Várias pessoas já me perguntaram o que penso do trabalho de William Lane Craig e de seu método apologético. A resenha abaixo responde em parte a essa pergunta. Escrevi-a quando ainda residia em Fortaleza, e ela foi publicada na revista Fides Reformata no segundo semestre de 2012 (volume XVII, número 2, p. 129-132). Pesam sobre ela algumas limitações, decorrentes sobretudo da limitação de espaço, uma exigência da revista que trouxe, por outro lado, a vantagem de me obrigar a colocar de lado minha costumeira prolixidade e ir direto ao que interessa.
Essa resenha não existiria sem o meu amigo Yago Martins. Foi ele quem me convenceu de que eu devia ler o livro, e para isso me emprestou seu exemplar. Meses mais tarde, ele me emprestou o livro de novo, para que eu pudesse escrever a resenha. Fica aqui registrada, portanto, minha dupla gratidão.
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CRAIG,
William Lane. Em guarda: defenda a
fé cristã com razão e precisão. São Paulo: Vida Nova, 2011. 317 pp.
William Lane Craig é um dos mais famosos
defensores da fé cristã vivos. Seus dois doutorados – em filosofia e teologia,
sob a orientação de John Hick e Wolfhart Pannenberg, respectivamente – foram
voltados para a apologética, sua paixão e vocação. Nessa obra, Craig fala ao
cristão que busca se comunicar com incrédulos ou fortalecer a própria fé contra
as tentações do intelecto. O tom é simples e didático, podendo ser digerido pelo
leitor atento mesmo quando trata dos temas mais difíceis.
Os capítulos iniciais são
introdutórios, explicando a natureza (cap. 1) e importância (cap. 2) da
apologética. Os seguintes trazem argumentos em favor da existência de Deus. Dois
são cosmológicos: o de Leibniz (cap. 3) e o kalam
(cap. 4), baseado nas obras de Abû Al-Ghazâlî e Stuart Hackett. Seguem-se o
argumento do ajuste fino das constantes físicas fundamentais à existência de
vida (cap. 5) e o argumento moral (cap. 6). O sétimo lida com a objeção posta
pelo sofrimento. Os capítulos finais tratam de Jesus: dois defendem a
historicidade de sua declaração de divindade (cap. 8) e de sua ressurreição
corpórea (cap. 9), e o último defende Cristo como único caminho para Deus (cap.
10).
A descrição da estrutura do livro
mostra que Craig segue o método da “apologética clássica”, que busca
estabelecer primeiro o teísmo em geral e só depois o cristianismo[1]. Em
minha opinião, os argumentos mais sólidos são levantados nos capítulos 3 a 5. O
argumento moral de Craig é menos persuasivo que o de C. S. Lewis[2]. O
capítulo 8 é o menos didático, podendo soar algo obscuro ao leitor pouco
familiarizado com debates sobre a historicidade dos evangelhos. E o capítulo 10
não chega a arranhar as formas mais sofisticadas de pluralismo.
O método de Craig consiste em buscar
premissas aceitáveis igualmente ao cristão e ao incrédulo e extrair daí
conclusões favoráveis ao cristianismo, de modo estritamente silogístico:
“argumentar é apenas apresentar uma série de enunciados ou premissas que levem
a uma conclusão. E isso é tudo” (p. 14). Essa via leva naturalmente à busca de
atalhos que minimizem a quantidade dessas premissas e simplifiquem o trajeto
até a conclusão. E tal minimalismo leva à necessidade de não discutir o que não
é essencial à linha argumentativa escolhida; assim, o apologeta é levado a
fazer concessões estratégicas à cosmovisão do incrédulo.
Os resultados de tais concessões
formam um padrão notável em todo o livro. Ao defender que Jesus declarou ser
Deus, Craig admite a teoria liberal-secular sobre a formação dos evangelhos e
constrói seu argumento usando apenas as perícopes “unanimemente” tidas como
autênticas. Ao fortalecer o kalam, ele
endossa a autoridade da ciência moderna como palavra final sobre as origens do
mundo físico. E, ao defender a justiça da condenação ao inferno, concede que nenhum
pecado é grave o bastante para requerer uma punição perpétua, que ele justifica
por outros meios. Assim, de concessão em concessão, Craig desperdiça a chance
de expor a cosmovisão cristã de modo consistente, profundo e íntegro.
Não há problema em adotar
provisoriamente os pressupostos do incrédulo para fins de discussão, em
especial para revelar a inconsistência interna de sua cosmovisão. Francis
Schaeffer fazia isso com muita propriedade[3]. Craig
revela certa influência schaefferiana, mas restringe o alcance da apologética
ao fazer dessa abordagem o método por excelência. Dentre as manifestações
deletérias dessa restrição, nenhuma é tão severa quanto a desconsideração do
aspecto espiritual que há em toda rejeição intelectual do Evangelho. Afinal, a escolha
de um punhado de premissas comuns como ponto de partida só faz sentido se não
houver nada de errado nelas, ou por trás delas. Mas por trás de um cérebro
incrédulo há sempre um coração rebelde contra o Criador e apegado a uma ilusão
de inocência. Craig não ignora isso, mas sua percepção do fato não tem grande
efeito sobre seu método, que trata o problema como primariamente cognitivo ou, quando
muito, emocional. Sua apologética se propõe a desfazer mal-entendidos, e não a
remover pretextos, denunciar ídolos e convocar rebeldes ao arrependimento.
Isso se manifesta com especial
clareza no capítulo sobre o problema do sofrimento. Craig levanta toda sorte de
explicações: Deus não pode violar a liberdade humana; um mundo sem sofrimento talvez
não fosse melhor; o bem disponível é incomparavelmente superior; Deus se
importa e sofre conosco. Mas não diz a verdade que leva diretamente ao cerne do
Evangelho: o sofrimento brota da depravação do coração rebelde contra Deus[4]. O
incrédulo, nesse capítulo, é apenas alguém que tem direito a explicações pelo
sofrimento que lhe impuseram. E Craig age como bom advogado, esforçando-se por
mostrar que seu cliente foi posto no banco dos réus por engano, não merecendo
estar ali porque fez o melhor que pôde para evitar nosso sofrimento. Ele não dá
sinais de notar que há algo muito perverso na pretensão de julgar a correção
moral do decreto divino. Como é dito no fim, “o verdadeiro problema” do
sofrimento é apenas de ordem emocional (p. 189).
Depreende-se daí que a premissa basilar
do método de Craig é a boa fé do incrédulo, em oposição à doutrina bíblica e
reformada da depravação total, repudiada por ele juntamente com a absoluta
soberania de Deus. A apologética de Craig é criticável em muitos pontos, mas não
é incoerente com sua teologia, arminiana com dois ou três passos na direção do
teísmo aberto. O problema da apologética de Craig é, pois, teológico, já que
sua teologia gera uma antropologia que, eivada de concessões ao humanismo,
minimiza os efeitos da queda.
O que impede Craig de confrontar os
pressupostos do incrédulo é o fato de ele próprio compartilhar deles em certa
medida. Decorre daí a relativa superficialidade de sua argumentação e de suas
metas. Se a função da apologética fosse mostrar a veracidade do cristianismo ao
incrédulo segundo os critérios dele próprio, jamais seria possível desafiar esses
mesmos critérios e expor a cosmovisão cristã de modo contundente. O apologeta se
perderia então no esforço colossal de descer ao nível do interlocutor,
reduzindo o cristianismo até que coubesse nos padrões pré-definidos pela mente não-regenerada.
Levado às últimas consequências, tal método desfaria o próprio escândalo da
cruz para provar que nossa fé é muito razoável segundo critérios “neutros” e
“objetivos”. Mas então a apologética já teria se tornado muito mais islâmica
que cristã. Qualquer método que apela a alguma faculdade humana (razão, inteligência,
intuição, sentimento etc.) ou disciplina científica (física, biologia,
história, ontologia etc.) como árbitro soberano está apenas se recusando a
remover um ídolo.
A despeito dessas severas
limitações, o livro possui várias qualidades notáveis que tornam sua leitura
proveitosa. É justo dizer, parafraseando Cornelius Van Til, que Craig é muito mais
virtuoso que sua teologia, e devemos aprender com ele a não ser menos virtuosos
que a nossa[5].
Transparece na obra seu amor por Cristo e pelo Reino, sua humilde alegria em
tomar parte no que é, a despeito da sofisticação, um ministério de pregação do
Evangelho e auxílio aos santos. Craig não ignora a importância do amor e da
mansidão na apologética, e é notório que o livro foi escrito com profundo zelo professoral
e compaixão, pelos leitores cristãos e pelos incrédulos que, através deles,
ouvirão a mensagem da salvação.
É louvável também a presença da
pessoalidade na obra. Craig sabe que a pessoa toda deve se envolver no ato da
apologética. Entre as partes mais interessantes estão o relato de sua conversão
e dois interlúdios intitulados “A jornada de fé de um filósofo”, que narram seu
encontro com a apologética e o modo pelo qual Deus lhe abriu caminho para os
estudos e a carreira de defesa da fé. Fica patente a ação soberana da
Providência, que levantou e tem usado esse servo para manifestar a glória de
Cristo.
As evidências discutidas no livro
podem e devem ser aproveitadas como ferramentas apologéticas úteis em
determinados contextos. As verdades ali expostas podem ser absorvidas por um
programa apologético mais bíblico, abrindo espaço para um confronto intelectual
e moral que o Espírito pode usar para convencer o incrédulo de seu pecado. E o
valor dado por Craig ao rigor, à clareza e à leveza da argumentação constituem
lições valiosas transmitidas ao leitor, menos pela teoria que pelo exemplo.
Em
guarda pode ser instrutivo para cristãos que vivem dúvidas intelectuais
honestas ou não têm a necessária maturidade para anunciar a mensagem da cruz
com rigor intelectual e compaixão. O leitor, seja jovem, pastor, líder ou
educador, pode ser levado por essa leitura a um contato salutar com novos
conhecimentos e à expansão de seus interesses.
As limitações apontadas aqui não
devem, pois, ser tomadas como sinais da inutilidade do livro ou de propostas
apologéticas similares. Ao contrário, o leitor que tiver consciência dessas
limitações poderá aproveitar muito melhor seus vários pontos positivos. Não
devemos desconsiderar que, a despeito delas, Craig tem desempenhado um
ministério bem-sucedido na conversão de incrédulos e no aprimoramento
intelectual dos santos, para a glória de Deus. Admitir isso não é fazer concessão
ao pragmatismo ou minimizar a importância dos erros expostos, mas sim apontar um
motivo de encorajamento para todos nós: tal fato demonstra que, na manifestação
do poder salvador e santificador, Deus não se deixa limitar pelas limitações de
seus filhos.
[1] GEISLER, Norman, Enciclopédia de apologética: respostas aos
críticos da fé cristã. São Paulo: Vida, 2002, p. 61-64 e 182-184.
[2] LEWIS, Clive Staples, Cristianismo puro e simples. 5ª ed. São
Paulo: ABU, 1997, p. 1-18.
[3] SCHAEFFER, Francis August, O Deus que intervém. São Paulo: Cultura
Cristã, 2002.
[4]
Na verdade, em meio às 32
páginas do capítulo há meia página sobre nosso “estado de rebelião contra Deus”
(p. 184), mas esse ponto é mencionado de passagem apenas para descrever a
explicação cristã para o sofrimento, sem o intuito de desafiar a rebeldia de
quem quer que seja.
[5] “Muitos arminianos são muito
mais virtuosos que suas teorias. [...] E aqui é necessário confessar que [nós,
reformados], muito frequentemente, somos menos virtuosos do que nossa posição.”
(VAN TIL, Cornelius, Apologética cristã.
São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 142-143). Cf. a resenha de José Carlos
Piacente Júnior em Fides Reformata,
v. XVII, n. 1, 2012, p. 105-109.
4 comentários:
Olá André.
Acompanho seu blog e da Norma e só lamento que vocês têm nos deixado um pouco órfãos destas reflexões belíssimas que vocês fazem.
Admiro muito o trabalho do W.L. Craig, mas sua resenha do livro foi muitíssimo interessante e inteligente. Tive novas perspectivas sobre esse livro.
Parabéns.
Grande abraço e Deus lhes abençoe.
Caro André,
se aproxima mais um feriado de corpus christi e, como em todos eles, não posso deixar de me lembrar de que foi numa época dessas, já há 3 ou 4 anos, que tomei contato com os escritos, primeiro da Norma, depois os seus e daí com toda a teologia reformada, o que foi utilizado pelo Senhor para me trazer de volta ao aprisco em um momento de grande confusão.
Sem qualquer ranço de idolatria de homens e mulheres, glorifico ao Senhor por esse encontro e pela vida dos irmãos.
Li essa postagem que me foi muito esclarecedora, já que, tendo lido trechos de "Filosofia e Cosmovisão Cristã" e de "Não tenho fé suficiente para ser ateu", este último de outros autores, percebi que havia alguma coisa "esquisita" em meio a toda aquela precisão de raciocínio e argumentação, mas não sabia exatamente o que era.
O seu texto, sem desmerecer trabalhos como aqueles, me mostrou o que era.
Um grande abraço para você e para a Norma.
Luciano Martins Pomponet (a contradição com o 'Anônimo' inicial é que não achei outro jeito de postar o comentário)
Na verdade, Craig não é arminiano, ele é Molinista
Nicholas
Olá, Nicholas!
Veja que eu não disse que Craig é arminiano. Eu disse que a teologia dele é "arminiana com dois ou três passos na direção do teísmo aberto".
Abraço!
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