2.8. Transcendência
Embora Clarke fosse agnóstico,
materialista, humanista e antirreligioso, sua obra denuncia em vários pontos a
presença daquilo que Dooyeweerd chama de “motivação religiosa fundamental do
coração”[1],
bem como de sentimentos religiosos, embora não reconhecidos como tais nem
dirigidos ao Deus verdadeiro. Esse aspecto será explorado na presente seção,
tendo como ponto de partida a seguinte declaração de Clarke:
Se me pudessem ser concedidos três desejos, eles
seriam: 1) paz no Sri Lanka – e no mundo todo, se não fosse pedir demais; 2) os
primeiros protótipos comerciais de dispositivos geradores de energia limpa e
praticamente infinita, que encerrariam a era do combustível fóssil; 3) a prova
de vida em outro lugar – de preferência inteligente, embora eu me satisfaça com
qualquer coisa capaz de juntar algumas células.[2]
Enquanto os dois primeiros
desejos dizem respeito ao bem da humanidade, o último não necessariamente
traria algum benefício prático a quem quer que fosse. Pensando na quantidade e
variedade de coisas que Clarke poderia ter desejado em vez disso, fica claro
que a vida extraterrestre possui um papel especial em sua cosmovisão.
Evidências mais fortes disso podem ser encontradas em outras declarações suas.
Por exemplo, quando lhe foi perguntado qual era, para ele, o “maior mistério”,
sua resposta foi: “Oh, ETs. Você não consegue imaginar nada maior nem mais
importante que isso, consegue?” Nessa ocasião, Clarke declarou não saber se
existe ou não vida inteligente em outros mundos: “Se de fato estivermos sozinhos,
significa que somos não só os herdeiros do cosmos, mas também seus guardiões, o
que é um pensamento portentoso”[3].
Mais tarde, porém, ele se convenceu completamente: “Bem, é claro que não há
nenhuma evidência. Mas parece incrível sugerir que nesse universo enorme nós
somos a única forma de vida inteligente”[4].
E, ao ser indagado sobre o que gostaria de ver antes de morrer, sua resposta
foi: “A primeira coisa, é claro, é a descoberta de vida inteligente no espaço
exterior. Acho improvável que isso aconteça durante a minha vida, mas tenho
certeza de que um dia será alcançado”[5].
Podemos resumir o conteúdo dessas
declarações dizendo que os ETs inteligentes ocupavam, para Clarke, a função de
“maior mistério”, o maior e mais importante fato a ser descoberto; que ele, a
despeito de seu propalado ceticismo, dispunha-se a crer neles sem qualquer
evidência; e que o surgimento de tal evidência era o que ele mais queria ver em
vida.
Nesse campo, dentre vários
outros, a cosmovisão de Clarke é muito semelhante à do astrônomo Carl Sagan
(1934-1996), de quem foi amigo pessoal. Sagan foi o criador do projeto SETI (Search for Extra-Terrestrial Intelligence
[Busca por Inteligência Extraterrestre]), destinado a procurar sinais de inteligência
nas ondas eletromagnéticas vindas do espaço. Seu livro O mundo assombrado pelos demônios[6],
além de conter uma defesa desse projeto, dedica-se a promover o ceticismo
cientificista e criticar a “superstição” e a “pseudociência”, representadas na fé
religiosa em geral e na crença em fenômenos paranormais, mediúnicos e ligados
às diversas modalidades de esoterismo. Boa parte do livro é dedicada à crítica
dos fenômenos ufológicos, abduções e relatos semelhantes, tidos como mais uma
“superstição” – e, portanto, aparentados às crenças religiosas irracionais que
o cético deve rejeitar.
Entretanto, embora admitindo que
não há evidência conclusiva da existência de alienígenas inteligentes, Sagan
julgava seguro crer na existência de tais seres com base em razões que lhe
pareciam estritamente científicas, e não religiosas (pois a religião é, para
ele e Clarke, o terreno da irracionalidade por excelência). Clarke concordava
com tudo isso, e declarou, nas páginas finais de 3001, que a leitura desse livro deveria ser obrigatória nos
colégios e faculdades (p. 262). Quando lhe perguntaram o que achava dos relatos
de abduções, sua resposta foi: “Um lixo delirante total! Temo que haja um monte
de homens e mulheres malucos andando por aí”[7].
E, de fato, o século XXXI via esses relatos como efeitos de doença mental (p.
113-4), em pé de igualdade com o “fanatismo religioso”.
Curiosamente, outro livro de
Sagan, o romance Contato, de 1985[8], traz
notáveis afinidades com a tetralogia de Clarke. Também ali os extraterrestres
que fazem contato com a humanidade são muito avançados tecnologicamente (e
moralmente), e as questões acerca deles e de sua influência sobre nós adquirem
contornos claramente religiosos. Há também semelhança na ontologia materialista
por trás de ambas as obras. Os alienígenas de Sagan são, porém, menos
intervencionistas que os de Clarke, pois não tiveram participação na criação da
humanidade, e tampouco manifestaram intenção de intervir em seu futuro.
Não foi por acaso que me referi
aos Primogênitos de Clarke como deuses. Eles agiram como um demiurgo grego ao
tomar parte na criação da espécie humana, fiéis ao objetivo de promover o
surgimento de vida inteligente em toda a galáxia. Clarke percebeu bem cedo o
fundo religioso dessa ideia; enquanto escrevia 2001 e discutia com Kubrick o roteiro do filme, ele registrou em
seu diário (18/11/1965) a impressão causada por um filme que assistiu: “Um
verso me atingiu de modo especial – o uso da frase ‘Deus fez o homem à sua
própria imagem’. Esse, afinal,é o tema do nosso filme”[9].
Posteriormente, os Primogênitos
decidem destruir a humanidade com base em uma reprovação moral, baseando-se em
informações colhidas no século XXI. As providências para a execução desse juízo
final chegaram no século XXXI e foram sabotadas com a ajuda de David Bowman,
convertido pelos Primogênitos em um ser semelhante a eles (ou seja, de pura
energia) em 2001. Embora a ameaça
imediata tenha sido superada, porém, é de se esperar uma retaliação nos
próximos séculos, e o livro termina com essa expectativa. Mas o leitor é
informado sobre a decisão dos Primogênitos no epílogo do livro. Eles dizem: “O
pequeno universo deles é muito jovem, e seu deus ainda é uma criança. Mas ainda
é cedo demais para julgá-los. Quando retornarmos, nos Últimos Dias, Nós veremos
o que deve ser salvo” (p. 247). O tom, a linguagem e o conteúdo são claramente
escatológicos, e muitos paralelos com a teologia bíblica poderiam ser extraídos
dessas poucas palavras.
Apesar disso, os Primogênitos têm
menos em comum com o Deus das Escrituras que com as divindades do paganismo greco-romano:
são múltiplos, tiveram sua origem dentro do mundo e a partir de matéria
preexistente e são limitados em seus poderes e valores morais; gerenciam parte
do que acontece no universo, mas não podem ocupar o papel de Absoluto em nenhum
sentido admissível do termo.
Não devemos, é claro, tratar do
tema como se o autor acreditasse de fato nos alienígenas que inventou. A
questão diz respeito à estrutura de plausibilidade da cosmovisão do autor, e
ganha ainda mais peso diante da já apontada semelhança com a ficção de Carl
Sagan: existe uma afinidade profunda entre o velho paganismo politeísta e o
novo racionalismo cientificista. Essa conexão também não é casual: no período
moderno, a crença em habitantes do espaço sideral ganhou força primeiro,
historicamente, entre os círculos influenciados pelo reavivamento do paganismo
trazido pelo Renascimento[10].
Tanto no esoterismo ufológico
barato quanto no refinado ceticismo científico, os alienígenas ocupam o espaço
que antigamente era atribuído aos deuses. A diferença específica do cético
materialista é que ele só se sente autorizado a crer no que lhe parece
cientificamente bem fundamentado, e é por isso que a afinidade citada se torna
mais facilmente detectável nos momentos (relativamente raros) em que ele se
sente autorizado a dar asas à imaginação – por exemplo, em uma obra de ficção
científica. O materialista moderno, pois, diferencia-se do pagão antigo por uma
subtração, e não por um acréscimo: talvez seja lícito descrevê-lo como um pagão
que tem restringida a faculdade da imaginação.
2.9. Deus
Deixando de lado as ideias da
criação do homem à imagem de Deus e do juízo final sobre a humanidade,
grotescamente parodiadas na tetralogia pelas ações dos Primogênitos, há em 3001 dois momentos que revelam uma
percepção particularmente lúcida do Deus verdadeiro – aquilo que João Calvino
chamou de sensus divinitatis[11].
Ambos apontam para a percepção da sabedoria e majestade manifestas na criação,
em contraste com as quais se revelam pífias as realizações humanas. Será
transcrito aqui um desses momentos, que revela essa percepção com especial intensidade.
Poole deixava nosso planeta pela primeira vez desde que fora trazido
inconsciente do espaço. No século XXXI, existe uma enorme construção humana
chamada Cidade Estelar, uma estrutura anelar que circunda todo o planeta. O
narrador diz (p. 102):
Quando eles estavam a cinquenta mil quilômetros de altitude, ele estava
prestes a ver toda a Cidade Estelar, como uma estreita elipse rodeando a Terra.
Embora o lado distante estivesse quase invisível, um fio de cabelo de luz
contra as estrelas, inspirava reverência o pensamento de que a raça humana
tinha agora estabelecido esse sinal nos céus.
Então Poole se lembrou dos anéis de Saturno, infinitamente mais
gloriosos. Os engenheiros astronáuticos ainda tinham um caminho muito, muito
longo a percorrer até serem capazes de igualar as realizações da Natureza.
Ou, se essa era a palavra correta, Deus.
Esse trecho ilustra bem a
afirmação de Clarke de que “Nenhuma pessoa inteligente pode contemplar o céu
noturno sem um senso de reverência”[12]. Isso
foi o mais perto que ele conseguiu chegar do reconhecimento de que “Os céus
proclamam a glória de Deus” (Salmo 19.1).
No entanto, visto que o
reconhecimento dos atributos de Deus na natureza torna o homem indesculpável (Romanos
1.20), o coração humano busca fugir das implicações dessa revelação. Assim,
Clarke cindiu Deus em dois conceitos, o Criador e o Juiz, e concedeu a
“possibilidade” de existência apenas ao primeiro, considerado “um personagem
muito mais interessante”[13].
O capítulo final de 3001 permite
entrever a decisão pessoal de Clarke ao revelar um dos últimos pensamentos de
Poole, depois que havia passado a ameaça do fim imediato da humanidade. Ninguém
sabia qual seria a próxima atitude dos Primogênitos, mas Poole decidiu apenas
não lhes dar mais atenção: “Quaisquer que fossem os poderes divinos emboscados
além das estrelas, Poole lembrou a si mesmo, para os seres humanos ordinários
só duas coisas eram importantes: o Amor e a Morte” (p. 245-246).
Dado o anseio de Clarke por
encontrar seres inteligentes no espaço, é deveras revelador que seu personagem
tenha tomado essa rota de fuga quando esses seres se mostraram hostis em um
sentido escatológico. É fácil ver nisso um paralelo com a decisão do coração de
Clarke quanto ao Deus verdadeiro: torcer para que o Último Dia seja apenas uma
lenda e, com base nisso, aproveitar da melhor maneira possível o que a vida
presente oferece de bom, encarando de modo realista e conformado a dose
inevitável de mal. Esse triste compromisso fundamental se espraia para toda a
cosmovisão de Clarke: sociedade, ciência, tecnologia, progresso, prazer... Tudo
é posto a serviço de uma vã esperança de um dia vencer o mal e a morte pelas
próprias forças, prescindindo da cruz de Cristo.
3. Considerações finais
A título de conclusão, convém
sintetizar o que foi exposto à luz da chave de compreensão proposta por
Dooyeweerd[14] com
base no motivo bíblico criação-queda-redenção. 3001 possui momentos de verdade em todas as três áreas. A
cosmovisão do autor comporta percepções corretas sobre os seguintes pontos: a
manifestação dos atributos de Deus na natureza (criação); a depravação moral do
homem e a fragilidade de sua condição no mundo presente (queda); a necessidade
de superar o presente estado de coisas e o papel do homem como guardião e
mestre sobre a natureza (redenção).
Entretanto, o direcionamento dado
pela cosmovisão de Clarke traz uma distorção humanista fundamental nos três
aspectos. No campo da criação, Clarke não apenas nega a evidência que aponta
para Deus como Criador, reduzindo-a (na melhor das hipóteses) à função de uma
distante causa primeira e negando a divina providência, mas também, em
decorrência disso, possui uma visão reducionista do significado das coisas
criadas, inclusive do próprio homem. Quanto à queda, ele não só assume a
normalidade do cosmos atual, mas também minimiza a extensão e a profundidade da
perversão do coração humano. É apenas graças a isso que ele consegue, ainda que
de modo inconsistente, se satisfazer com uma esperança de progresso que está
muito aquém da radicalidade da redenção que encontramos em Cristo, mas que tem
a vantagem (do ponto de vista humanista) de tornar dispensável a intervenção
divina.
Toda a cosmovisão de Clarke se
orienta em oposição ao Deus verdadeiro e destina-se a mantê-lo afastado, em
especial pela consciência – não passível de supressão completa – de que a ação
redentora de Deus traz como corolário a condenação dos que se obstinam na
rebeldia contra ele.
[1] KALSBEEK,
L. Contours of a Christian Philosophy:
an Introduction to Herman Dooyeweerd’s Thought. Toronto: Wedge, 1975.
[6] SAGAN,
Carl Edward. O mundo assombrado pelos
demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
[8] SAGAN,
Carl Edward. Contato: romance. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
[10] KOYRÉ,
Alexandre. Do mundo fechado ao universo
infinito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Edusp, 1979.
[11] CALVINO,
João. As Institutas: edição
clássica, v. 1, 2 ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
[14] WOLTERS,
Albert. Criação restaurada: base
bíblica para uma cosmovisão reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
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