13 de dezembro de 2011

O irracional dos racionalismos - parte 3

Tendo dito tudo o que já disse na primeira e segunda partes desta série, chegamos a um ponto em que convém não mais postergar a (re)apresentação do conceito que tenho em mente quando falo em racionalismo. Para (re)introduzi-lo, pois, recorro, em primeiro lugar, à conclusão de meu comentário ao texto de Phil Fernandes, no qual, depois de descrever duas diferentes categorias de racionalistas, afirmei:

"O racionalismo é mais amplo que tudo isso, envolvendo uma atitude e um sentimento diante da razão, uma certa confiança em seu poder 'redentor' e em sua onipotência. Racionalistas têm um cheiro característico, que aprendi a identificar por já ter sido um (não sei com que grau de pureza), e por tê-lo sentido diariamente ao longo dos oito anos em que frequentei departamentos de física. Quando digo que Clark foi um racionalista, é porque senti esse cheiro até em seus PDFs. Só não me peçam para descrevê-lo, pois daria muito trabalho. O melhor que já consegui fazer nesse sentido apareceu nesta quarta (e última) parte de minha crítica a um artigo de Gary Crampton. Poderei tentar algo mais completo em outra oportunidade, quando estiver devidamente inspirado. Quem já tentou descrever perfumes com palavras sabe o trabalho que dá."


Podem ser notadas várias coisas nesse trecho. A primeira é que eu reafirmei ali o fato de já ter sido um racionalista. A segunda é que meu conceito de racionalismo é mais amplo que a definição de Fernandes. A terceira é que eu tinha em mente todo um espírito, um modo fundamental de encarar a realidade, uma mentalidade, e não uma simples lista de opiniões sobre epistemologia. E a quarta é que, a despeito das dificuldades a que isso leva naturalmente, tentei, ainda que de modo aproximado e provisório, definir os traços essenciais do que denomino "racionalismo" na quarta parte de minha crítica ao artigo de Crampton. Nenhum desses quatro fatos foi levado em conta no artigo O racionalismo dos irracionais, e isso já basta para indicar o quanto vale a crítica ali erigida às minhas opiniões sobre o tema. Para esclarecer isso, convém resumir os aspectos desse racionalismo que delineei na parte final de minha crítica a Crampton. Antes, contudo, devo reapresentar um trecho do décimo primeiro parágrafo da parte 3 de Sutilezas causais, onde, a pedido de Alan Myatt, ensaiei uma breve definição nos seguintes termos:


"Para os nossos propósitos atuais, acho que é suficiente dizer que o que entendo por racionalismo inclui o horror à ideia de que algo não seja acessível à compreensão humana, a confiança absoluta na razão como árbitro último daquilo em que se deve crer ou não e uma ênfase excessiva sobre as faculdades analíticas da mente humana em detrimento de outros modos de conhecimento."


O artigo O racionalismo dos irracionais, de Felipe Sabino de Araújo Neto, em momento algum lidou com esse conceito de racionalismo, e sim com outros, totalmente estranhos aos meus textos. De qualquer modo, foi na parte 4 de O direito ao mistério que desenvolvi melhor esse conceito, apresentando-o sob uma forma algo diversa, mas discutindo mais extensamente seus traços fundamentais. Reformulando-os agora de modo a adequá-los formalmente às necessidades da presente discussão, posso apresentá-los da seguinte forma:


1.
O "medo do colapso da racionalidade face ao mistério" (oitavo parágrafo), um medo descabido, imensamente exagerado, um pavor irracional (pois é!) diante da mera ideia de que alguma coisa não seja acessível à razão, ao menos em princípio, e que, ante a menor insinuação nesse sentido, produz considerações pateticamente alarmadas e apocalípticas sobre o ocaso de todo conhecimento. Mostrei no segundo parágrafo, e também no oitavo, paralelos entre essa visão dos racionalistas reformados e a dos racionalistas seculares:


"Como vimos, boa parte do argumento de Crampton consiste em apontar semelhanças entre as declarações de seus antagonistas conservadores e as de teólogos neo-ortodoxos. Sendo assim, ele não poderá reclamar se eu adotar o mesmo procedimento e disser com o que se parecem seus louvores à razão. Parecem-se com os de todos os descendentes do cartesianismo e do iluminismo, incluindo-se aí os racionalistas do século XVII, os enciclopedistas do XVIII, os positivistas e teólogos liberais do XIX, os materialistas darwinistas, comunistas e outros cientificistas do século XX. Se Voltaire, Marx, T. H. Huxley, Kardec, Lênin, Russell, Bultmann, Sagan ou Dawkins lessem a Confissão de Fé de Westminster e o artigo de Crampton, sem dúvida veriam nesse contraste uma evidência do 'progresso' do calvinismo ao longo dos séculos em direção às luzes da razão. Todos eles repeliam (ou repelem) horrorizados a mera ideia de que algo na realidade pudesse exceder os limites de nossa razão, pondo-se logo a tecer considerações alarmadas sobre os perigos do 'irracionalismo'. [...] Aliás, o medo do colapso da racionalidade face ao mistério é um dos vários pontos que Crampton e os racionalistas seculares têm em comum. Um dos principais motivos que levam os cientificistas a rejeitar
a priori o design inteligente, por exemplo, é claramente análogo: eles temem que, com a admissão da insuficiência das leis naturais, todos os cientistas do mundo interrompam suas pesquisas e experimentos e passem a atribuir todos os eventos a alguma inescrutável inteligência superior. Trata-se de um absurdo, evidentemente, mas o poder paralisante que o medo exerce sobre a razão não diminui em nada quando o apavorado em questão é um racionalista."

2.
A confiança na razão como árbitro último daquilo que se pode admitir ou não. No caso dos reformados racionalistas, isso toma a forma de um medo de que "a abdicação da razão destrua o próprio fundamento da superioridade da fé bíblica. Ao admitir que há na doutrina cristã fatos que nossa razão não pode abarcar, perderemos o direito de apontar para as contradições de outros sistemas religiosos como provas de sua falsidade" (nono parágrafo). Citei no quinto parágrafo a seguinte pergunta retórica de Crampton: "Como, então, o homem sabe se está abraçando uma contradição real (a qual, se encontrada na Bíblia [...], reduziria a Escritura ao mesmo nível do contraditório Alcorão do islamismo) ou uma contradição aparente?" O pressuposto embutido nessa pergunta, se levado às últimas consequências (coisa que, felizmente, os irmãos racionalistas não fazem), implica que temos o direito de não crer nas Escrituras se constatarmos que ela apresenta doutrinas que não conseguimos harmonizar racionalmente. Afinal, é o próprio Crampton quem, no afã de combater o "irracionalismo", nega a validade de qualquer distinção entre contradições reais e aparentes. Critiquei sua posição no décimo parágrafo, que transcrevo em sua totalidade:


"Minha experiência pessoal não corresponde a nada disso. Tornei-me cristão porque Deus me regenerou, tirou meu coração de pedra e me deu um coração de carne, aplicou a mim o valor expiatório da obra de Cristo, capacitou-me a desejar a reconciliação com Deus e a ter fé em Cristo como único mediador da nova aliança. E continuo a ser cristão porque Deus tem levado minha fé a perseverar, de modo a completar a obra iniciada, conforme sua promessa, e porque o Espírito Santo testifica com meu espírito que sou filho de Deus e abre meus olhos para a compreensão das verdades reveladas nas Escrituras. O caso de Crampton, ao que parece, é bem diferente do meu: ele se tornou cristão porque o Espírito deu satisfações impecáveis à sua razão, a qual então se dobrou diante da evidência. E só continuará a ser cristão até o dia em que sua razão, como árbitro soberano, detectar na Bíblia alguma contradição (real ou aparente, pois ambas são indistinguíveis) e o Espírito não for capaz de lhe dar uma explicação convincente para tamanho disparate."


Sei que alguém poderia concluir daí que estou acusando Crampton de não crer na depravação total. Mas isso seria deixar de notar que meu argumento foi apresentado sob uma forma irônica e consiste, na verdade, de um bem-humorado reductio ad absurdum. Meu propósito foi apenas o de mostrar que um cristão só pode ser racionalista, no sentido em que uso o termo, na medida em que não leva às últimas consequências sua confiança excessiva na razão. E aqui, mais uma vez, o paralelo com o caso do cristão evolucionista é exato.


3.
A ênfase excessiva sobre a coerência lógica e teórica em detrimento da experiência direta da realidade. Vejo um sinal disso na indignação de Sabino contra a mera possibilidade de racionalismo em um pastor presbiteriano e calvinista que crê na infalibilidade e suficiência das Escrituras. Como mostrei no segundo post da presente série, essa indignação só tem validade se for considerada, de modo algo abstrato, a coerência interna da cosmovisão, e não o modo pelo qual Deus usualmente opera nos corações e mentes para a santificação dos eleitos. Esse erro, porém, é muito mais evidente no caso de Crampton, a quem critiquei por isso no décimo primeiro parágrafo - logo depois, portanto, do parágrafo que acabo de transcrever - nos seguintes termos:


"No parágrafo anterior, descrevi minha experiência com Deus em termos calvinistas e bíblicos não apenas porque tais termos de fato descrevem com perfeição o cerne dessa experiência, mas também para evidenciar o contraste com as declarações de Crampton sobre os motivos pelos quais se deve ser cristão. O grande problema com o racionalismo, teológico ou não, está bem ilustrado aqui: o autor não mais descreve a razão de sua esperança com base na experiência concreta da graça de Deus, e sim a partir da robustez do esquema teórico e racional que foi capaz de erigir. É esse o resultado natural da crença no domínio absoluto da razão: o olhar desviado de Cristo e sua misericórdia para questões secundárias."


Complementei essa crítica no décimo segundo parágrafo ao observar que "a redução do valor de uma doutrina à coerência racional de suas construções teóricas é em si um critério bastante deficiente que só poderia mesmo brotar da cabeça de um racionalista". Na verdade, uma vez mais, é claro que nenhum cristão verdadeiro leva isso às últimas consequências. Para que as críticas que dirijo aos crentes racionalistas pudessem ser tomadas como juízos universais sobre sua cosmovisão, seria necessário supor que lhes atribuo uma coerência profunda. Visto que esses irmãos normalmente fazem uma imagem demasiado positiva de sua própria coerência, eles tendem a supor que os outros os veem, quanto a esse aspecto, da mesma forma como veem a si mesmos, isto é, como pessoas coerentes ao extremo. Dessa forma, é psicologicamente compreensível que Sabino tenha entendido minhas críticas sob uma perspectiva equivocada. Portanto, esta é a ocasião apropriada para deixar claro que não considero os irmãos que chamo de racionalistas tão coerentes quanto eles mesmos se consideram; infelizmente, porque a incoerência é algo ruim; mas também felizmente, pois é a própria incoerência que impede que seus erros dominem sua cosmovisão por completo. Deus não permite que seus filhos racionalistas sejam racionalistas em tudo - como, aliás, acontece com todos os demais desvios possíveis do coração humano.


Por falar em demais desvios, devo observar que esse terceiro ponto é passível de generalização, pois o racionalismo leva a várias outras ênfases erradas além dessa. Mencionei uma delas no décimo terceiro parágrafo, que também transcrevo integralmente:


"A propósito, é inconcebível para mim que um teólogo reformado se aventure a discorrer sobre o assunto da justificação racional da fé bíblica sem tocar no tema importantíssimo do papel do pecado enquanto obscurecedor da inteligência humana, especialmente em assuntos diretamente relacionados a Deus e à salvação, que é uma das ênfases primordiais da doutrina reformada sobre a cognoscibilidade de Deus. Crampton, no entanto, faz justamente isso. Se sua argumentação já é deficiente frente à constatação da finitude humana em contraste com a infinitude divina, torna-se ainda mais reprovável quando lembramos que essa finitude está corrompida pelo pecado e que, como nos lembra Calvino nas
Institutas, ninguém pode obter um conhecimento autêntico de Deus ou das Escrituras sem a iluminação do Espírito de Deus e sem a santificação correspondente. Esse é mais um exemplo das ênfases erradas a que o racionalismo leva."

Por isso, quando Sabino cita Rushdoony dizendo que Clark tinha uma visão correta sobre a integralidade da natureza humana, ele perde de vista o nível em que minha crítica se aplica corretamente. Eu não tenho razão alguma para ver nas declarações de Rushdoony sobre Clark alguma objeção ao que eu disse, já que nunca me passou pela cabeça duvidar que sejam verdadeiras em algum grau. Por isso mesmo, para efeito de decisão sobre se estamos ou não diante de um cristão racionalista, nos termos em que acabo de expor o conceito, isso pouco importa. Afinal, dado que a consistência completa não é algo que Deus tenha dado a quem quer que seja na presente vida, é perfeitamente natural que Clark possa ter uma visão autenticamente bíblica em certos temas (filosofia da educação, por exemplo) e não em outros (epistemologia, por exemplo).


Toda essa descrição sobre o que entendo por racionalismo e por que o considero bastante problemático quando presente na cosmovisão de um cristão está presente, sem qualquer diminuição, na quarta parte de minha crítica a Crampton, publicada em 15 de novembro de 2010. A própria abundância de citações do presente post dá testemunho disso. Se Sabino tivesse lido aquele texto com atenção e cuidado, pensando seriamente a respeito, não seria necessário que eu explicasse tudo de novo agora. É por não ter feito isso que não respondeu ao conceito de racionalismo que usei, e sim a outros. E é também em parte por isso que não vejo valor em suas objeções.


Esclarecido esse ponto, posso passar à análise de outros aspectos relevantes do texto de Sabino. Prometo que os próximos posts serão bem menos repetitivos, e ao menos um pouco mais curtos.

3 comentários:

Roberto Vargas Jr. disse...

Bingo!
NEle,
RVJ

Mulher na Polícia disse...

Andy!!!

hehehe

Já te disseram que vc parece demais com o Andy Brown?

Sério! É só deixar o cabelo crescer...
: )

É, e eu adoro esssa música dele:

http://www.youtube.com/watch?v=vhmGtcOyVcs

Feliz Natal pra vc!

André disse...

Cara Novinha,

Eu nunca tinha ouvido falar em Andy Brown. Confesso que assuntos envolvendo TV e música que não seja antiga são meus pontos fracos. hehe

Mas a Norma (que também não conhecia o cara) viu o vídeo junto comigo e concordou que há certa semelhança, ao menos na pequena parte do rosto que não estava coberta por cabelos. hehehe

Obrigado pela lembrança e pela música. Feliz Natal pra você também. Abraços!