretudo na última parte, que o sr. leu e com a qual afirma ter concordado em parte. Se quiser explicar melhor suas impressões sobre isso, talvez possamos nos aprofundar nesse ponto. Além disso, há a questão do erro filosófico propriamente dito, sobre o qual a continuação do texto deverá lançar mais luz, ainda que não de modo exaustivo.

4. "Você disse que é difícil definir o que é racionalismo." Suponho que o sr. esteja se referindo às palavras finais do meu breve texto sobre o racionalismo de Gordon Clark. Na verdade, o que eu disse é que é trabalhoso descrever o racionalismo. Eu não tinha em mente a produção de uma simples definição, e sim um mergulho exaustivo no espírito racionalista em busca de um diagnóstico de sua doença. Para os nossos propósitos atuais, acho que é suficiente dizer que o que entendo por racionalismo inclui o horror à ideia de que algo não seja acessível à compreensão humana, a confiança absoluta na razão como árbitro último daquilo em que se deve crer ou não e uma ênfase excessiva sobre as faculdades analíticas da mente humana em detrimento de outros modos de conhecimento.

Quanto à sua pergunta final, sobre em que discordo do irracionalismo contemporâneo, há coisas demais de que devo discordar, a tal ponto que me considero tão distante dele quanto do racionalismo contemporâneo. Eu não disse nada em parte alguma em favor do irracionalismo. Sua pergunta, portanto, não tem cabimento. Mas se o sr. quiser fazer perguntas mais precisas sobre pontos importantes do irracionalismo contemporâneo, prometo respondê-las, para lhe dar uma ideia mais precisa do que penso a respeito. À parte disso, tudo o que posso fazer pelo sr. é sugerir que leia meu texto Séculos de trapalhadas, no qual exponho o racionalismo e o irracionalismo como farinha do mesmo saco, como costumamos dizer.

Estou ciente de que não eliminei todas as suas dúvidas, nem expus de modo suficientemente profundo a maneira como vejo a questão. Mas continuemos conversando; creio que aos poucos, a partir da publicação da parte 2, começaremos a nos entender. Muito obrigado por sua visita e pela oportunidade oferecida para um aprofundamento das reflexões neste espaço. Um grande abraço!

5 de setembro de 2011

Sutilezas causais - parte 2

Publiquei recentemente a primeira parte do texto Sutilezas causais. Devo publicar a segunda parte em alguns dias. Porém, a primeira parte já foi alvo das críticas do Dr. Alan Myatt, teólogo americano bem conhecido que morava no Brasil até recentemente, e com o qual tenho amigos em comum. Ele não gostou do teor de meu texto e, na seção de comentários do post, fez-me algumas críticas e também solicitou alguns esclarecimentos. Redigi uma resposta, mas ela ficou grande demais para ser postada (em pequenas prestações) na caixa de comentários. Decidi, pois, transformá-la em dois posts. Publico agora a primeira parte, e deixo a segunda para amanhã. Só depois publicarei a segunda parte do post inicial, que já está escrita há tempos. Esse interlúdio trará, creio eu, a vantagem de permitir uma compreensão mais adequada do que virá depois. Recomendo a todos os leitores que leiam os comentários do Dr. Myatt à primeira postagem, bem como o do Aprendiz e os do Roberto, antes de dar início à leitura do que se segue.

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Olá, Dr. Myatt!

Apesar da demora, estou de volta para dar continuidade à nossa conversa. Eu não quis responder correndo, pois seu comentário merece uma consideração maior que a que eu podia dar de imediato. É realmente uma pena que o autor não possa responder por si mesmo, em virtude da dificuldade linguística. Mas tenho confiança de que o sr. possui competência para fazer uma defesa de seu amigo com eficiência comparável à que ele faria de si mesmo. Portanto, vamos lá.

Alguns esclarecimentos iniciais podem ser úteis. Sobre minhas considerações acerca da mente de Wright, o sr. começou dizendo que "este tipo de acusação não ajuda nada". E mais tarde afirmou que usei contra ele um "argumento ad hominem". Permita-me, diante disso, começar explicando que não fiz nada parecido. Um argumento ad hominem consiste em desqualificar as posições de alguém com base em considerações sobre sua pessoa. O que eu fiz foi "desqualificar" a pessoa com base em considerações sobre suas posições, o que é precisamente o contrário. E eu não fiz isso tendo em vista atingir o autor em si, e sim o autor enquanto exemplo de uma cosmovisão que considero deficiente. E, na medida em que denuncio disposições mentais que julgo incorretas, isso ajuda em alguma coisa - se eu tiver razão, é claro. Isso que digo tem relação direta com minha afirmação de que Wright é um racionalista (voltarei a esse ponto adiante), e também com seu testemunho de que não conhece ninguém com uma mente mais disciplinada que a dele. Apesar da proximidade pessoal que o sr. tem mantido com Wright ao longo de trinta anos, não posso nem devo simplesmente substituir por seu testemunho a forte impressão contrária que extraí diretamente do livro. Apesar disso, não pretendo desqualificar sua afirmação. Na verdade, as duas coisas não me parecem contraditórias. Tenho conhecimento e experiência suficiente da estrutura mental racionalista para saber que mentes assim podem ser muito disciplinadas, e também que essa disciplina se manifesta pouco ou nada com relação a certa categoria de assuntos.

Quanto à sua resposta às minhas acusações de inconsistência na descrição que Wright faz do arminianismo, tenho várias coisas a dizer. A primeira é algo que já foi dito pelo Roberto: o sr. mencionou Clark Pinnock como uma das fontes arminianas nas quais se podem encontrar afirmações como essa. Sei que ele foi mencionado apenas como um exemplo - e um ótimo exemplo, pois Pinnock é provavelmente o autor mais discutido em A soberania banida. Contudo, ele não é um arminiano no sentido estrito, e tanto o sr. quanto Wright sabem disso. De modo que nem tudo o que é dito em resposta a Pinnock pode ser considerado uma refutação ao arminianismo em si.

Isso me leva à segunda coisa que tenho a dizer, e que também já foi dita pelo Roberto: se Wright pretendia refutar todo e qualquer arminianismo, no sentido amplo do termo, tinha a obrigação de refutar também o melhor arminianismo concebível; tinha a obrigação de apresentá-lo da melhor maneira possível e de buscar fortalecê-lo ao máximo antes de empreender sua demolição. Reconheço que houve um esforço nesse sentido no livro, e considero-o bem-sucedido do ponto de vista exegético. Quanto à questão filosófica, porém, tenho opinião diversa. Basta dizer que, se eu mesmo quisesse defender filosoficamente o arminianismo (o que não me interessa, como declarei expressamente no post), poderia apresentar argumentos que não foram discutidos em parte alguma do livro. É claro que, no fim das contas, não considero válidos esses argumentos. Mas minhas críticas não se destinam a defender posições arminianas, e sim apenas a mostrar que Wright não argumentou tão bem quanto deveria. Alguns desses argumentos que eu poderia levantar não requerem que a descrição que Wright faz da posição arminiana seja de todo correta. A visão de C. S. Lewis, por exemplo, não comporta uma "escolha com a mesma facilidade entre alternativas". Pessoas que pensam como ele achariam, com razão, que a exposição que Wright faz da "posição arminiana" é superficial, imprecisa e insuficiente para possibilitar uma boa refutação.

Tudo isso basta para introduzir ao menos uma forte impressão de falta de rigor. Se Wright não foi capaz de fazer uma formulação justa de seu melhor adversário, isso já basta para justificar minha queixa. Porém, a questão não é só essa. De fato ficaria muito fácil refutar uma tese descrevendo-a desde o princípio por duas sentenças contraditórias. Contudo, é estranho que o próprio autor tenha se utilizado desse expediente para revelar suas contradições sem, contudo, revelá-las de maneira explícita logo em seguida. A menos que minha memória tenha me traído (hipótese que sem dúvida é possível, mas exige prova), em parte alguma do capítulo Wright explorou essa contradição entre a "escolha com a mesma facilidade entre alternativas" e as "influências que possam afetar a vontade". Ele explorou outras questões, mas não essa. E a ausência de uma indicação explícita dessa contradição como tal foi o que me levou a concluir que o próprio Wright não se deu conta devidamente das implicações da descrição que fez.

Considerações semelhantes se aplicam ao que o sr. disse em relação ao advérbio "normalmente". Noto que o sr. não contestou minha observação de que Wright descreve a posição arminiana de dois modos conflitantes: no corpo do texto, admitindo exceções à capacidade da vontade de vencer as influências; e, no glossário, ignorando essas exceções. O sr. apenas disse que essas contradições são inerentes ao arminianismo. Não acho que sejam. Mas, ainda que fossem, isso não justificaria o procedimento de Wright. Afinal, eu não reclamei da apresentação contraditória em si, e sim da falta de explicação para ela. Wright não apontou, nem discutiu (e muito menos documentou) a presença dessa contradição nos sistemas arminianos, e sim apenas as transcreveu, sem dar sinais de ter percebido que a descrição dada no texto contradiz a do glossário. Ele deveria não só ter percebido isso, mas também levantado uma discussão sobre em que sentido os arminianos costumam entender esse "normalmente", e depois mostrar que esse entendimento é inconsistente. Nada disso foi feito.

Em suma: o sr. disse que Wright "não está fazendo um argumento aqui, mas sim descrevendo o que os arminianos defendem". Sei disso, e não afirmei o contrário. Mas há dois problemas: primeiro, ele descreveu mal; e, segundo, o argumento que não está aqui também não está em nenhuma outra parte do livro.

Continuemos. A partir da definição de "indeterminismo" encontrada no glossário do fim do livro, eu afirmei que "o autor tem consciência de que negar o determinismo não é necessariamente o mesmo que invocar o acaso como explicação válida para os eventos". Pensando discordar de mim, o sr., na verdade, afirmou a mesma coisa: "Alguns que acreditam em livre-arbítrio tentam negar a dependência do acaso". O que eu disse foi que quem nega o determinismo não está necessariamente invocando o acaso. A ênfase da minha frase está posta na intenção de quem nega o determinismo, e não na opinião de Wright sobre as reais implicações dessa negação. Sei que ele "afirma que tal postura é uma contradição", mas os argumentos apresentados não são suficientes para provar isso. Como o sr. viu, lidei com a questão mais para o final do texto. No momento, meu único propósito era o de reclamar, mais uma vez, do uso não discutido da palavra "normalmente". Por isso eu disse: "nada mais na argumentação desenvolvida pelo autor ao longo do segundo capítulo é compatível com a distinção feita de modo implícito no glossário". Por que eu disse isso? Apenas porque Wright não explicou como pensam os "indeterministas" que negam que os atos livres da vontade sejam guiados pelo acaso. Não há sinais de que o autor tenha entendido as razões deles. E, se não as entendeu, como pode tê-las refutado?

É por não ter feito um bom trabalho nesse sentido que ele acabou por transmitir essas impressões que descrevi no restante do parágrafo, cujas razões o sr. afirmou não ter entendido. Resta esclarecer apenas que, quando eu disse "fiquei com a impressão de que", isso inclui tudo o que é dito até o final do parágrafo. Portanto, nada do que eu disse ali, exceção feita à denúncia da mente indisciplinada, pretende ser uma afirmação categórica. Peço desculpas por ter transmitido a impressão de que pretendia algo mais que descrever a impressão transmitida por Wright.