24 de dezembro de 2008

Velhas lições sobre o futuro

Nota introdutória: o texto abaixo é uma adaptação - para melhor, espero - de algo que minha própria inépcia me impediu de publicar há um ano, conforme expliquei no primeiro parágrafo deste post.

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A fim de não deixar passar em branco essa grande e bem justificada comemoração da cristandade, resolvi transcrever neste blog um poema natalino. Por ter sido composto em inglês, ele não está apenas transcrito: acrescentei uma tradução feita por mim mesmo, em parceria com Ivan Junqueira. É claro que meu ilustre parceiro não tem consciência alguma de que ocupa essa posição. Ocorre que o autor é o grande poeta T. S. Eliot, a quem já aludi mais de uma vez neste blog. Algum tempo atrás adquiri, a preço de banana, dois volumes publicados pela editora Arx, os quais reúnem grande parte da produção escrita do poeta inglês: o primeiro contém suas poesias, e o segundo suas peças de teatro. Ficaram de fora, infelizmente, todos os seus escritos dissertativos, inclusive sua vastíssima obra de crítica literária. No momento, porém, o que importa é destacar que os dois volumes possuem a excelente característica de conter lado a lado a tradução ao português e o original em inglês, o que proporciona ao leitor a dupla vantagem de ter acesso à poesia original, que é sempre melhor que qualquer tradução que dela se faça, e ao mesmo tempo poder tirar prontamente suas dúvidas quanto ao sentido dos trechos difíceis. Pois bem; Ivan Junqueira é o tradutor do primeiro volume. Não reproduzo aqui sua tradução, por julgar que ele tomou certas liberdades poéticas que o afastaram demais do sentido original das palavras de Eliot. Não o condeno por isso, de modo algum. Ele é um profissional do ramo, e provavelmente sabe o que faz muito melhor que qualquer físico metido a tradutor. De qualquer forma, embora minha preocupação (talvez excessiva) pela exatidão da mensagem tenha me levado a fazer minha própria tradução, seria injusto de minha parte não reconhecer que ela deve muito à de Junqueira.

O poema abaixo não é, nem de longe, um dos mais belos de Eliot, e não chega sequer a ser o melhor dos seus poemas natalinos. Mas tem ao menos a vantagem de ser o mais natalino de todos. Para mim, seu valor reside justamente naquilo que ele explicitamente defende. A religião cristã não é um mero conjunto de enunciados ou dogmas sobre Deus e sobre o homem; ela se propõe a atingir e transformar todos os aspectos do ser do devoto, e não apenas seu lado intelectual. Por conseguinte, a educação para a vida cristã não pode jamais reduzir-se à mera catequese. O próprio Senhor apontou parte da solução para esse problema ao instituir os ritos do batismo e da ceia. Embora o papel desses sacramentos vá, na verdade, muito além disso, eles desempenham também a função pedagógica de preparar nosso espírito para abrir-se a realidades mais sublimes que as que costumamos vivenciar. E para isso contribuem também muitos outros procedimentos ritualizados, embora de maneira menos formal e rigorosa, entre os quais encontra-se a tradição milenar da celebração do nascimento do Salvador, com seus costumeiros acessórios. O tema da poesia abaixo toca em tudo isso, e é por essa razão que resolvo publicá-la, mesmo sabendo que postar um poema que faz referência a uma santa, ainda que apenas parenteticamente, é algo que pode pegar mal para um cristão protestante como eu.

O cultivo das árvores de Natal

Há várias atitudes diante do Natal,
algumas das quais podemos desconsiderar:
a social, a entorpecida, a patentemente comercial,
a barulhenta (os bares abertos até meia-noite),
e a infantil - que não é a da criança
para quem a vela é uma estrela, e o anjo dourado,
estendendo suas asas no topo da árvore,
não é apenas uma decoração, mas um anjo.
A criança fica extasiada com a Árvore de Natal;
deixem-na continuar nesse espírito de êxtase
na Festa como um evento não aceito como um pretexto;
de modo que o arrebatamento reluzente, o assombro
da primeira Árvore de Natal lembrada;
de modo que as surpresas, o deleite em novas posses
(cada uma com seu cheiro peculiar e excitante),
a expectativa pelo ganso ou pelo peru
e o tão aguardado pasmo diante de seu aparecimento;
de modo que a reverência e o júbilo
possam não ser esquecidos na experiência posterior,
no hábito enfadonho, na fadiga, no tédio,
na antevisão da morte, na consciência do fracasso,
ou na piedade do convertido
que pode ser maculada por uma presunção
desagradável a Deus e desrespeitosa às crianças
(e aqui me lembro também com gratidão
de Santa Lúcia, seu canto e sua coroa de fogo);
de modo que antes do fim, no octogésimo Natal
("octogésimo" significando qualquer que seja o último),
as memórias acumuladas da emoção anual
possam ser concentradas numa grande alegria
que será também um grande temor, como na ocasião
em que o temor virá sobre toda alma:
porque o começo nos lembrará do fim
e a primeira vinda, da segunda vinda.

The cultivation of Christmas trees


There are several attitudes towards Christmas,
Some of which we may disregard:
The social, the torpid, the patently commercial,
The rowdy (the pubs being open till midnight),
And the childish - which is not that of the child
For whom the candle is a star, and the gilded angel
Spreading its wings at the summit of the tree
Is not only a decoration, but an angel.
The child wonders at the Christmas Tree:
Let him continue in the spirit of wonder
At the Feast as an event not accepted as a pretext;
So that the glittering rapture, the amazement
Of the first-remembered Christmas Tree,
So that the surprises, delight in new possessions
(Each one with its peculiar and exciting smell),
The expectation of the goose or turkey
And the expected awe on its appearance,
So that the reverence and the gaiety
May not be forgotten in later experience,
In the bored habituation, the fatigue, the tedium,
The awareness of death, the consciousness of failure,
Or in the piety of the convert
Which may be tainted with a self-conceit
Displeasing to God and disrespectful to children
(And here I remember also with gratitude
St. Lucy, her carol, and her crown of fire):
So that before the end, the eightieth Christmas
(By 'eightieth' meaning whichever is the last)
The accumulated memories of annual emotion
May be concentrated into a great joy
Which shall be also a great fear, as on the occasion
When fear came upon every soul:
Because the beginning shall remind us of the end
And the first coming of the second coming.

Posso reconhecer no meu próprio caso a importância pedagógica das experiências natalinas na infância. Poucas vezes tive em casa árvores enfeitadas, luzes e coisas do tipo, embora sempre tenha havido decorações mais discretas. Na igreja, entretanto, sempre participei dos preparativos para a comemoração. Atuei raras vezes na decoração, tarefa para a qual nunca levei muito jeito, mas quase sempre nas dramatizações e, principalmente, nas músicas, com todos os ensaios e outros desafios a superar. Tudo muito trabalhoso, é verdade, mas sempre feito com aquela espécie de alegria constantemente presente num grupo de pessoas que não apenas gostam do que fazem como também estão profundamente convictas da importância do seu trabalho e empenhadas em contemplar seu resultado final. Nisso, aliás, jamais me decepcionei: a noite da véspera, na qual era sempre realizado o culto de Natal, sempre nos fazia sentir que valeram a pena todos os reveses que a antecederam. (Esse fenômeno, aliás, não se extinguiu na minha infância, pois vejo ainda hoje, com o coração cheio de alegria e gratidão, a mesma coisa acontecer nas celebrações musicais do Natal na minha igreja atual.)

Mais importante que tudo isso, porém, era o dia de Natal propriamente dito, que sempre passei na casa dos meus avós maternos. Era a única ocasião do ano em que era possível reunir toda a família. Era o dia de matar a saudade dos primos e primas, da vó e do vô, dos tios e tias. Era o dia da refeição mais gostosa e mais alegre do ano. Ao almoço sempre seguia-se a entrega dos presentes, com os quais ficávamos entretidos em brincadeiras (interrompidas ocasionalmente por pequenas brigas) no quintal até depois do anoitecer. Lembro-me vagamente de uma ou outra decoração de Natal, mas nunca lhes dei muita atenção. Nesse aspecto, as palavras de Eliot não se aplicam à minha própria experiência. Mas pouco importa: o Natal não era um dia como os outros. Era o mais esperado e o mais feliz dentre todos os dias do ano, possuía seus ritos peculiares, seguidos à risca por toda a família, e era, em sua totalidade, um enorme e agradabilíssimo ritual. O eco do júbilo daqueles poucos e esparsos momentos enche minha vida ainda hoje.

Talvez pareça ao leitor que essas reminiscências que descrevo são demasiado seculares, desprovidas de significado espiritual. Há, sem dúvida, alguma dose de verdade nesse julgamento. O divino aniversariante não estava entre as pessoas mais lembradas por mim naquelas ocasiões. Mas o benefício espiritual que eu não soube aproveitar na ocasião foi entesourado para ser recebido com juros, anos mais tarde, por uma personalidade mais amadurecida. Afinal, foi aquela mesma boa nova, anunciada pelos anjos aos pastores de Belém e pelos céus aos magos do Oriente, que me permitiu viver esses momentos inesquecíveis na infância. A memória de tais acontecimentos me ajuda hoje a compreender e receber essa boa nova com a gratidão e o regozijo que ela requer, e assim me preparar melhor para a segunda vinda de que Eliot fala no final do poema. Acredito sinceramente que sem aquelas experiências do passado, vividas de maneira não inteiramente consciente, eu não estaria apto a desfrutar de maneira tão intensa no presente a esperança pelas maravilhas que hão de vir.

Feliz Natal a todos!

8 de dezembro de 2008

Aventuras no berço do Ocidente - parte 2

Toulon é uma cidade do litoral sul da França, a quarenta minutos de Marseille (andando de trem). Pouco depois de descer no aeroporto de Toulon descobri que ele, na verdade, não fica em Toulon, e sim numa cidade vizinha chamada Hyères. E logo fiz a descoberta adicional de que a Universidade de Toulon também não fica em Toulon, e sim numa outra cidade vizinha, La Garde. Acabei aprendendo que esses estranhos fatos relacionam-se a certas realidades da distribuição demográfica do país ou, pelo menos, daquela região. A despeito de possuir apenas cento e cinqüenta ou cento e sessenta mil habitantes (menor, portanto, que o pacato município do interior paulista onde resido), Toulon é a maior cidade das redondezas. À sua volta distribuem-se dezenas de cidadezinhas com cinco, dez, vinte mil habitantes, os quais (isto é, boa parte da população economicamente ativa) muito freqüentemente não trabalham na cidade onde moram. Porém, a área ocupada por um município francês costuma ser consideravelmente menor que a de um município de população equivalente no Brasil. E é menor também a distância entre cidades vizinhas, a ponto de não haver, em alguns casos, descontinuidade alguma no grau de urbanização. É possível passar de uma cidade a outra sem se dar conta disso, especialmente se o transeunte em questão for tão distraído quanto eu.

Na minha primeira semana morei numa casa bem próxima à do professor Yves, num bairro situado perto da praia - quinze minutos a pé. A casa era cerca de duas vezes maior que a minha habitação atual em São Carlos; tinha quarto, sala, copa-cozinha e banheiro (dou esse nome ao último cômodo, embora contivesse também uma máquina de lavar roupas e um guarda-roupa embutido), estava muito bem mobiliada e tinha, junto à porta da cozinha, um pé de azeitonas pretas. Achei-a muito agradável, assim como o local onde estava situada. E, visto que eu ia à universidade bem cedo e retornava apenas quando estava escurecendo (de carona com o professor, em ambos os casos), só me restavam as noites para passear pelo bairro. Foram passeios exploratórios, feitos a pé, como os que eu faria na minha própria cidade, exceto pelo passaporte no bolso e pela câmera fotográfica (gentilmente emprestada pela minha amiga Ana Flávia), da qual raramente me separei - e me arrependi em todas as ocasiões em que fiz isso.

Tais andanças acabaram por revelar muitos outros fatos sobre a vida na França. A primeira coisa que notei foi que as ruas são muito sinuosas; não me lembro de ter visto trechos retilíneos de comprimento superior a cem metros. Não existem caminhos com poucas curvas para lugar algum. "Até parece que por aqui ninguém anda a pé", pensei. E acabei descobrindo que era isso mesmo. Vi uma quantidade razoável de pessoas que caminhavam por exercício, ou para passear com seus cães, mas pouquíssimas que pareciam de fato estar andando com o simples objetivo de ir de um lugar a outro. Na verdade, andar a pé aparenta ser algo tão pouco valorizado que a existência de possíveis praticantes desse hábito não chega sequer a ser levada em consideração às vezes, como se nota, por exemplo, pelo fato de que não poucos trechos de ruas são inteiramente desprovidos de calçadas. Nada disso me causou algum problema com os motoristas, pois os franceses parecem ser muito corteses ao volante. Mas esses fatos contribuíram para fazer com que eu andasse mais do que andaria no Brasil, e também exigiu mais do meu senso de direção, que é apenas mediano. Felizmente, porém, quase todos os pontos de ônibus têm um mapa da cidade - e também das cidades vizinhas, na verdade, abrangendo toda a rede de transportes públicos, de ônibus e barcos - com a indicação "vous êtes ici" ("você está aqui") em algum ponto. Visto que passeei sozinho na quase totalidade das vezes, só posso dizer que, sem o recurso constante aos pontos de ônibus, não sei o que teria sido desses passeios; ou, pior ainda, dos retornos.

Mas estou me adiantando demais; outros passeios serão descritos mais tarde. As ruas sinuosas contribuem para dar uma aparência especial à paisagem, mas são menos importantes que as residências. Mal posso descrever a experiência de andar entre as casas de um bairro francês. É quase como se um aspecto inteiramente novo da realidade se descortinasse diante dos meus olhos. Percebi, de repente, o motivo pelo qual meu interesse por arquitetura sempre foi tão limitado. A resposta parece ser, muito simplesmente, que bem poucas vezes ao longo da minha vida eu havia visto casas verdadeiramente bonitas. Ou, dizendo de maneira mais precisa, poucas vezes eu vira casas com um tipo de beleza tão pungente. Algo que estava adormecido despertou em mim. As belas casas do Brasil, embora não sejam menos belas por isso, parecem ter um ar de ostentação, não necessariamente motivada por uma vaidade tola, mas sim num sentido algo mais difícil de explicar. É como se todos os detalhes tivessem sido meticulosamente planejados para despertar a admiração de uma categoria de pessoas na qual não estou incluído.

Eu jamais havia me dado conta disso até então, e nem mesmo estou certo de que tais palavras traduzem da melhor maneira possível esse estranho sentimento que me acometeu. Mas há algo nas casas francesas, com seus muros de pedra, seus portões aparentando uma idade enorme, a abundância de árvores e de plantas trepadeiras, que dá ao conjunto um tom espontâneo, natural, bucólico, impressão essa reforçada pelo clima temperado, outonal, com folhas de diversas cores e tamanhos espalhando-se pelo chão. Eu tinha a sensação de que todos os diversos aspectos que eu discernia - edificações, vegetação, clima, nuvens, ruas, cães, transeuntes e seu estranho idioma - harmonizavam-se de maneira admirável (embora talvez num relacionamento conturbado, cheio de altos e baixos, ao longo dos séculos), que haviam sido feitos uns para os outros. As casas e seus habitantes pareciam ter brotado do chão junto com as árvores.

Poucos dias depois do meu retorno a estas plagas, ao contemplar uma bela paisagem natural bem mais brasileira, tive uma percepção vinculada precisamente a essa questão da harmonia: aqui, exceção feita aos ambientes quase inteiramente rurais, a presença de edificações feitas por mãos humanas quase sempre diminui a beleza da paisagem. Na França, por alguma misteriosa razão, isso não acontece. Meus devaneios quanto a ter pousado no território de uma raça estranha não são tão absurdos, afinal. Mas agora eu pensaria menos em algum planeta distante do que na Terra-média de Tolkien, com seus elfos, anões, hobbits e mesmo homens preocupados em edificar coisas boas e úteis sem jamais ferir a beleza do mundo circundante. Falando de uma perspectiva muito mais estética do que propriamente ecológica, ao menos, creio que temos algo a aprender com os franceses no que tange à harmonia entre o homem civilizado e a natureza.

Mas talvez haja um outro segredo por trás da beleza de Toulon e, quem sabe, das cidades francesas em geral: o peso da história se faz sentir em todo lugar, inexoravelmente. O antigo e o moderno misturam-se de uma maneira que surpreende, mas justamente por aparentar uma harmonia natural e profunda. O centro de Toulon - a única parte da cidade, creio eu, onde é possível encontrar ruas retas em abundância - é um espetáculo disso mesmo: prédios antigos e cheios de uma beleza inconfundivelmente ancestral abrigam não apenas igrejas, museus e instituições públicas, mas também bancos com caixas eletrônicos e lojas do McDonald's, em ruas intensamente movimentadas por muitos carros (pois embora haja, naturalmente, mais gente andando a pé no centro do que nos bairros, o trânsito de veículos continua sendo o fator mais impressionante, a julgar pelo tamanho da cidade). As ruas que descem para o mar, situado a poucos minutos da praça central, são geralmente estreitas e ladeadas por prédios de aparência antiga, com quatro ou cinco andares, dos quais o térreo abriga geralmente algum tipo de estabelecimento comercial, e os andares superiores contêm apartamentos onde, suponho, vivem pessoas relativamente pobres. Não é muito difícil, caminhando por ali, imaginar-se no século XVIII ou mesmo num ambiente urbano do fim da Idade Média.

Na beira do mar há restaurantes caros (ao menos para mim), iates e navios modernos. E, no entanto, aquele mar é o mesmo de sempre, o velho Mediterrâneo, à beira do qual floresceram várias das mais importantes culturas da história, mar que foi palco e testemunha de muitos dos eventos de mais decisiva influência sobre a trajetória humana no mundo. Quando o contemplei pela primeira vez, ainda de longe, não pude deixar de sentir uma certa emoção, um frêmito que traduzia, talvez, uma reverência mal contida pela riqueza do passado. O mar, creio eu, é encantador por si mesmo, e assim será sempre, em qualquer parte do mundo. Mas no Brasil a única massa de água que se vê é aquela que foi desbravada apenas pelas grandes navegações empreendidas pelos colonizadores europeus há não muito mais de cinco séculos. Mas aquele que eu tinha diante dos olhos, em eras muitíssimo anteriores à própria da existência da Europa como civilização, havia sido cruzado pelos fenícios e disputado por Cartago, antes de ter sua posse enfim reivindicada pelos romanos e ser batizado por eles com um nome que evoca, ao mesmo tempo, intimidade e ousadia: Mare Nostrum.

20 de novembro de 2008

Aventuras no berço do Ocidente - parte 1

"Você descobrirá que o mundo todo prega para uma mente atenta; e que, se você apenas tiver ouvidos para ouvir, quase todas as coisas que você encontra ensinam uma lição de sabedoria." (William Law)

Como muitos dos meus prováveis leitores devem saber, estive na França entre 14 de outubro e 13 de novembro. Creio que seria uma experiência marcante para qualquer pessoa, mas o é ainda mais para alguém tão pouco viajado como eu. Digo isso porque esta foi a minha primeira viagem para fora do Brasil, e a segunda para fora do Estado de São Paulo (a primeira foi há cerca de um ano e está registrada aqui). Justifica-se, portanto, que eu relate aqui alguns dos mais importantes acontecimentos relacionados a essa viagem, bem como as lições que extraí deles. A própria diversidade das experiências vividas, cuja riqueza atinge quase todos os níveis da vida, torna impossível expressar em palavras o efeito que elas tiveram sobre mim. Nem mesmo posso afirmar que estou plenamente consciente da extensão desse efeito. O tempo trará à luz alguns aspectos dele, creio eu, mas outros certamente exercerão para sempre uma influência subconsciente. Conseqüentemente, talvez seja cedo demais para uma apreciação que vá além de um mero relato de curiosidades desconexas. Parece-me inevitável, portanto, que a narrativa a seguir pareça justamente isso aos leitores, embora a mim mesmo pareça algo muito diferente. Assim sendo, dou início agora a um despretensioso relato de alguns acontecimentos relacionados a essa viagem, o qual certamente terá continuidade em posts futuros e não necessariamente consecutivos.

Nada é mais natural que começar apresentando o motivo da minha ida: foi uma viagem a trabalho, possibilitada por uma parceria já meio antiga do laboratório PROTEE (Processus de Transferts et d'Echanges dans l'Environnement) da Universidade de Toulon com diversos centros brasileiros de pesquisa relacionada à agricultura, entre os quais o Laboratório de Óptica e Lasers da Embrapa Instrumentação Agropecuária, no qual, em meio a outras atividades, desenvolvo minha pesquisa de mestrado. Trabalhamos há vários anos com aplicações da espectroscopia de fluorescência à resolução de problemas na citricultura, e nisso o emprego de ferramentas de análise matemática, estatística e computacional tem se revelado de grande ajuda. Essa é, porém, uma área na qual nossos conhecimentos são bastante deficientes; mas nossos parceiros franceses, felizmente, sabem bem mais. Foi isso, essencialmente, o que fui fazer na França: apresentar um problema concreto e aprender possíveis soluções. O trabalho foi produtivo, a despeito de uma série de imprevistos. E bastam essas informações sobre isso.

A viagem começou a ser cogitada por volta de abril, quando recebemos a rápida visita dos professores Stéphane e Roland, que vieram se juntar à Marie, estudante de mestrado que passou três meses conosco. Confesso que não levei muito a sério a possibilidade de concretização do plano, talvez em parte por minha desconfiança instintiva contra qualquer coisa que envolva muita burocracia, e em parte também por influência de um hábito mental de longa data que me leva a ter expectativas bastante modestas quanto ao futuro. O fato é que visitar a Europa é algo que jamais me passou pela cabeça com seriedade. E, no entanto, pouco a pouco as coisas foram dando certo, apesar de alguns contratempos: acabei indo em meados de outubro, em vez de ir no de início de setembro, como estava originalmente previsto; e, pior ainda, fui comprar euros bem no auge de crise econômica, o que me fez chegar à França com apenas três quartos do dinheiro que teria se os tivesse comprado um mês antes. Nenhum desses empecilhos foi decisivo, porém, e lá fui eu.

O trajeto envolveu muitos elementos: durou quase vinte e quatro horas, da saída da casa dos meus pais até a chegada ao aeroporto de Toulon, tendo sido metade desse tempo gasto no vôo de Guarulhos a Paris; quase não dormi nos vôos, o que me levou a assistir três filmes e ouvir dois CDs inteiros, além de ler um pouquinho; o jantar e o café da manhã servidos no avião foram muito bons. Muitos outros detalhes poderiam ser citados, mas nada é tão importante quanto a lenta tomada de consciência da mudança de ambiente. Todas as mensagens transmitidas pelo comandante eram dadas em português, inglês e francês; muitos passageiros eram estrangeiros, assim como quase toda a tripulação; o aeromoço que me atendeu na maior parte das vezes e a aeromoça que o fez nas vezes restantes eram provavelmente franceses, e não falavam português; pela telinha era possível acompanhar o vôo e ver a posição do avião no mapa, e assim eu o vi se afastar lenta e firmemente da costa brasileira e adentrar no Oceano Atlântico, passando depois perto da costa da África e sobrevoando a Península Ibérica até, finalmente, atingir a França. Acompanhei tudo isso com uma sensação mista de temor, incredulidade, empolgação e serenidade, pensando a cada quinze minutos algo como "caramba, jamais estive tão longe!" Quando o avião começou a descer dos quase doze mil metros de altitude em que vinha se mantendo para aterrissar no Aeroporto Internacional Charles de Gaulle, eu já estava dominado por uma forte sensação de que ia pousar, não em outro continente, mas em outro planeta. E quando descemos o suficiente para que o espesso tapete de nuvens se dissipasse e fosse possível entrever a paisagem que se descortinava lá embaixo com nitidez crescente, algo me surpreendeu. Aquele lugar podia se parecer muito com o planeta de onde vim, mas eu jamais poderia confundi-los. Demorei um minuto para descobrir o que estava "errado", mas enfim percebi: eram as cores. Estávamos sobrevoando uma zona rural e florestal, mas o outono da França apresenta a vegetação não apenas nos diversos tons de verde que observamos no Brasil, mas também com tons de marrom, de amarelo, de laranja, de vermelho. (Aproveito a ocasião para registrar minha alegria por ter ido à França justamente no outono, alegria esta motivada exatamente por essas cores.) Quando descemos um pouco mais pude constatar que, além das cores, as formas das árvores também eram diferentes. E, no momento em que o avião se aproximou do aeroporto, cruzou a minha mente um estranho pensamento: "Quão curiosas devem ser as formas de vida inteligentes que governam este mundo tão colorido!"

Esses devaneios interplanetários, porém, foram logo substituídos por uma sensação muito mais realista; creio que poderia expressá-la dizendo que me senti abandonado, se a melancolia não estivesse inteiramente ausente. Estava mais para uma espécie de euforia, na verdade: ali estava eu, a uns dez mil quilômetros de casa, num continente estranho, numa grande cidade, numa terra onde ninguém me conhecia, ninguém falava a minha língua e - o que é pior ainda - cuja língua eu desconhecia quase inteiramente. Repassei mentalmente o itinerário: eu deveria apresentar meu passaporte para ser carimbado pela polícia, pegar minha mala, achar o ponto de parada do ônibus que me levaria ao aeroporto de Orly, onde faria um novo check-in e tomaria o avião para Toulon, em cujo aeroporto eu seria recebido por alguém da universidade. Parece simples, mas tudo se torna muito mais complicado para alguém que teve apenas dois meses para aprender, da maneira mais autodidática possível, alguma coisa sobre o idioma local. Quando o avião finalmente parou, adiantei o relógio em cinco horas. Esse ato banal estava, para mim, carregado de significado: era o símbolo máximo do rompimento temporário com aquela terra distante onde estava quase tudo o que eu conhecia e amava, e do mergulho definitivo nesse lugar desconhecido e algo assustador.

Deu tudo certo. Consegui chegar ao ponto de ônibus em apenas uma hora, aproximadamente o dobro do tempo necessário para alguém que sabe o que está fazendo. Para isso andei bastante, estudei todas as placas e painéis disponíveis, consultei o dicionário umas três vezes e solicitei a ajuda de duas pessoas. Pedi em inglês, língua que aparentemente é falada por boa parte dos funcionários do aeroporto, o que para mim foi um alívio, visto que eu não tinha ainda nem capacidade nem coragem para tentar uma conversa em francês. O mesmo embaraço com a língua se deu dentro do ônibus, em Orly e no segundo avião. Mas, a despeito de todas as dificuldades, as etapas foram sendo vencidas, e no fim da tarde eu finalmente me encontrei, no aeroporto de Toulon, com o professor Yves, chefe do laboratório, vice-reitor da universidade e - o que me parecia ainda mais importante - ótimo falante do português. Ele me levou à universidade, onde conheci o laboratório (e boa parte dos seus integrantes, que me receberam muito bem), e em seguida à casa onde eu deveria morar durante a primeira semana; depois disso, muito gentilmente me levou à sua própria casa, onde tive um ótimo jantar com sua família, antes de finalmente ir para a cama. Creio que, em virtude do enorme cansaço, adormeci menos de um minuto depois de ter fechado os olhos, mas esse tempo foi suficiente para a ocorrência de um fenômeno que iria se repetir muitas vezes nos dias seguintes: tudo o que eu ouvira ao longo de todo o dia naquela língua incompreensível pareceu retornar aos meus ouvidos, como se eu estivesse num salão onde muitas pessoas falavam ao mesmo tempo, resultando numa agradável melodia de entonações e fonemas estranhos que iam e vinham, como ondas num oceano tranqüilo.

6 de outubro de 2008

Da cabeça aos joelhos

"Você não está aqui para examinar,
se instruir, satisfazer sua curiosidade
ou redigir um relato. Você está aqui para se ajoelhar
onde a oração tem sido eficaz."
(T. S. Eliot)

Como já aconteceu várias outras vezes neste blog, o texto de hoje deverá ser uma mistura de considerações teóricas e relatos de experiências pessoais unidas entre si por um tema comum. No que diz respeito a esse tema, a idéia de sintetizar os dois elementos num só texto ocorreu muito recentemente, durante uma conversa que tive com minha amiga Norma, embora as experiências descritas, bem como as conclusões que delas extraí, contem já com vários anos de existência. Devo avisar desde logo que o assunto deste post refere-se a debates internos do protestantismo, e particularmente do calvinismo, e por isso a questão pode ser de pouco interesse para membros de outros grupos cristãos; e não vejo que interesse ele possa ter para pessoas que não são cristãs de modo algum. De qualquer forma, é claro que isso é só uma advertência para que leitores não interessados possam fazer melhor proveito do seu tempo; ninguém está proibido de ler nada.

O assunto relaciona-se aos meios e às finalidades da apologética, que pode ser entendida como a defesa racional de uma doutrina - particularmente uma doutrina religiosa e, mais particularmente ainda, a cristã (o dicionário Houaiss a define como "defesa argumentativa de que a fé pode ser comprovada pela razão"). O objetivo da coisa toda é, naturalmente, levar o opositor da doutrina em questão a aceitar sua validade, o que deve resultar na conversão do indivíduo, no caso de ser essa doutrina o cristianismo. Digo que o convencimento deve levar à conversão porque obviamente uma coisa não se segue necessariamente da outra: a primeira etapa é intelectual, e a segunda é espiritual. (Algumas pessoas convencem-se racionalmente sem, contudo, se converterem, e outras convertem-se sem que seu lado racional desempenhe qualquer papel preponderante.)

Embora eu não saiba dizer exatamente quando foi que se deu a minha conversão, posso dizer com certeza que a consciência da presença de Deus em mim não aconteceu enquanto não enfrentei certas questões intelectuais que me afligiam; e isso, não hesito em afirmar, está bem longe de ser coincidência. Os detalhes sobre aquela etapa da minha vida não entram nas considerações deste texto, mas esse fato exemplifica a importância que a apologética teve na minha vida - importância que, aliás, não parou por aí. Mas o que convém ressaltar é que, tendo eu um temperamento bastante racional, e tendo sofrido (e, pela graça de Deus, vencido) algumas tentações intelectuais que atingem muitas pessoas, jamais pude deixar de perseguir com profundo interesse a compreensão dos fundamentos da fé à qual aderi (ou que aderiu a mim) e de suas relações com os diversos aspectos da realidade, e tampouco de exultar a cada nova percepção ou vislumbre da harmonia subjacente a essas relações.

Na medida em que muitas coisas iam ficando claras na minha própria mente, seguiu-se um impulso natural de comunicar essas descobertas às pessoas que precisavam ouvi-las - as que enfrentavam dificuldades semelhantes às minhas, ou ainda piores. Foi essa uma das principais motivações que me levaram ao envolvimento em debates no orkut, primeiro numa comunidade sobre o cristianismo (da qual faziam parte cristãos de todos os tipos, pessoas abertamente anticristãs e pessoas que pensavam ser cristãs sem sê-lo) e depois numa outra voltada ao embate entre, de um lado, religiosos de qualquer tipo e, do outro, ateus, agnósticos e seus parentes. Tais experiências foram muito salutares em diversos aspectos, e não me arrependo de ter sido, durante algum tempo, um notável caçador de confusões virtuais, embora não me reste muita paciência para esse tipo de coisa hoje em dia. Mas mencionarei aqui apenas um desses aspectos, que trouxe o benefício de me curar para sempre de uma certa ingenuidade à qual eu estava sujeito.

Eu supunha que o problema fundamental que separava as pessoas da verdade era de natureza intelectual, e que residia na ignorância. (Eu jamais teria me expressado ou mesmo pensado nesses termos, mas era uma crença solidamente arraigada num nível mais profundo que o das convicções conscientes.) Assim, eu esperava que instruir as pessoas era tudo o que se requeria para resolver o problema, e que elas, tendo chegado a perceber a inconsistência de suas posições atuais, alegremente substituiriam-nas por outras de qualidade superior. Hoje considero difícil explicar como pude aceitar essa suposição - a ponto de me surpreender quando as coisas sistematicamente começaram a acontecer de outra forma -, ainda mais porque eu tinha consciência do fato de que não haviam ocorrido assim no meu próprio caso. Talvez eu tenha projetado indevidamente sobre a fase inicial do processo uma alegria que só me acometeu numa fase posterior. Seja como for, o fato é que eu não contava com as reações que recebi. Esperava uma de duas coisas: ou que as pessoas se convencessem de que estavam erradas, ou que apresentassem argumentos melhores que os meus. Mas, embora ocasionalmente uma ou outra dessas alternativas se concretizasse, na esmagadora maioria das vezes o que encontrei foram subterfúgios diversos, desonestidade pura e simples; uma recusa, enfim, de encarar a verdade (ou pelo menos o que a situação impunha como tal).

Aprendi, assim, a evitar uma posição errônea, e a dar ouvidos aos apologistas que advertem constantemente contra o perigo de reduzir a concepção cristã sobre a natureza humana aos seus elementos meramente racionais. Essa é uma crítica que certos teólogos pressuposicionalistas constantemente fazem a uma coisa um tanto vaga denominada "apologética tradicional". É claro que não vou me meter a discutir aqui as inovações do pressuposicionalismo, inclusive porque esse movimento parece contar também com um considerável grau de divergência interna. Não convém, portanto, polarizar a questão dessa forma, e muito menos abordar outros pontos pertinentes a essa complexa questão. Mas cabe observar que parece vir justamente de certos pressuposicionalistas uma tendência diametralmente oposta, a de atribuir pouco ou nenhum valor às motivações racionais do incrédulo. No fundo, dizem eles, todos esses argumentos levantados contra a fé cristã são apenas pretextos, e o incrédulo sabe perfeitamente que está errado, embora tente o tempo todo convencer a si próprio do contrário. Eis a razão pela qual aceitar um embate argumentativo destinado a demonstrar seus erros não resolverá o problema, ainda que o resultado seja racionalmente impecável. É necessário driblar todos esses subterfúgios e apelar diretamente à sua vontade rebelde, que é a fonte verdadeira de todo o mal.

Esse ponto de vista tem o mérito inegável de abrir espaço à consideração dos elementos que militam nas profundezas da alma humana, evitando assim o erro que eu mesmo cometi. Apesar disso, creio tratar-se de um excesso na direção oposta, o qual tende a ser prejudicial na prática. Digo isso com segurança baseando-me não apenas na memória do apelo tentador que a descrença exerceu sobre mim mesmo ou da forma como reagi a isso, mas também em muitos relatos pessoais de homens que vagaram por regiões muito mais distantes de Deus do que aquelas em que eu mesmo estive. Quando penso nas trajetórias espirituais de Santo Agostinho ou C. S. Lewis, por exemplo, não posso evitar que passe pela minha mente a suposição de que um cristão guiado por princípios apologéticos como esses jamais conseguiria obter algum sucesso, ao menos com certa categoria de pessoas. Tais princípios constituem uma péssima compreensão da mente do incrédulo, e dão a impressão de terem sido propostos por indivíduos teóricos, no pior sentido do termo: pessoas que jamais sofreram pessoalmente a incredulidade e que não são capazes de reproduzir dentro de si mesmas as experiências interiores dos que passaram por ela.

A idéia de que os incrédulos têm conhecimento das verdades essenciais da fé cristã é, aliás, bastante problemática por si mesma. Além de ser desmentida pelos depoimentos de muitos que se converteram em idade madura, ela não permite estabelecer um limite entre o que é e o que não é conhecido. Por exemplo: todos os incrédulos sabem intuitivamente que Deus existe? Isso até poderia, talvez, ser defendido. Mas eles sabem intuitivamente também que Deus é um ser em três pessoas? Que o Verbo encarnado foi crucificado sob Pôncio Pilatos e ressuscitou no terceiro dia? E, se for assim - falando agora de uma perspectiva especificamente calvinista e presbiteriana -, por que não ir um pouco além e dizer que os sinergistas sabem que estão errados quanto à predestinação, ou que os batistas sabem que deveriam batizar suas crianças? Será que tudo isso faz parte da intuição humana universal? Se fosse o caso, poderíamos reconstruir todo o nosso sistema teológico apenas examinando atentamente nossas intuições e prescindindo inteiramente das Escrituras. Mas, além de essa conclusão ser o oposto exato do que pretendem os próprios defensores da idéia em questão, o quadro todo possui a falha evidente de atribuir à intuição humana universal uma porção de conteúdos que, embora obviamente se refiram a assuntos espirituais, são conteúdos próprios do intelecto. Pois é esse fato que torna impossível estabelecer uma linha demarcatória nítida entre o que incrédulo sabe e o que ele não sabe. Todas essas questões indicam que alguma coisa importante foi deixada de fora desse esquema também, assim como vimos que aconteceu no primeiro caso.

Mas qual é, então, o papel real da razão? E qual deve ser o papel da argumentação racional na apologética? Creio que ela é muito necessária, não porque o problema básico do homem seja de natureza intelectual, mas porque a razão do homem decaído funciona freqüentemente como um anestésico, uma barreira atrás da qual ele confortavelmente se esconde e permanece imune à necessidade de encarar certos fatos sobre si mesmo. Isso não significa que o homem esteja nessa situação de modo consciente e deliberado. Mas significa, de qualquer forma, que essa camada de pretextos precisa ser removida; o homem deve ser deixado a sós com Deus, com a Verdade, nu, desprotegido, sem qualquer subterfúgio a que possa recorrer. Enquanto persistem as objeções racionais à fé, o incrédulo pode enganar-se pensando que isso é tudo. É apenas quando seus argumentos começam a ruir estrondosamente que ele pode se dar conta de que eles não eram, na verdade, o real motivo, e então render-se à Verdade ou permanecer firmemente recolhido em sua rebeldia; dobrar seus joelhos nesse mesmo instante ou dobrá-los apenas, e involuntariamente, no último dia.

17 de setembro de 2008

Sexta colheita, ou: mais cartas de uma bruxa

Nesta postagem terminarei o que comecei na anterior, isto é, a atenção aos comentários recebidos a propósito do post Uma dúzia de tiranos. Resta ainda o comentário do Bruno, em resposta ao qual vi-me obrigado a me delongar um pouco a fim de fazer-lhe justiça. Como os e-mails que enviei ao Gustavo e ao Otávio, este também foi enviado em 16 de julho, e não recebi resposta até o momento. Transcrevo abaixo o comentário dele e a minha resposta:

"Então ele critica as pessoas, não as idéias, avaliando se suas vidas são coerentes com uma determinada moral, que não é a que estes intelectuais defendiam, talvez nem mesmo a mais comum na época em que viveram? É assim que idéias são desqualificadas?

Dizer que Marx não gostava de banho, Russell era incompetente para atividades mecânicas e Sartre abusava de álcool e drogas, torna suas obras menos relevantes, ou menos coerentes?"


"Olá, caro Bruno! Finalmente consegui arrumar um tempo para dizer algo sobre o primeiro comentário feito por você no meu blog, comentário esse que foi, devo dizer, uma surpresa muito agradável para mim. Mas vamos ao que interessa.

Uma pessoa que tivesse seu comentário como única fonte de informação sobre o livro em questão concluiria facilmente o seguinte: 1. Paul Johnson julga os intelectuais não segundo os critérios da moral que eles mesmos defendiam, e sim segundo os de alguma moral que eles rejeitavam, ou que talvez nem fosse a predominante nos seus respectivos meios sociais. 2. Partindo desse fundamento em si mesmo altamente questionável, o autor piora a situação ao tentar impugnar as concepções teóricas defendidas por esses intelectuais por meio de um simples argumentum ad hominem. 3. E, como se não bastasse, as deficiências encontradas por Johnson nas pessoas que analisa são objetivamente insignificantes, presumivelmente porque ele não pôde encontrar nenhuma acusação mais sólida para fazer. Em resumo, o espírito do livro é algo tão besta quanto 'Marx não tomava banho, portanto o marxismo é uma fraude' e bobagens semelhantes.

Porém, se uma pessoa atingisse tais conclusões a respeito do conteúdo do livro, ela facilmente perceberia, quando começasse a lê-lo, que havia se enganado imensamente. Tão imensamente que ela poderia chegar a suspeitar que você, caro Bruno, tentou enganá-la propositalmente. Se me dou ao trabalho de dizer algo sobre esse seu comentário, é apenas porque não acho provável que você tenha dito tais coisas por desonestidade. Não sei se você leu o livro, mas a caricatura que você faz dele é tão monstruosamente distorcida que só o fato de não tê-lo lido pode lhe servir de desculpa. Os exemplos que você cita (sobre Marx, Russell e Sartre) demonstram ao menos que você tem alguma outra fonte de informação sobre o livro. Prefiro, portanto, acreditar que você acreditou de boa fé nas bobagens que encontrou nessa fonte e as repetiu no meu blog sem saber direito o que dizia. Chego a essa conclusão por crer que é meu dever pensar das pessoas o melhor que as circunstâncias permitem, pois a ignorância me parece algo bem menos grave que a desonestidade.

O único fragmento de razão existente em tudo o que você disse reside no fato de que Johnson, em algumas passagens, critica as atitudes dos intelectuais examinados a partir de fora, e não das concepções defendidas por eles próprios. Assim, por exemplo, ele critica Shelley com base na forte evidência de que ele pretendeu, numa certa época, transar com sua irmã de doze anos, e tudo indica que só não chegou a fazer isso por pura falta de oportunidade. Evidentemente é uma crítica do tipo que você mencionou, já que o grande poeta visivelmente era pervertido demais para ver algo errado nisso. De qualquer forma, não se trata de defender uma moral alheia à que era aceita na sociedade de então; não conheço muitas culturas, mesmo entre as mais hediondas, em que essa prática seja aceitável. Além disso, em boa parte dos casos Johnson critica os intelectuais por atitudes que violam não apenas as normas aceitas na sociedade em que viviam, mas também as normas que sempre foram aceitas em todos os tempos onde quer que tenha havido seres humanos. Refiro-me a coisas como pagar o que se deve, trabalhar para levantar o próprio sustento, não mentir apenas para se dar bem (sobretudo quando isso envolve calúnia), se preocupar com o bem estar dos próprios filhos, ser honesto no relacionamento com o cônjuge (ou seu equivalente), não ser ingrato com os que nos ajudaram, e assim por diante. Cada uma dessas normas absolutamente elementares foi violada sistematicamente por pelo menos um dos intelectuais analisados no livro.

Devo dizer ainda que, ao contrário do que você dá a entender, a crítica de Johnson não se limita a detalhes bobos como falta de banho ou de habilidades mecânicas (não incluo aqui o vício em álcool e drogas, que é algo bem mais grave). Aliás, o próprio Johnson não dá grande importância a essas coisas, mencionando-as apenas de passagem e como meio de quebrar um pouco a seriedade da narrativa. Fazer de conta que essas coisinhas constituem o núcleo da argumentação do autor só pode ser resultado de desonestidade ou burrice. Prova muito maior da incapacidade moral dos tais intelectuais se encontra na recusa de Russell de assumir a responsabilidade pelo conteúdo dos seus próprios pronunciamentos (como, por exemplo, quando ele negou ter dito que a extinção da humanidade era preferível ao mero risco da ascensão de um governo comunista mundial - idéia que ele havia defendido em pelo menos dez ocasiões diferentes), ou no fato de Sartre ter chamado Charles de Gaulle de nazista, desconsiderando o fato de que o general havia sido o líder da resistência francesa durante a ocupação alemã, enquanto o próprio Sartre transitava livremente, escrevendo artigos para revistas que colaboravam com a ocupação.

Porém, o melhor exemplo de todos ainda é o de Marx. O caso dele basta para ilustrar dois fatos. O primeiro é que uma parcela significativa das críticas que Johnson faz aos intelectuais em questão diz respeito justamente à incoerência entre suas atitudes e aquilo que eles mesmos pregavam. É chocante descobrir que o mesmo homem que criticou ferozmente os empresários por pagarem salários tão baixos aos seus funcionários tinha uma 'empregada' que jamais recebeu salário algum - sendo, portanto, uma escrava. E é pior ainda descobrir que o mesmo homem que, nas páginas do Manifesto comunista, vociferou contra os burgueses que se aproveitavam sexualmente das mulheres pobres teve um caso com a 'empregada', engravidou-a e não assumiu o filho.

O segundo fato é que Johnson é bem mais consistente do que você parece crer quando resolve, com base em suas considerações biográficas, questionar a validade dos sistemas teóricos erigidos pelos filósofos em questão. O caso de Rousseau também é muito instrutivo, mas para não me estender demais eu vou continuar falando de Marx. Concordo que a antipatia pelo sabonente não milita contra as teses de Marx. Mas não se pode dizer o mesmo da constatação de que suas conclusões sobre o estado final da humanidade já estavam substancialmente prontas muito antes que ele começasse a estudar o que quer que fosse. Esse fato no mínimo fornece razões para suspeitarmos de que sua teoria não é uma dedução a partir dos fatos, e sim um critério a partir do qual os mesmos deveriam ser julgados. E essa suspeita ganha muita força quando começam a surgir evidências de inúmeras fraudes na forma como ele usou os dados para argumentar em favor de sua tese, ignorando ou distorcendo dados que a contrariavam. Esses fatos denunciam uma deficiência moral particularmente grave, ainda mais vindo de alguém que se considerava o grande defensor do socialismo 'científico' contra as versões 'utópicas' de seus predecessores.

Há muito mais que eu poderia dizer, mas vou parar por aqui. Apenas dois adendos, antes de encerrar. Primeiro: Johnson também se esforça para encontrar características positivas nos intelectuais analisados, o que em alguns casos requer um esforço verdadeiramente monumental. E segundo: sendo Sartre um existencialista, e insistindo em construir toda a sua filosofia - inclusive a ontologia - tomando como ponto de partida sua própria subjetividade, é perfeitamente válido e até natural que julguemos a validade de suas idéias pela riqueza ou pobreza de sua experiência interior. E, lendo as coisas que ele escreve, elas me parecem paupérrimas.

Aguardo sua resposta. Abraços!"

*******

Cumprindo minha outra promessa feita no post anterior, transcrevo abaixo meu e-mail, até o momento não respondido, ao tal B.M.:

"Olá, B.M.! Sim, eu acompanhei a briga, ou pelo menos o que saiu no blog Pensamentos Cativos e no do Gustavo. Eu, pessoalmente, não tenho do que reclamar, e não me senti ofendido em momento algum. O que tenho a reprovar nas suas atitudes está em sua relação com outras pessoas, não comigo mesmo. Mas parece-me que você sabe exatamente onde errou, e de qualquer forma não sou dado a fazer sermões. Esqueçamos tudo isso, portanto.

Quanto ao que realmente importa, direi apenas o estritamente suficiente para tornar mais claro o que eu disse na minha última participação. O Gustavo não disse em momento algum que considera o Lula um completo imbecil, e nem que considera o Alckmin um melhor administrador público. Eu tampouco disse algo nessa linha; e, embora me pareça que esse é um fato, minhas maiores razões para preferir Alckmin a Lula não têm nada a ver com isso. Seu maior erro, caro B.M., está em supor que programas oficiais de governo e capacidade administrativa devem ser o critério decisivo em política. O Igor citou alguns problemas adicionais: 'Sabemos, o homem tem outros defeitos, como ser ou, pelo menos, ter sido, excessivamente chegado ao álcool; usar metáforas cretinas freqüentemente; ser vulgar; declarar-se sem pecado, e muitos etc.' Eu subscrevo todos esses motivos, com ênfase sobre o último, que é um sinal inconfundível de incapacidade moral. Mas há outros, dentre os quais destaco a notória simpatia do Lula pelo chavismo, pelo castrismo e por outras ditaduras comunistas ao redor do mundo; sua efetiva aliança, mal disfarçada durante anos a fio, com entidades criminosas como o MIR e as FARC, sendo que a primeira esteve ativamente envolvida em seqüestros de cidadãos brasileiros, e a segunda, através de seus contatos escusos com o PCC, tem abarrotado de drogas o mercado nacional, fomentado o crime organizado e provocado o assassinato de dezenas de milhares de brasileiros; o fato de que o próprio Lula fundou e presidiu por doze anos a coordenação estratégica das entidades comunistas na América Latina, que age por todos os meios, legais e ilegais; e, enfim, o viés nitidamente totalitário do PT e da ideologia adotada por ele. Outros motivos poderiam ser citados, mas menciono esses apenas para deixar claro que nem todas as pretensões de poder de um partido, assim como nem todas as ações efetivamente realizadas, aparecem nos planos de governo. Nunca conversei diretamente com o Gustavo a respeito, mas o conheço suficientemente para ter certeza de que ele está consciente desse fato. Você, ao contrário, não dá o menor sinal disso, dando a impressão de que política se resume a questões de administração pública. Por pensar dessa forma, inferi eu, você deve achar que, por conhecer os programas de governo dos candidatos e respectivos partidos, você sabe muito de política. Sinta-se livre para rejeitar minha crítica, se achar que ela não se justifica. Apenas espero que agora minhas razões para atingir essa conclusão estejam mais claras para você.

Quanto à sua última pergunta, minha posição é simples: o Estado não tem direito algum de dizer às pessoas o que elas devem considerar interessante ou importante. Se uma pessoa chega à conclusão de que não deve se interessar por política, não vejo porque ela deveria ser obrigada a sair de casa para demonstrar isso. Obrigar o cidadão a ir até a urna e dar-lhe, simultaneamente, a opção de não votar em ninguém parece-me, antes de tudo, um incômodo perfeitamente dispensável e, portanto, ilógico. Feitas essas considerações, a minha resposta é: sim, o fato de o Gustavo ser obrigado a sair de casa, andar alguns minutos e enfrentar uma fila, grande ou pequena, é uma afronta à liberdade dele, por mais insignificante que ela seja.

Abraços!"

16 de setembro de 2008

Quinta colheita, ou: cartas de uma bruxa

De tudo o que tenho publicado neste blog nos últimos meses, nada chamou a atenção mais que este post, no qual fiz pouco além de reproduzir um texto que não é meu. Eu mesmo seria o último a afirmar que isso é uma injustiça. Ainda assim, eu pretendia elaborar, num futuro não muito distante, alguns comentários relacionados ao tema do livro Os intelectuais. Ainda pretendo, aliás, mas vou adiar um pouco essa empreitada a fim de dar a atenção devida aos quatro comentários que aquela postagem recebeu. Talvez eu devesse dedicar a eles um texto escrito decentemente e que possuísse uma certa continuidade. Contudo, minha preguiça me leva a escolher outro caminho. Mantenho há tempos o hábito de responder por e-mail aos comentários que recebo. Posso ter deixado de fazer isso em uma ou outra ocasião, por puro esquecimento; e, não raras vezes, demoro para responder. Além disso, ocasionalmente recebo comentários de pessoas que não conheço e cujos endereços não tenho como descobrir. Mas nada disso aconteceu no caso em questão: tive o trabalho de enviar quatro e-mails, que expressam bem o que eu tinha a dizer sobre os comentários que recebi. Reproduzo abaixo três desses comentários e as respostas que enviei aos respectivos autores, acompanhadas de breves esclarecimentos. O outro caso, por ser mais extenso, será publicado à parte, dentro de alguns dias.

O primeiro comentário é justamente o que vou deixar para depois. Temos a seguir o do Otávio, que foi este:

"Então, eu não li o livro ainda mas pelo que entendi do post e do trecho o livro é justamente uma crítica a isso que se faz contra certos líderes, julgando seu carater ou seus 'péssimos' hábitos.

Algo que achei interessante é que ele faz uma crítica direcionada aqueles que criticam autoridades religiosas, por exemplo, por sua conduta dentro de seus preceitos e valores pregados pela instituição. Entretanto, apesar de não ter lido o livro e tomando somente base nos trechos transcritos aqui, ele faz exatamente a mesma coisa com esses intelectuais.

É só isso! Abração!"

A minha resposta foi esta:

"Olá, meu caro amigo! Em momento algum, no trecho do livro que transcrevi ou em qualquer outro, aparece qualquer reprovação ao ato de criticar alguém por não viver de acordo com os princípios que prega. Se foi isso o que você entendeu desculpe, mas você não leu direito. Johnson não critica os intelectuais por fazerem críticas aos líderes religiosos com base em suas condutas pessoais; ele os critica porque o que motiva essas críticas não é a repulsa pela hipocrisia, e sim o oportunismo político que se apóia sobre uma hipocrisia maior ainda. Isso tudo foi muito bem sintetizado pelo meu amigo Gustavo, que comentou logo depois de você. Sugiro que você dê uma lida no comentário dele, caso ainda não o tenha feito.

Abraços, e obrigado pela participação!"

O terceiro comentário foi feito pelo Gustavo Nagel. Ele transcreveu uma breve consideração escrita por ele mesmo e publicada no seu blog (que, para meu desgosto, ele deletou recentemente) em 22 de junho do ano passado, o qual dizia o seguinte:

"A impressão que me ficou da leitura de parte de Os Intelectuais, de Paul Johnson, é que só se conhece um pensador, um filósofo moderno, ou algo do tipo, através da leitura de sua correspondência. O sujeito se mostrava um anjo enquanto escrevia seus ensaios filosóficos, intencionando neles um desejo sublime de amar e salvar toda a humanidade, mas em carta dirigida a uma das dez mulheres que tinha, por exemplo, ele a mandava ao inferno umas trezentas vezes. Donde concluí que amar a 'humanidade', para alguns desses demagogos, era o modo mais fácil de odiar as pessoas; bem como aprendi que se é muito mais verdadeiro quando não se tem a pretensão de ser visto, lido, ouvido: eles eram o que eram não enquanto escreviam suas belas obras humanísticas, ou proferiam seus ardorosos discursos messiânicos, mas enquanto, longe dos olhos da multidão, sem toda aquela afetação, odiavam as pessoas mais próximas."

A isso o Gustavo acrescentou as seguintes palavras: "Paul Johnson se ocupa, é verdade, com a vida dos intelectuais em questão, mas apenas na medida em que elas notadamente contradizem seus apelos quase messiânicos etc.". E, em resposta, eu disse o seguinte:

"Olá, Gustavo! Apesar da demora, estou escrevendo para agradecer seu comentário ao meu post Uma dúzia de tiranos. Você sintetizou muito bem aquilo que meus dois amigos esquerdistas que comentaram antes de você não puderam ou não quiseram ver. Daqui a pouco vou responder a eles também, e desenvolver melhor alguns pontos pertinentes. Dentro de algumas semanas deverei publicar um novo post comentando os resultados dessas discussões. E aproveitarei para fazer menção a esse parágrafo que você publicou no seu blog a respeito do livro no ano passado. Eu havia até me esquecido disso, mas o fato é que foi através desse seu post que eu soube da existência desse livro (embora já conhecesse o autor), e resolvi que o leria se um dia tivesse a oportunidade.

Abraços, e obrigado mais uma vez!"

Os e-mails acima foram enviados em 16 de julho, e não recebi resposta a nenhum deles (no caso do Gustavo, obviamente, nem havia mesmo motivo para responder). Já a Ludmila, autora do quarto comentário, estabeleceu comigo uma interessante discussão, que se prolongou ainda por mais três e-mails de cada parte. Interessante para mim, é bom deixar claro, já que o ânimo da minha amiga diminuiu na proporção exata em que o meu ia crescendo, até que ela decidiu que não valia a pena discutir com um representante moderno da Idade das Trevas. Não transcreverei aqui o debate todo, que acabou se desviando consideravelmente rumo a várias outras questões, algumas das quais eu pretendo abordar em posts futuros. Além disso, ainda não parei para analisar quais das questões discutidas (e até que ponto) são diretamente pertinentes do ponto de vista do que expus no post. Talvez (e apenas talvez) algumas se relacionem ao tema, ou aos desenvolvimentos adicionais que pretendo fazer. De qualquer forma, mesmo que apenas para justificar o título que dei a este post, transcrevo abaixo minha resposta ao comentário da Ludmila.

O comentário foi a respeito de uma única frase de Johnson; aquela em que ele afirma que os intelecuais "não apenas devem ser mantidos bem afastados das engrenagens do poder como devem ser objeto de uma desconfiança particular quando procuram dar conselhos coletivos." Ela disse: "É a caça às bruxas do século XXI." E a minha resposta foi:

"Olá, Ludmila! Espero que esteja tudo bem com você. Fiquei surpreso e feliz ao ver seu comentário. Não esperava que você tivesse algum interesse em ler o que escrevo (no caso, transcrevo), nem sei o que a levou a isso. Mas, já que é o caso, creio que devo dizer o que penso sobre o seu comentário.

Apesar de ter sido feito em apenas uma frase, ele tece uma comparação equivocada num aspecto fundamental: por suas pretensões de poder e por seu papel social efetivo, os intelectuais não se assemelham às bruxas, e sim ao clero que as punha nas fogueiras. Paul Johnson foi muito perspicaz ao descrever os sacerdotes, escribas e profetas de antigamente como 'primeiras encarnações' dos intelectuais. É óbvio que todos eles têm em comum a pretensão de possuir a sabedoria necessária para guiar a sociedade, e é igualmente óbvio que os intelectuais seculares de fato orientam a sociedade atual, tanto quanto os religiosos orientaram as sociedades do passado. É claro que, insatisfeitos com a dose de poder de que já dispõem, eles se queixam constantemente de que são uma pobre minoria perseguida por contrariar os interesses dos donos do poder, numa tentativa de conquistar mais poder ainda. (E é um truque bastante eficaz, como se nota no fato de que você mesma considera a restrição dos poderes deles como algo comparável à carbonização de bruxas.) Isso tudo é papo furado. Eles não são as bruxas, e sim os inquisidores. A bruxa aqui sou eu.

Beijos."

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Aproveitarei este espaço para comentar outro fato. Dos quatro comentários à minha postagem mais recente, A amizade das leis, apenas um é de fato um comentário acerca do que diz o texto. Os outros dizem respeito a uma discussão que começou em outro lugar, e na qual me envolvi apenas de passagem. Trata-se de um curto post do Gustavo em um blog que ele mantém em conjunto com três amigos dele. Ali, depois de expor suas razões para preferir o voto nulo, e de ter mencionado que abriu mão desse preceito na última disputa presidencial apenas para impedir a reeleição do Lula, ele recebeu uma crítica estúpida (em ambos os sentidos: racionalmente idiota e desnecessariamente grosseira) de um tal B.M.. Fiz ali um comentário em apoio ao meu amigo, e então o B.M. voltou sua atenção para mim também. Tivemos uma breve discussão, num tom não muito amistoso, mas também sem novos insultos ou grosserias. Toda a minha participação nessa história resume-se aos três comentários do post que indiquei. Mas outras pessoas se envolveram, e o bate-boca prolongou-se por outros posts do mesmo blog. O tal B.M. deu continuidade a ela nos comentários deste post do João (post excelente, aliás, e sem qualquer relação com o problema). Depois o Igor, outro membro do blog, dedicou ao B.M. este post, e parte deste outro, ambos os quais renderam mais bate-boca nos comentários. Paralelamente, o B.M. também foi falar bobagens e proferir grosserias no agora extinto blog do Gustavo. Enfim, depois de ter cassado seu direito à manifestação em ambos os blogs, veio me procurar para se desculpar por possíveis ofensas proferidas contra mim, e para pedir certos esclarecimentos sobre as últimas coisas que eu havia dito. Tudo isso ficará claro para quem ler o que o B.M. escreveu aqui no meu blog à luz do post original do Gustavo e dos seus comentários publicados ali. O restante da discussão eu só recomendo a quem queira se divertir um pouco. Estou contando essa história aqui apenas para esclarecer, a leitores possivelmente perplexos, o que um comentário sobre os méritos relativos de Alckmin e Lula, a legitimidade do voto obrigatório e coisas do gênero está fazendo num post sobre um diálogo de Platão. No próximo post, embora eu não esteja certo de que realmente devo fazer isso, transcreverei o e-mail que enviei ao B.M. em resposta ao seu comentário.

21 de agosto de 2008

A amizade das leis

Apresento nesta postagem o resumo de um outro diálogo platônico, o Críton. Essa obra está intimamente relacionada à Apologia de Sócrates, que apresentei aqui. Tendo sido condenado, Sócrates aguarda na prisão o cumprimento da sentença de morte. Críton - que é um dos seus melhores amigos, e é também um homem já idoso - vai visitá-lo antes do amanhecer. Contudo, encontra seu amigo num sono tão doce que resolve não interrompê-lo. Senta-se e aguarda que Sócrates desperte por si mesmo, e então começam a conversar. Fora decidido que o filósofo morreria no dia seguinte ao da chegada de um certo navio de Delos. Críton vem informar que tudo indica que o navio chegará naquele mesmo dia. Sócrates, porém, crê que o navio só chegará no dia seguinte, de acordo com um sonho que teve e que considera uma mensagem dos deuses.

De qualquer modo, Críton expõe a razão de sua vinda: pretende convencer seu amigo a fugir da pena, e apresenta seus motivos. 1. Críton teme a má reputação que lhe trará a morte de Sócrates, pois ninguém acreditará que este absteve-se de fugir por decisão própria; todos pensarão que seus amigos não fizeram caso de sua vida, recusando-se a gastar algum dinheiro (subornando os guardas, contratando bandidos para protegê-lo e providenciando sua partida para outra cidade) para vê-lo livre e, desta forma, prezando mais o dinheiro que o amigo. 2. Se Sócrates evita a fuga por temer que seus amigos venham a ser punidos por isso, deve deixar isso de lado, pois seus amigos estão dispostos a correr riscos para vê-lo livre da morte. 3. Críton garante que não é grande a quantia necessária para consumar o plano; seu próprio patrimônio é suficiente, mas há muitas outras pessoas dispostas a colaborar. 4. Também não deve se preocupar com seu sustento no exílio, pois Críton tem amigos ricos e influentes na Tessália, que proverão tudo de que o filósofo necessitar. 5. A recusa em fugir é um erro, pois contribui para a concretização da injustiça desejada por seus inimigos. 6. Sócrates erra também ao não pensar no futuro de seus filhos pequenos, os quais ele tem o dever de educar e preparar para a vida. 7. Ainda pior que a acusação de avareza, o povo atribuirá aos amigos e ao próprio Sócrates a covardia, por não terem feito nada para impedir o desfecho "mais ridículo da história", desde o instante em que o filósofo foi intimado a comparecer ao tribunal.

Após ouvir tudo isso, a primeira reação de Sócrates é exclamar: "Querido Críton, quão precioso o teu ardor, se alguma retidão o acompanhasse!" Propõe-se a examinar a proposta do amigo, a fim de ver se deve proceder de acordo com ela, pois ele só pode agir de acordo com o que sua razão indica ser o melhor caminho. A evolução das circunstâncias não deve, por si mesma, prevalecer sobre as razões atemporais que sempre motivaram suas decisões. Assim, se Sócrates sempre creu que algumas opiniões são dignas de consideração e outras não o são, não pode passar a fingir que isso era uma brincadeira apenas pelo fato de que a persistência nessa idéia o levará à morte. O filósofo propõe começar desse ponto a análise do problema, e vai obtendo, passo por passo, o assentimento de seu amigo.

O ginasta, diz Sócrates, não deve dar importância indiscriminadamente ao parecer de todos os homens quanto à sua dieta e ao seu treinamento, e sim apenas aos dos médicos e instrutores de ginástica. Não procedendo assim, arruinará seu próprio corpo, e é impossível viver com um corpo arruinado. É evidente, portanto, que as opiniões não são todas valiosas: existem as boas, das pessoas judiciosas, e as ruins, das insensatas. Quando se trata de proceder de acordo com o que é justo, belo e bom, deve-se igualmente procurar a aprovação dos que porventura entendam dessas coisas, ainda que sejam poucos, e não a da multidão. A injustiça, no entanto, prejudica uma parte do nosso ser que é muito mais valiosa que o corpo, e a justiça a beneficia. A autoridade nesse assunto é a Verdade mesma, e deve-se proceder de acordo com ela, e não com as opiniões do vulgo.

Pode-se, sem dúvida, objetar que a opinião do povo não deve ser desprezada tão temerariamente já que, como demonstra a própria situação em que o filósofo se encontra, o povo tem o poder de causar a morte do homem que despreza a opinião pública. Sócrates considera, porém, que a mera perpetuação da vida não tem tanto valor em si mesma, se não for possível perpetuar a qualidade da mesma. E viver bem é apenas viver de maneira honrada e justa. Assim, toda a questão se resume a saber se é justo ou não que Sócrates saia da prisão sem o consentimento dos atenienses. É necessário, antes de seguir os conselhos de Críton, certificar-se de que as razões elencadas por ele são criteriosamente justificáveis, e não elaboradas segundo os hábitos inconstantes do povo. "Oxalá, Críton, fosse o povo capaz de praticar os maiores males, para ser capaz também dos maiores benefícios! Seria esplêndido. Não o é, porém, nem destes nem daqueles. Incapaz de dar o siso, bem como de tirá-lo, ele obra ao sabor do acaso."

A injustiça, em bons ou em maus momentos, é sempre um mal e uma vergonha para quem a comete, e portanto não deve jamair ser cometida, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida. Causar mal a alguém é, portanto, sempre uma injustiça. Poucos compreendem e aceitam esse princípio, mas Sócrates e Críton concordam quanto à sua validade. O filósofo afirma então que o não cumprimento de um acordo é uma injustiça. Fugir da sentença seria reduzir a nada as leis da cidade, pelas quais ele foi condenado, subvertendo, na verdade, toda a cidade, em pequena escala, isto é, na medida de suas possibilidades. Sócrates poderia, naturalmente, justificar-se alegando que a condenação foi injusta. Mas o fato é que ele comprometeu-se de antemão a submeter-se à decisão do tribunal. Foi graças à cidade e às suas leis que Sócrates pôde nascer, crescer e viver, pois a cidade tem leis que regulam os casamentos e a educação dos filhos, leis contra as quais ele nunca teve de que se queixar. Por conseguinte, seu dever de obediência à cidade não é menor que o de obediência do filho ao pai ou do servo ao senhor. É, na verdade, maior, pois é dever de todo cidadão sofrer pelo bem da pátria sempre que for necessário, se não for possível dissuadi-la pelos meios legitimamente proporcionados por ela mesma. A retaliação contra a cidade não se justifica, como não se justifica a retaliação contra os pais e senhores.

A todos os benefícios que a cidade oferece, a Sócrates e a todos os cidadãos, soma-se a concessão do direito ao desacordo quanto ao seu modo de funcionamento. Não há lei alguma que vete ao homem insatisfeito com o povo da cidade e com suas leis a opção de mudar-se para um lugar que o agrade mais. Se, a despeito dessa permissão, Sócrates permaneceu toda a sua vida em Atenas, só se ausentando dela em duas breves ocasiões, e se contraiu casamento e constituiu família ali mesmo, ele comprometeu-se tacitamente a obedecer às suas normas, e não tem o direito de evadir-se repentinamente desse compromisso com base apenas em sua conveniência pessoal, pois as leis determinam que o réu que não consegue convencer a assembléia de sua inocência deve receber a punição. Assim, com atos, e não com palavras, o filósofo selou seu compromisso. Se Sócrates desejava o exílio, deveria tê-lo alcançado pelas vias legais, quando lhe foi dada a oportunidade de propor uma pena para si mesmo. Poderia, então, ter conseguido, com o consentimento do povo, o que agora iria tentar sem ele. Naquela ocasião, enretanto, ele afirmou preferir a morte ao exílio, e agora não tem mais o direito de mudar de opinião.

Além disso, argumenta Sócrates, que benefícios a fuga realmente traria para si ou para seus queridos? Os amigos sem dúvida correrão perigo de sofrer punição por causa dele. Ele próprio chegaria a outra cidade como inimigo das instituições, e seria recebido com desconfiança por todos os que se importam com a lei. Ao fugir, Sócrates favoreceria a reputação dos que os condenaram, pois então se tornaria indiscutivelmente criminoso, e todo criminoso pode passar por corruptor dos jovens. Diante de tal situação, ele não poderia atrever-se a prosseguir em sua missão de incentivar os homens ao bem e à virtude. E, mesmo que fosse para uma cidade em que reina a desordem e as leis não são tidas em alta conta, não poderia manter sua honradez. O povo da cidade dificilmente teria em alta conta um homem que, estando já naturalmente tão próximo da morte e buscando adiá-la por mais um curto intervalo de tempo, não hesitou em submeter-se aos ridículos disfarces dos fugitivos. Ele viveria de favores e envergonhado. Se levasse os filhos para a Tessália, ou para outro lugar qualquer, eles cresceriam como estrangeiros, o que absolutamente não lhes seria um benefício. Será melhor para eles ficarem em Atenas aos cuidados dos amigos de seu pai; e ter um pai fugitivo e exilado não lhes seria mais vantajoso que ter um pai morto por viver segundo a justiça.

Enfim, não é aceitável transgredir as leis em favor de nenhum dos pretextos apresentados por Críton. Submetendo-se à sentença, Sócrates chegará ao Hades tendo sido vítima de injustiça, não por parte das leis, mas por parte dos homens; caso contrário, será ele próprio um transgressor da lei, e as leis do Hades, solidárias às suas irmãs atenienses, não lhe serão favoráveis. E, visto que Críton nada mais tem a dizer, o caminho a tomar está decidido, e o filósofo conclui: "Então desiste, Críton; procedamos daquela forma, porque tal é o caminho por onde a divindade nos guia."

1 de agosto de 2008

Uma grande morte

Hoje vou iniciar um projeto que está nos meus planos há muito tempo, o qual é fruto da confluência de duas constatações: 1. não poderei me considerar gente enquanto não conhecer plena e diretamente as obras de Platão e Aristóteles; e 2. eu aprendo melhor sobre um assunto escrevendo do que simplesmente lendo a respeito. A primeira constatação, feita há mais de dois anos, me fez decidir que, sem perda de tempo, eu deveria ler todos os diálogos platônicos. Apesar disso, perdi bastante tempo desde então, e só agora estou começando realmente a fazer isso: reler os que já li e ler os que ainda não li. A segunda me fez decidir que adotaria o procedimento de escrever resumos das obras na medida em que as fosse lendo, o que me obrigaria a lê-las com calma e atenção, pensando e articulando o melhor possível seus elementos. Esse procedimento traria ainda a vantagem adicional de facilitar a memorização, além de colocar à disposição um esquema ao qual sempre poderei recorrer mais tarde. E, já que vou fazer isso, não vejo razão para não publicar essas anotações. Elas poderão ser úteis - se não como instrução, ao menos como incentivo à instrução - para os leitores não familiarizados com as obras, e poderão ser úteis para mim, na medida em que leitores com mais amplos conhecimentos sobre o tema decidirem compartilhá-los comigo.

Sem mais delongas, portanto, passo a expor algumas anotações sobre um dos mais belos textos que já li, a Apologia de Sócrates, na qual Platão reproduz o discurso de seu mestre por ocasião de seu julgamento pela assembléia de Atenas, o qual culminou, como disse Idel Becker, em "uma das grandes mortes da história".

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O discurso de Sócrates divide-se em três partes, relacionadas às etapas do julgamento. Na primeira, a mais longa, ele faz sua defesa, logo após a acusação feita por Meleto, seu denunciador. O discurso de Sócrates contrasta em vários aspectos com o dele, e também com os procedimentos usualmente adotados pelos réus do tribunal de Atenas. Ele não se considera um orador hábil, recusa-se a utilizar a linguagem dos tribunais e apresenta-se com a simplicidade que caracterizou todos os seus debates públicos. Também não faz drama, não derrama lágrimas, não traz seus filhos pequenos para implorarem por sua vida aos juízes. Todos esses procedimentos, além de indignos de um ancião (ele já tinha mais de setenta anos), são injustos em si mesmos, pois a função do juiz requer que ele não se deixe levar por apelos emocionais e retóricos, mas concentre-se em avaliar à luz da lei as evidências e os argumentos apresentados. Por conseguinte, é errado tentar persuadir os juízes por tais meios. Em sua defesa, o filósofo utiliza como suas únicas armas a justiça e a veracidade da causa que defende.

Antes de reportar-se diretamente ao discurso de Meleto, no entanto, Sócrates vê-se obrigado a defender-se de um outro acusador, pior que ele: a multidão, que é mais temível justamente por ser anônima ("exceto, talvez, algum comediógrafo" - clara referência a Aristófanes, que difamou Sócrates em sua peça As nuvens) e porque o caluniou durante anos a fio, deixando-lhe, no entanto, pouco tempo para defender-se naquele tribunal. Ela o acusou sempre de desprezar os deuses, de especular indevidamente sobre os mistérios do céu e da terra, de ser um sofista (no pior sentido da palavra) e de corromper a juventude. E o fez aproveitando-se da pouca idade de seus ouvintes, os quais, escutando tais calúnias desde a infância, cresceram habituados a tomá-las como verdadeiras, e agora são adultos e compõem aquela assembléia. A acusação de Meleto é apenas um resultado acidental desse problema de proporções muito maiores.

Em sua defesa, Sócrates apela ao testemunho da própria assembléia: que cada um se esforce para lembrar do que o ouviu ensinar, e cada um interrogue seus vizinhos quanto ao que estes ouviram. Isso bastaria para mostrar que as acusações não procedem, que o filósofo não defendeu a doutrina de Anaxágoras, nem as dos sofistas, nem sequer demonstrou interesse por tais idéias ou pretensão de tê-las compreendido. Por isso mesmo jamais procurou reunir discípulos, nem exigiu dinheiro dos jovens que o seguiram espontaneamente, e tampouco prometeu-lhes qualquer coisa ou ensinou a algum deles algo diferente do que disse a todos os demais. Se tivesse dito algo que pudesse corromper os jovens, seria de se esperar que ao menos alguns, tendo alcançado a maturidade, tomassem consciência do fato e se dispusessem a acusá-lo, ou que seus parentes reprovassem a conduta deles e responsabilizassem o filósofo por isso. No entanto, muitos deles estavam ali presentes e nada tinham de que se queixar.

Mas como se explica, então, o surgimento de tais mentiras sobre ele? Elas se devem à natureza da sua missão, que começou de maneira bastante inusitada. Um falecido amigo seu chamado Querofonte, conhecido e querido por todos os presentes na assembléia, havia ido certa vez a Delfos consultar o oráculo de Apolo, e nessa ocasião o deus afirmara não haver homem mais sábio que Sócrates. Tal declaração muito surpreendeu o próprio Sócrates, que não se considerava sábio de modo algum. Não podendo crer, contudo, que o deus mentira, pôs-se a refletir sobre o sentido daquelas palavras. Decidiu então refutar o oráculo, indo ter com eminentes políticos tidos por muitos - e por si mesmos - como sábios. Logo descobriu, porém, que esses homens não eram sábios de fato e, ao tentar fazer-lhes ver isso, conseguiu apenas a inimizade deles e de seus admiradores. Procurou em seguida os poetas, mas descobriu que eles não compreendiam sequer o significado de seus próprios versos, e também granjeou a inimizade deles, pois também estes se consideravam sábios. Foi então, aos artífices e achou-os sábios em sua arte. Porém, erravam em supor que isso os tornava sábios em assuntos mais elevados, e nisso eram iguais aos outros.

Ao longo desse processo, apesar do medo que sentiu ao despertar tanta hostilidade, o filósofo convenceu-se de que devia prosseguir realizando o propósito do deus, cumprindo a missão que este lhe comissionara, pois era necessário que ele compreendesse o sentido do que lhe fora dito. Percebeu, enfim, que sua superioridade em relação a todos aqueles pretensos sábios consistia no fato de que ele, embora também não fosse sábio, sabia que não o era, enquanto os outros falsamente julgavam sê-lo. O oráculo de Apolo era na verdade uma reprovação a toda a sabedoria humana, pois colocava todos os homens abaixo de um que nenhuma sabedoria tinha. Esses eventos trouxeram, no entanto, conseqüências inesperadas: muitas pessoas, vendo Sócrates demonstrar a tolice alheia, concluíram que ele próprio devia ser um sábio. Jovens ricos e ociosos passaram a segui-lo e a imitá-lo, interrogando e desafiando muitos pretensos sábios e obtendo resultados semelhantes aos seus, advindo daí sua fama de corruptor da juventude. E, a fim de difamá-lo, seus inimigos atribuíram a ele ensinamentos de outros.

Passa então a analisar as acusações de Meleto, que são absurdas e contraditórias. A despeito de sua declarada intenção de proteger os jovens, ele demonstra não ter jamais dedicado algum tempo pensando num meio de fazer bem a eles. Buscando bajular os presentes, Meleto aponta a lei e, por consegunte os juízes, senadores e cidadãos em geral, que a fazem cumprir, como aqueles que tornam os jovens melhores. Mas a conclusão é absurda, pois a educação dos jovens, como qualquer outra tarefa complexa, é arte dominada por poucos, e a maioria dos que se põem a opinar sobre o assunto só causa problemas. Todos sabem disso, como se nota no fato de que os cidadãos ricos pagam grandes somas a certos mestres para que eduquem seus filhos, o que seria desnecessário se qualquer um pudesse se incumbir dessa tarefa. É absurda também a acusação de que Sócrates corrompe propositalmente os jovens que o acompanham. Todo homem deseja viver entre pessoas virtuosas, pois estas fazem o bem aos que estão ao seu redor, e ninguém pode ter interesse em tornar piores as pessoas com quem convive. Portanto, ou Sócrates não corrompe seus discípulos, ou o faz sem intenção. Em nenhum dos casos há crime, e em ambos Meleto está enganado. Enfim, é refutada a acusação de ateísmo, que, além de não ter sido corroborada por testemunhas, contradiz outra acusação feita pelo próprio Meleto: a de que o filósofo aprecia os demônios. Levado pela ânsia de difamar, Meleto fez acusações imprudentes que se excluem mutuamente, já que, sendo os demônios filhos bastardos dos deuses, crer naqueles e não nestes é como crer em mulas sem admitir a existência de cavalos e jumentos.

Sócrates analisa sua situação. Se condenado, não será o primeiro justo a ser vítima do ódio do povo, e tampouco o último. Não se envergonha dessa condição, pois o critério orientador das ações humanas não deve estar no risco que proporcionam, e sim na sua justiça ou injustiça. Exemplificam essa virtude Aquiles e todos os heróis que pereceram em Tróia, os quais deram mais valor ao dever que às suas próprias vidas. São exemplares também os atos do próprio Sócrates quando, na juventude, serviu o exército da cidade e quando, como político, sofreu ameaças de prisão e morte por defender o que considerava justo. Retirou-se da vida política porque quem combate pela justiça não deve se meter nos assuntos públicos, e assim se voltou para a realização dessa tarefa no âmbito de suas relações pessoais. Se não tivesse agido assim certamente já estaria morto, pois não há outro destino para os que realmente lutam pela justiça por meios políticos.

Assim, Sócrates jamais tentou transformar sua missão pedagógica em plano de poder. Disso foi proibido pela voz de um gênio que sempre o acompanhou, impedindo-o de praticar ações que acarretassem seu próprio mal. Essa voz sem dúvida tinha origem divina, tanto quanto a sentença de Delfos, e impeliu o filósofo em sua missão. Por causa desta, e não por amor próprio, ele se defende diante do tribunal, temendo que os atenienses recusem a dádiva divina que opera através dele e que os deuses não lhe enviem um sucessor. Prova adicional da origem divina da mesma encontra-se no fato de que o filósofo nada tinha a ganhar com ela, a tal ponto que, não podendo aceitar dinheiro de seus discípulos, ele rapidamente empobreceu, pois tais afazeres o deixaram sem tempo para cuidar de seus próprios assuntos particulares.

Em vista disso tudo, recuar diante da ameaça de morte seria, isso sim, motivo justo para que o acusassem de desprezar os deuses. Se lhe propusessem absolvição sob a condição de não mais filosofar, ele responderia que é mais importante obedecer aos deuses que aos homens, e continuaria exortando os atenienses à preocupação com a sabedoria e a verdade, em detrimento da riqueza e da fama. Sua missão não pode ser abandonada, pois é o que há de mais valioso dentre tudo o que se faz na cidade. Além disso, temer a morte é atribuir-se uma sabedoria ilusória, como a dos políticos, poetas e artesãos. Pois todos a temem sem de fato saberem se ela é um mal ou o supremo bem. Logo, é errado pautar as ações pelo risco de morte que elas acarretam, e muitos homens tidos por sábios já procederam vergonhosamente nessa situação, como, aliás, se a absolvição diante do tribunal os tornasse imortais. O bom critério reside naquilo que é conforme à virtude. A eventual condenação de Sócrates trará menor dano a ele do que aos próprios atenienses, pois o exílio e a perda da vida ou dos bens causa muito menos mal a um homem do que as injustiças que ele faz aos outros.

Vem então a condenação, que o filósofo recebe sem surpresa. De acordo com a lei, deve sugerir uma pena para si mesmo, em contra-proposta à sentença de morte sugerida por seus acusadores. Começa a segunda parte do seu discurso. Sócrates pergunta que pena merece ele, que sempre desprezou tudo aquilo que tantos julgavam tão importante, empenhando-se em levar aos homens o maior bem possível. Mereceria, na verdade, ser sustentado pelo Estado, honra usualmente concedida aos atletas campeões. Tal proposta não seria arrogante, mas sim a correta aplicação do preceito de não cometer injustiça contra ninguém. Além disso, não seria lógico propor em alternativa à morte, que não se sabe se é boa ou má, uma pena que se sabe ser má, como prisão, multa ou exílio. Porém, não sendo permitido fazer uma proposta justa, Sócrates propõe aquela que lhe parece menos injusta: uma multa que ele possa pagar. Mas como é muito pobre, só pode pagar uma mina de prata. Seus ricos discípulos, no entanto, o convencem a propor uma multa de trinta minas, tomando-os por fiadores.

A assembléia condena o filósofo à morte, e começa a última parte do seu discurso. Ele censura os que o condenaram por darem motivo à difamação da cidade, pois todos a acusarão de ter executado um sábio. E isso era desnecessário, pois eles poderiam ter se livrado dessa culpa com um pouco de paciência, já que ele não iria mesmo viver muito. Morre por recusar-se a se defender de maneira indigna, com discursos falsos que agradam aos juízes, pois é injusto sacrificar pela vida a obediência a valores maiores que ela. Fugir da morte, que agora o acomete, é mais fácil que fugir da maldade que domina seus inimigos. Mas a cada um cabe suportar sua pena. Sócrates vaticina-lhes que virá sobre eles vingança severa da parte de Zeus. Condenaram-no para não terem de prestar contas de suas más ações, mas não serão bem sucedidos nesse intento: serão muitos os que os reprovarão.

Volta-se então para os verdadeiros juízes, os que votaram segundo a justiça, e conta-lhes que o resultado daquele julgamento resultaria num bem para ele, pois seu gênio silenciara ao longo de todo aquele dia. Tal conclusão é plausível, pois a morte só pode ser uma de duas coisas: a cessação da existência ou a migração da alma para outro lugar. O primeiro caso é um bem, pois a inconsciência é preferível às tribulações desta vida, e o segundo o é igualmente, ainda mais se for verdade que no Hades encontram-se todos os mortos. Livrando-se dos falsos juízes de Atenas, o filósofo desfrutará a companhia dos verdadeiros: deuses, heróis, homens justos do passado e todos os que, como ele próprio, foram injustamente sentenciados à morte. Tais mortos são mais felizes que os vivos. Os juízes não devem temer a morte, pois o mal jamais atinge os homens bons. Sua própria morte é, naquelas circunstâncias, um bem, pois o liberta do mundo; aqueles que o condenaram, embora cressem estar causando-lhe um mal, eram na verdade instrumentos postos a serviço do seu bem. Sócrates pede que exortem os filhos dele à justiça e à verdade tão veementemente quanto ele próprio exortou a todos. E despede-se com as seguintes palavras: "É hora de irmos: eu para a morte, vós para as vossas vidas. Quem terá a melhor sorte? Só os deuses sabem."