6 de outubro de 2008

Da cabeça aos joelhos

"Você não está aqui para examinar,
se instruir, satisfazer sua curiosidade
ou redigir um relato. Você está aqui para se ajoelhar
onde a oração tem sido eficaz."
(T. S. Eliot)

Como já aconteceu várias outras vezes neste blog, o texto de hoje deverá ser uma mistura de considerações teóricas e relatos de experiências pessoais unidas entre si por um tema comum. No que diz respeito a esse tema, a idéia de sintetizar os dois elementos num só texto ocorreu muito recentemente, durante uma conversa que tive com minha amiga Norma, embora as experiências descritas, bem como as conclusões que delas extraí, contem já com vários anos de existência. Devo avisar desde logo que o assunto deste post refere-se a debates internos do protestantismo, e particularmente do calvinismo, e por isso a questão pode ser de pouco interesse para membros de outros grupos cristãos; e não vejo que interesse ele possa ter para pessoas que não são cristãs de modo algum. De qualquer forma, é claro que isso é só uma advertência para que leitores não interessados possam fazer melhor proveito do seu tempo; ninguém está proibido de ler nada.

O assunto relaciona-se aos meios e às finalidades da apologética, que pode ser entendida como a defesa racional de uma doutrina - particularmente uma doutrina religiosa e, mais particularmente ainda, a cristã (o dicionário Houaiss a define como "defesa argumentativa de que a fé pode ser comprovada pela razão"). O objetivo da coisa toda é, naturalmente, levar o opositor da doutrina em questão a aceitar sua validade, o que deve resultar na conversão do indivíduo, no caso de ser essa doutrina o cristianismo. Digo que o convencimento deve levar à conversão porque obviamente uma coisa não se segue necessariamente da outra: a primeira etapa é intelectual, e a segunda é espiritual. (Algumas pessoas convencem-se racionalmente sem, contudo, se converterem, e outras convertem-se sem que seu lado racional desempenhe qualquer papel preponderante.)

Embora eu não saiba dizer exatamente quando foi que se deu a minha conversão, posso dizer com certeza que a consciência da presença de Deus em mim não aconteceu enquanto não enfrentei certas questões intelectuais que me afligiam; e isso, não hesito em afirmar, está bem longe de ser coincidência. Os detalhes sobre aquela etapa da minha vida não entram nas considerações deste texto, mas esse fato exemplifica a importância que a apologética teve na minha vida - importância que, aliás, não parou por aí. Mas o que convém ressaltar é que, tendo eu um temperamento bastante racional, e tendo sofrido (e, pela graça de Deus, vencido) algumas tentações intelectuais que atingem muitas pessoas, jamais pude deixar de perseguir com profundo interesse a compreensão dos fundamentos da fé à qual aderi (ou que aderiu a mim) e de suas relações com os diversos aspectos da realidade, e tampouco de exultar a cada nova percepção ou vislumbre da harmonia subjacente a essas relações.

Na medida em que muitas coisas iam ficando claras na minha própria mente, seguiu-se um impulso natural de comunicar essas descobertas às pessoas que precisavam ouvi-las - as que enfrentavam dificuldades semelhantes às minhas, ou ainda piores. Foi essa uma das principais motivações que me levaram ao envolvimento em debates no orkut, primeiro numa comunidade sobre o cristianismo (da qual faziam parte cristãos de todos os tipos, pessoas abertamente anticristãs e pessoas que pensavam ser cristãs sem sê-lo) e depois numa outra voltada ao embate entre, de um lado, religiosos de qualquer tipo e, do outro, ateus, agnósticos e seus parentes. Tais experiências foram muito salutares em diversos aspectos, e não me arrependo de ter sido, durante algum tempo, um notável caçador de confusões virtuais, embora não me reste muita paciência para esse tipo de coisa hoje em dia. Mas mencionarei aqui apenas um desses aspectos, que trouxe o benefício de me curar para sempre de uma certa ingenuidade à qual eu estava sujeito.

Eu supunha que o problema fundamental que separava as pessoas da verdade era de natureza intelectual, e que residia na ignorância. (Eu jamais teria me expressado ou mesmo pensado nesses termos, mas era uma crença solidamente arraigada num nível mais profundo que o das convicções conscientes.) Assim, eu esperava que instruir as pessoas era tudo o que se requeria para resolver o problema, e que elas, tendo chegado a perceber a inconsistência de suas posições atuais, alegremente substituiriam-nas por outras de qualidade superior. Hoje considero difícil explicar como pude aceitar essa suposição - a ponto de me surpreender quando as coisas sistematicamente começaram a acontecer de outra forma -, ainda mais porque eu tinha consciência do fato de que não haviam ocorrido assim no meu próprio caso. Talvez eu tenha projetado indevidamente sobre a fase inicial do processo uma alegria que só me acometeu numa fase posterior. Seja como for, o fato é que eu não contava com as reações que recebi. Esperava uma de duas coisas: ou que as pessoas se convencessem de que estavam erradas, ou que apresentassem argumentos melhores que os meus. Mas, embora ocasionalmente uma ou outra dessas alternativas se concretizasse, na esmagadora maioria das vezes o que encontrei foram subterfúgios diversos, desonestidade pura e simples; uma recusa, enfim, de encarar a verdade (ou pelo menos o que a situação impunha como tal).

Aprendi, assim, a evitar uma posição errônea, e a dar ouvidos aos apologistas que advertem constantemente contra o perigo de reduzir a concepção cristã sobre a natureza humana aos seus elementos meramente racionais. Essa é uma crítica que certos teólogos pressuposicionalistas constantemente fazem a uma coisa um tanto vaga denominada "apologética tradicional". É claro que não vou me meter a discutir aqui as inovações do pressuposicionalismo, inclusive porque esse movimento parece contar também com um considerável grau de divergência interna. Não convém, portanto, polarizar a questão dessa forma, e muito menos abordar outros pontos pertinentes a essa complexa questão. Mas cabe observar que parece vir justamente de certos pressuposicionalistas uma tendência diametralmente oposta, a de atribuir pouco ou nenhum valor às motivações racionais do incrédulo. No fundo, dizem eles, todos esses argumentos levantados contra a fé cristã são apenas pretextos, e o incrédulo sabe perfeitamente que está errado, embora tente o tempo todo convencer a si próprio do contrário. Eis a razão pela qual aceitar um embate argumentativo destinado a demonstrar seus erros não resolverá o problema, ainda que o resultado seja racionalmente impecável. É necessário driblar todos esses subterfúgios e apelar diretamente à sua vontade rebelde, que é a fonte verdadeira de todo o mal.

Esse ponto de vista tem o mérito inegável de abrir espaço à consideração dos elementos que militam nas profundezas da alma humana, evitando assim o erro que eu mesmo cometi. Apesar disso, creio tratar-se de um excesso na direção oposta, o qual tende a ser prejudicial na prática. Digo isso com segurança baseando-me não apenas na memória do apelo tentador que a descrença exerceu sobre mim mesmo ou da forma como reagi a isso, mas também em muitos relatos pessoais de homens que vagaram por regiões muito mais distantes de Deus do que aquelas em que eu mesmo estive. Quando penso nas trajetórias espirituais de Santo Agostinho ou C. S. Lewis, por exemplo, não posso evitar que passe pela minha mente a suposição de que um cristão guiado por princípios apologéticos como esses jamais conseguiria obter algum sucesso, ao menos com certa categoria de pessoas. Tais princípios constituem uma péssima compreensão da mente do incrédulo, e dão a impressão de terem sido propostos por indivíduos teóricos, no pior sentido do termo: pessoas que jamais sofreram pessoalmente a incredulidade e que não são capazes de reproduzir dentro de si mesmas as experiências interiores dos que passaram por ela.

A idéia de que os incrédulos têm conhecimento das verdades essenciais da fé cristã é, aliás, bastante problemática por si mesma. Além de ser desmentida pelos depoimentos de muitos que se converteram em idade madura, ela não permite estabelecer um limite entre o que é e o que não é conhecido. Por exemplo: todos os incrédulos sabem intuitivamente que Deus existe? Isso até poderia, talvez, ser defendido. Mas eles sabem intuitivamente também que Deus é um ser em três pessoas? Que o Verbo encarnado foi crucificado sob Pôncio Pilatos e ressuscitou no terceiro dia? E, se for assim - falando agora de uma perspectiva especificamente calvinista e presbiteriana -, por que não ir um pouco além e dizer que os sinergistas sabem que estão errados quanto à predestinação, ou que os batistas sabem que deveriam batizar suas crianças? Será que tudo isso faz parte da intuição humana universal? Se fosse o caso, poderíamos reconstruir todo o nosso sistema teológico apenas examinando atentamente nossas intuições e prescindindo inteiramente das Escrituras. Mas, além de essa conclusão ser o oposto exato do que pretendem os próprios defensores da idéia em questão, o quadro todo possui a falha evidente de atribuir à intuição humana universal uma porção de conteúdos que, embora obviamente se refiram a assuntos espirituais, são conteúdos próprios do intelecto. Pois é esse fato que torna impossível estabelecer uma linha demarcatória nítida entre o que incrédulo sabe e o que ele não sabe. Todas essas questões indicam que alguma coisa importante foi deixada de fora desse esquema também, assim como vimos que aconteceu no primeiro caso.

Mas qual é, então, o papel real da razão? E qual deve ser o papel da argumentação racional na apologética? Creio que ela é muito necessária, não porque o problema básico do homem seja de natureza intelectual, mas porque a razão do homem decaído funciona freqüentemente como um anestésico, uma barreira atrás da qual ele confortavelmente se esconde e permanece imune à necessidade de encarar certos fatos sobre si mesmo. Isso não significa que o homem esteja nessa situação de modo consciente e deliberado. Mas significa, de qualquer forma, que essa camada de pretextos precisa ser removida; o homem deve ser deixado a sós com Deus, com a Verdade, nu, desprotegido, sem qualquer subterfúgio a que possa recorrer. Enquanto persistem as objeções racionais à fé, o incrédulo pode enganar-se pensando que isso é tudo. É apenas quando seus argumentos começam a ruir estrondosamente que ele pode se dar conta de que eles não eram, na verdade, o real motivo, e então render-se à Verdade ou permanecer firmemente recolhido em sua rebeldia; dobrar seus joelhos nesse mesmo instante ou dobrá-los apenas, e involuntariamente, no último dia.

2 comentários:

Norma disse...

Gostei muito do post!

Acho que todo cristão acaba passando, de um jeito ou de outro, pelas descobertas descritas no texto. Primeiro, você compreende que pelo lado humano a conversão não se dá principalmente por convencimento intelectual, mas pela entrega de si. Depois, compreende que o intelecto tem um papel fundamental na apreensão dos conteúdos para a fé, logo, no crescimento espiritual. Pelo menos, foi assim que aconteceu comigo. Há quem não aprofunde muito o segundo ponto (infelizmente), mas todo novo convertido acaba percebendo que o que aconteceu consigo não foi meramente a adesão a uma idéia.

Abração pra você!

Anônimo disse...

Olá André!


São dois terrenos diferentes: um é o da aceitação da razoabilidade da doutrina cristã, outra o lado espiritual que leva alguém a professar essa mesma doutrina. Alguém pode ter a segunda sem ter a primeira e vice-versa, pode se convencer da razoabilidade do cristianismo sem no entando ser cristão.

Mas mesmo que não houvesse qualquer motivo indentificável para a apologética -- e há, como os que você identificou -- ela, ainda assim, seria uma forma de cumprir uma ordem do Cristo.


Abraços
André