Hoje vou retomar um assunto sobre o qual discorri neste blog há quase três anos. Em agosto e setembro de 2011 publiquei uma série de quatro postagens (um, dois, três e quatro) intitulada Sutilezas causais. O objetivo era comentar o segundo capítulo do livro A soberania banida: redenção para a cultura pós-moderna (São Paulo, Cultura Cristã, 2008), de R. K. McGregor Wright, intitulado "A incoerência da teoria do livre-arbítrio". A apreciação foi predominantemente crítica e se concentrou, não na teologia do autor, que subscrevo integralmente, e sim no que me pareceu uma falta de rigor filosófico que, por sua vez, gerou uma adesão mal refletida ao determinismo, entendido como única forma de fazer justiça à absoluta soberania de Deus. Meu objetivo era escrever essa crítica em apenas duas postagens, mas mudei meus planos quando o Dr. Alan Myatt fez alguns comentários à primeira delas; a fim de prestar alguns esclarecimentos, adiei a segunda parte, que se tornou a quarta, e escrevi dois posts intermediários.
Antes de explicar por que estou recapitulando tudo isso, devo dizer que há algumas coisas no texto que eu mudaria se fosse escrevê-lo hoje. Não me perdoo, por exemplo, por ter me referido a Alvin Plantinga como um "filósofo reformado" e pelo modo um tanto vago com que me referi à sua relação com o pensamento pressuposicional. Além disso, em vários pontos, o tom do texto já não me agrada muito. Ao republicar em 2005 seu livreto The Amsterdam Philosophy: a Preliminary Critique, escrito em 1972, John Frame lamentou que o tom de suas críticas a Herman Dooyeweerd e outros holandeses da mesma estirpe havia sido "estridente demais". Essas palavras descrevem bem minha impressão sobre o que escrevi nas partes um e quatro da série. Apesar disso, não mudei de posição quanto ao que defendi naquelas postagens.
O que pretendo fazer hoje são alguns desenvolvimentos e complementos ao que havia dito em 2011. Isso pode ser feito em duas direções diferentes, uma das quais eu terei de deixar para outra ocasião: contestei a associação entre soberania de Deus e determinismo, mas não me aprofundei na explicação dos problemas envolvidos nisso, e tampouco expus o que julgo a solução para a dificuldade. Tanto o próprio Dr. Myatt quanto outros leitores, em especial Osmar Neves e Roberto Vargas, me cobraram isso, e com razão. Mas eu não tinha, na época, clareza suficiente para explicar bem as intuições que tinha na cabeça. O Roberto, em especial, vinha cobrando isso há mais tempo, e com especial interesse, tendo chegado a dizer ao Dr. Myatt na caixa de comentários: "De resto, também gostaria de algo mais propositivo do André, embora já saiba que não era o objetivo do texto. Quem sabe estas questões nos premiem com algo neste sentido." Infelizmente, sua expectativa não se concretizou na época. A boa notícia é que já comecei a escrever sobre isso, e devo publicar o resultado nos próximos tempos. A má notícia é que será uma dissertação longa, de modo que prefiro abordá-la à parte e reservar a presente discussão para o outro desenvolvimento, que é mais curto e ligado mais diretamente ao livro de Wright.
Com base em sua amizade pessoal de várias décadas com Wright, o Dr. Myatt me garantiu que ele cria na existência de "mistérios na Bíblia que a mente humana não consegue entender", de modo que minha constatação de certo grau de racionalismo em sua cosmovisão só poderia se dever, de acordo com o Dr. Myatt, a um erro interpretativo meu. Ele diz ainda que Wright era um vantiliano e que sua visão do determinismo está de acordo com a de Cornelius Van Til, pela qual "o homem que defende a autonomia da vontade está sempre alternando entre o acaso, de um lado, e o determinismo impessoal, do outro lado, dentro de uma contradição inevitável" (editei a frase para torná-la mais clara, dada a familiaridade incompleta do Dr. Myatt com nosso idioma). Quanto ao primeiro ponto, limitei-me na época a comentar o seguinte, dirigindo-me ao Dr. Myatt:
"Fico feliz em saber que Wright e o sr. mesmo creem em mistérios. Contudo, não há nenhuma evidência disso em A soberania banida: há ali, ao contrário, um constante tom de condenação aos que creem nessas coisas. Ele chega até a dizer que a apologética cristã é enfraquecida por admissões desse tipo. Então, ou Wright se expressou mal nisso também, ou há alguma outra coisa que não estou captando, e que o sr. poderá explicar se quiser. Só posso julgar o livro pelo que nele está escrito, e o livro é racionalista."
Embora o Dr. Myatt não tenha feito nenhum outro esforço de me convencer de sua tese, não deixei de anotar mentalmente a tarefa de reler o livro para verificar se minha interpretação havia de fato sido a melhor possível. Fiz essa releitura há alguns meses, embora não só por esse motivo, e estou aqui para apresentar os resultados. Seguem algumas de suas afirmações.
Na página 32, sobre os rumos históricos da teologia arminiana influenciada pelo iluminismo: "Um desenvolvimento interno do arminianismo original deve ser observado aqui. Os teólogos arminianos logo perceberam que o livre-arbítrio era não apenas incompatível com a onipotência da soberania divina como também com a onisciência de Deus. [...] Assim, eles seguiram os socinianos e rejeitaram a onisciência de Deus. [...] Os arminianos que eram menos preocupados com consistência simplesmente apelaram para um 'mistério' para sustentar a ideia do livre-arbítrio e a onisciência de Deus vivendo em tensão."
Na página 55, criticando William Shedd (critiquei essa crítica na quarta parte da série em 2011): "Shedd é um dos calvinistas típicos que sustentam uma boa visão da soberania de Deus, mas não querem abandonar algo do livre-arbítrio que torna, em última instância, o pensamento deles indistinguível do indeterminismo arminiano. Eles podem tentar encobrir suas ideias com palavras como mistério, paradoxo ou antinomia, mas, no final das contas, uma contradição permanece."
Na página 74, aprovando a seguinte afirmação de Leslie Stevenson sobre a relação entre a soberania e a liberdade humana: "a coisa padrão a dizer, naturalmente, é que esses são 'mistérios' em vez de 'contradições', que a razão humana não pode esperar ser capaz de entender os mistérios infinitos de Deus, que nós somente cremos no que Deus tem revelado de si mesmo a nós. Mas o problema com esse tipo de afirmação é que ela pode atrair somente aqueles já dispostos a crer, [e] pode não fazer nada para responder às genuínas dificuldades conceituais do cético."
Nas páginas 114 e 115, ao criticar o "sincretismo da graça com a capacidade humana" dos arminianos: "A façanha original do pensamento sincretista é uma teologia mista que incorpora posições incompatíveis. Pressuposições contraditórias são sustentadas arbitrariamente juntas sob a alegação de equilíbrio. O incrédulo reconhece imediatamente essa atitude como autocontraditória. [...] Então, para proteger essas contradições internas de um exame mais minucioso, fazem regularmente apelos para termos como mistério, paradoxo ou antinomia. Porém, há um preço a pagar por esse passo: se nós, crentes, podemos nos contradizer, assim também pode o incrédulo, e todo o empreendimento apologético é negado prontamente. Nenhuma defesa posterior racional de qualquer coisa é possível, seja do arminianismo ou do próprio evangelho."
Antes de explicar por que estou recapitulando tudo isso, devo dizer que há algumas coisas no texto que eu mudaria se fosse escrevê-lo hoje. Não me perdoo, por exemplo, por ter me referido a Alvin Plantinga como um "filósofo reformado" e pelo modo um tanto vago com que me referi à sua relação com o pensamento pressuposicional. Além disso, em vários pontos, o tom do texto já não me agrada muito. Ao republicar em 2005 seu livreto The Amsterdam Philosophy: a Preliminary Critique, escrito em 1972, John Frame lamentou que o tom de suas críticas a Herman Dooyeweerd e outros holandeses da mesma estirpe havia sido "estridente demais". Essas palavras descrevem bem minha impressão sobre o que escrevi nas partes um e quatro da série. Apesar disso, não mudei de posição quanto ao que defendi naquelas postagens.
O que pretendo fazer hoje são alguns desenvolvimentos e complementos ao que havia dito em 2011. Isso pode ser feito em duas direções diferentes, uma das quais eu terei de deixar para outra ocasião: contestei a associação entre soberania de Deus e determinismo, mas não me aprofundei na explicação dos problemas envolvidos nisso, e tampouco expus o que julgo a solução para a dificuldade. Tanto o próprio Dr. Myatt quanto outros leitores, em especial Osmar Neves e Roberto Vargas, me cobraram isso, e com razão. Mas eu não tinha, na época, clareza suficiente para explicar bem as intuições que tinha na cabeça. O Roberto, em especial, vinha cobrando isso há mais tempo, e com especial interesse, tendo chegado a dizer ao Dr. Myatt na caixa de comentários: "De resto, também gostaria de algo mais propositivo do André, embora já saiba que não era o objetivo do texto. Quem sabe estas questões nos premiem com algo neste sentido." Infelizmente, sua expectativa não se concretizou na época. A boa notícia é que já comecei a escrever sobre isso, e devo publicar o resultado nos próximos tempos. A má notícia é que será uma dissertação longa, de modo que prefiro abordá-la à parte e reservar a presente discussão para o outro desenvolvimento, que é mais curto e ligado mais diretamente ao livro de Wright.
Com base em sua amizade pessoal de várias décadas com Wright, o Dr. Myatt me garantiu que ele cria na existência de "mistérios na Bíblia que a mente humana não consegue entender", de modo que minha constatação de certo grau de racionalismo em sua cosmovisão só poderia se dever, de acordo com o Dr. Myatt, a um erro interpretativo meu. Ele diz ainda que Wright era um vantiliano e que sua visão do determinismo está de acordo com a de Cornelius Van Til, pela qual "o homem que defende a autonomia da vontade está sempre alternando entre o acaso, de um lado, e o determinismo impessoal, do outro lado, dentro de uma contradição inevitável" (editei a frase para torná-la mais clara, dada a familiaridade incompleta do Dr. Myatt com nosso idioma). Quanto ao primeiro ponto, limitei-me na época a comentar o seguinte, dirigindo-me ao Dr. Myatt:
"Fico feliz em saber que Wright e o sr. mesmo creem em mistérios. Contudo, não há nenhuma evidência disso em A soberania banida: há ali, ao contrário, um constante tom de condenação aos que creem nessas coisas. Ele chega até a dizer que a apologética cristã é enfraquecida por admissões desse tipo. Então, ou Wright se expressou mal nisso também, ou há alguma outra coisa que não estou captando, e que o sr. poderá explicar se quiser. Só posso julgar o livro pelo que nele está escrito, e o livro é racionalista."
Embora o Dr. Myatt não tenha feito nenhum outro esforço de me convencer de sua tese, não deixei de anotar mentalmente a tarefa de reler o livro para verificar se minha interpretação havia de fato sido a melhor possível. Fiz essa releitura há alguns meses, embora não só por esse motivo, e estou aqui para apresentar os resultados. Seguem algumas de suas afirmações.
Na página 32, sobre os rumos históricos da teologia arminiana influenciada pelo iluminismo: "Um desenvolvimento interno do arminianismo original deve ser observado aqui. Os teólogos arminianos logo perceberam que o livre-arbítrio era não apenas incompatível com a onipotência da soberania divina como também com a onisciência de Deus. [...] Assim, eles seguiram os socinianos e rejeitaram a onisciência de Deus. [...] Os arminianos que eram menos preocupados com consistência simplesmente apelaram para um 'mistério' para sustentar a ideia do livre-arbítrio e a onisciência de Deus vivendo em tensão."
Na página 55, criticando William Shedd (critiquei essa crítica na quarta parte da série em 2011): "Shedd é um dos calvinistas típicos que sustentam uma boa visão da soberania de Deus, mas não querem abandonar algo do livre-arbítrio que torna, em última instância, o pensamento deles indistinguível do indeterminismo arminiano. Eles podem tentar encobrir suas ideias com palavras como mistério, paradoxo ou antinomia, mas, no final das contas, uma contradição permanece."
Na página 74, aprovando a seguinte afirmação de Leslie Stevenson sobre a relação entre a soberania e a liberdade humana: "a coisa padrão a dizer, naturalmente, é que esses são 'mistérios' em vez de 'contradições', que a razão humana não pode esperar ser capaz de entender os mistérios infinitos de Deus, que nós somente cremos no que Deus tem revelado de si mesmo a nós. Mas o problema com esse tipo de afirmação é que ela pode atrair somente aqueles já dispostos a crer, [e] pode não fazer nada para responder às genuínas dificuldades conceituais do cético."
Nas páginas 114 e 115, ao criticar o "sincretismo da graça com a capacidade humana" dos arminianos: "A façanha original do pensamento sincretista é uma teologia mista que incorpora posições incompatíveis. Pressuposições contraditórias são sustentadas arbitrariamente juntas sob a alegação de equilíbrio. O incrédulo reconhece imediatamente essa atitude como autocontraditória. [...] Então, para proteger essas contradições internas de um exame mais minucioso, fazem regularmente apelos para termos como mistério, paradoxo ou antinomia. Porém, há um preço a pagar por esse passo: se nós, crentes, podemos nos contradizer, assim também pode o incrédulo, e todo o empreendimento apologético é negado prontamente. Nenhuma defesa posterior racional de qualquer coisa é possível, seja do arminianismo ou do próprio evangelho."
Na página 180, ao criticar a exegese arminiana de alguns versículos bíblicos: "Quando não tentam ser lógicos, [os arminianos] não possuem qualquer reivindicação da mente ou da consciência. O ilógico rapidamente se reduz ao ininteligível, e chamá-lo de 'mistério' não resolve o problema."
Na página 205, sobre o problema do mal e questões filosóficas relacionadas: "Essa é a razão principal pela qual as respostas dos não-cristãos para o problema do Uno e do Múltiplo são inaceitáveis: elas somente parecem funcionar se aceitamos de bom grado sustentar as contradições em tensão e apelar para o mistério."
E, finalmente, na página 235, na conclusão do livro: "Já examinamos a influência da teoria do livre-arbítrio no pensamento evangélico, nas diversas áreas. Eu já procurei mostrar, de um panorama histórico, depois diretamente da Escritura, e então por meio de uma crítica dos frutos do libertarismo na teologia e na apologética, que essa teoria é realmente uma combinação desastrosa das suposições cristãs e das não-cristãs a respeito de Deus e da natureza humana, uma tensão sustentada por um sincretismo humanista instável. Isso somente incentiva os cristãos a repetirem o antigo dilema de jogar a unidade da lógica contra a descontinuidade do acaso, enquanto encobrem as suas autocontradições com um apelo ao paradoxo e ao mistério."
Essas sete citações esgotam, salvo engano, as referências do livro à crença na presença de mistérios acima da compreensão humana na revelação bíblica. Lendo-as com atenção, ou mesmo sem muita atenção, é fácil constatar que essas referências são todas negativas: para Wright, a afirmação de que algo é um mistério é um subterfúgio - se não desonesto, ao menos um tanto covarde - para não reconhecer uma simples contradição lógica fatal à nossa cosmovisão ou sistema teológico. Para ele, esse subterfúgio é característico de incrédulos e de cristãos adeptos do arminianismo, mas o calvinista consistente não tem motivos para recorrer a tal expediente - ao que parece, porque não há nenhuma obscuridade na teologia calvinista, ao menos nos temas em que há desacordo entre calvinistas e arminianos. Além disso, para Wright, o reconhecimento da existência de mistérios (ou paradoxos, ou antinomias) é fatal para a apologética cristã, pois reduz a credibilidade da doutrina bíblica aos olhos do incrédulo e lhe dá o direito de usar o mesmo artifício. Não se concebe uma função para o mistério que não seja puramente defensiva e estraga-prazeres.
Por tudo isso, a releitura do livro me convenceu de que minha primeira leitura não havia sido assim tão má. Continuo convencido de que, se o autor acreditava em mistérios, tal fato não teve efeito nenhum sobre essa obra. Não pretendo, é claro, colocar em dúvida a veracidade do testemunho pessoal do Dr. Myatt com base nisso. Apenas creio que há uma contradição fundamental entre a crença de Wright em mistérios e o modo pelo qual ele lidou com esse conceito em sua crítica do arminianismo. Como já afirmei anteriormente (não lembro exatamente onde), quando me refiro a algum irmão como racionalista, não pretendo afirmar que ele leve seu racionalismo às últimas consequências, pois ele teria deixado de ser cristão muito antes de conseguir isso.
No contexto dos debates intramuros do calvinismo (e do cristianismo em geral), creio que minha melhor explicação do que entendo por racionalismo foi dada na terceira parte de minha série O irracional dos racionalismos. Remeto o leitor a esse texto porque não vejo proveito em explicar tudo de novo aqui. Mas acho importante levantar essa questão porque desejo evitar a impressão de que, para mim, acreditar em mistérios é suficiente para que alguém receba um certificado de não-adesão ao racionalismo. Se dei ênfase à questão do mistério na presente postagem, é porque foi esse o principal ponto levantado pelo Dr. Myatt para demonstrar a infelicidade de minha primeira leitura de A soberania banida.
Porém, há outros vestígios de racionalismo na obra, que convém citar de passagem. Por exemplo, as asseverações de Wright sobre o perigo da admissão de mistérios para a apologética se baseiam no pressuposto de que a coerência lógica estabelecida por meio da razão analítica e teórica é o único critério pelo qual o cristianismo pode ser justificado e a cosmovisão do incrédulo pode ser denunciada como falsa. Essa ideia, se levada às últimas consequências, devolveria à razão humana a autonomia rejeitada por Van Til e desconsideraria os efeitos noéticos da queda, bem como a própria depravação total. Falei mais sobre isso na quarta postagem da série O direito ao mistério.
Vejo tendência semelhante na seguinte declaração de Wright (página 14): "Desde que obedeçamos às regras da lógica, as nossas pressuposições controlam todo o nosso pensamento". A restrição feita é não só desnecessária, mas enganosa, na medida em que reduz os pressupostos ao papel de meras premissas em um silogismo do qual nossa cosmovisão inteira seria dedutível. Essa é uma construção artificial que não faz justiça ao papel das pressuposições em uma cosmovisão, como Frame ressaltou muito bem no livro Apologética para a glória de Deus, e tampouco se coaduna com a afirmação de Van Til sobre a coexistência do racionalismo e do irracionalismo na cosmovisão do incrédulo.
Citei Van Til duas vezes nos últimos parágrafos. No próximo post concluirei meus complementos fazendo uma breve comparação entre os posicionamentos do holandês e os de McGregor Wright com relação ao tema do determinismo.
Na página 205, sobre o problema do mal e questões filosóficas relacionadas: "Essa é a razão principal pela qual as respostas dos não-cristãos para o problema do Uno e do Múltiplo são inaceitáveis: elas somente parecem funcionar se aceitamos de bom grado sustentar as contradições em tensão e apelar para o mistério."
E, finalmente, na página 235, na conclusão do livro: "Já examinamos a influência da teoria do livre-arbítrio no pensamento evangélico, nas diversas áreas. Eu já procurei mostrar, de um panorama histórico, depois diretamente da Escritura, e então por meio de uma crítica dos frutos do libertarismo na teologia e na apologética, que essa teoria é realmente uma combinação desastrosa das suposições cristãs e das não-cristãs a respeito de Deus e da natureza humana, uma tensão sustentada por um sincretismo humanista instável. Isso somente incentiva os cristãos a repetirem o antigo dilema de jogar a unidade da lógica contra a descontinuidade do acaso, enquanto encobrem as suas autocontradições com um apelo ao paradoxo e ao mistério."
Essas sete citações esgotam, salvo engano, as referências do livro à crença na presença de mistérios acima da compreensão humana na revelação bíblica. Lendo-as com atenção, ou mesmo sem muita atenção, é fácil constatar que essas referências são todas negativas: para Wright, a afirmação de que algo é um mistério é um subterfúgio - se não desonesto, ao menos um tanto covarde - para não reconhecer uma simples contradição lógica fatal à nossa cosmovisão ou sistema teológico. Para ele, esse subterfúgio é característico de incrédulos e de cristãos adeptos do arminianismo, mas o calvinista consistente não tem motivos para recorrer a tal expediente - ao que parece, porque não há nenhuma obscuridade na teologia calvinista, ao menos nos temas em que há desacordo entre calvinistas e arminianos. Além disso, para Wright, o reconhecimento da existência de mistérios (ou paradoxos, ou antinomias) é fatal para a apologética cristã, pois reduz a credibilidade da doutrina bíblica aos olhos do incrédulo e lhe dá o direito de usar o mesmo artifício. Não se concebe uma função para o mistério que não seja puramente defensiva e estraga-prazeres.
Por tudo isso, a releitura do livro me convenceu de que minha primeira leitura não havia sido assim tão má. Continuo convencido de que, se o autor acreditava em mistérios, tal fato não teve efeito nenhum sobre essa obra. Não pretendo, é claro, colocar em dúvida a veracidade do testemunho pessoal do Dr. Myatt com base nisso. Apenas creio que há uma contradição fundamental entre a crença de Wright em mistérios e o modo pelo qual ele lidou com esse conceito em sua crítica do arminianismo. Como já afirmei anteriormente (não lembro exatamente onde), quando me refiro a algum irmão como racionalista, não pretendo afirmar que ele leve seu racionalismo às últimas consequências, pois ele teria deixado de ser cristão muito antes de conseguir isso.
No contexto dos debates intramuros do calvinismo (e do cristianismo em geral), creio que minha melhor explicação do que entendo por racionalismo foi dada na terceira parte de minha série O irracional dos racionalismos. Remeto o leitor a esse texto porque não vejo proveito em explicar tudo de novo aqui. Mas acho importante levantar essa questão porque desejo evitar a impressão de que, para mim, acreditar em mistérios é suficiente para que alguém receba um certificado de não-adesão ao racionalismo. Se dei ênfase à questão do mistério na presente postagem, é porque foi esse o principal ponto levantado pelo Dr. Myatt para demonstrar a infelicidade de minha primeira leitura de A soberania banida.
Porém, há outros vestígios de racionalismo na obra, que convém citar de passagem. Por exemplo, as asseverações de Wright sobre o perigo da admissão de mistérios para a apologética se baseiam no pressuposto de que a coerência lógica estabelecida por meio da razão analítica e teórica é o único critério pelo qual o cristianismo pode ser justificado e a cosmovisão do incrédulo pode ser denunciada como falsa. Essa ideia, se levada às últimas consequências, devolveria à razão humana a autonomia rejeitada por Van Til e desconsideraria os efeitos noéticos da queda, bem como a própria depravação total. Falei mais sobre isso na quarta postagem da série O direito ao mistério.
Vejo tendência semelhante na seguinte declaração de Wright (página 14): "Desde que obedeçamos às regras da lógica, as nossas pressuposições controlam todo o nosso pensamento". A restrição feita é não só desnecessária, mas enganosa, na medida em que reduz os pressupostos ao papel de meras premissas em um silogismo do qual nossa cosmovisão inteira seria dedutível. Essa é uma construção artificial que não faz justiça ao papel das pressuposições em uma cosmovisão, como Frame ressaltou muito bem no livro Apologética para a glória de Deus, e tampouco se coaduna com a afirmação de Van Til sobre a coexistência do racionalismo e do irracionalismo na cosmovisão do incrédulo.
Citei Van Til duas vezes nos últimos parágrafos. No próximo post concluirei meus complementos fazendo uma breve comparação entre os posicionamentos do holandês e os de McGregor Wright com relação ao tema do determinismo.
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