2.5. Limites
Os aspectos destacados na seção
anterior mostram a afinidade do pensamento de Clarke com o progressismo
racionalista clássico, de caráter cientificista e iluminista. Na realidade,
porém, Clarke não permaneceu de todo imune às desilusões características do homem
pós-moderno, e é necessário expor brevemente os indícios que evidenciam isso.
O progresso concebido por Clarke
diverge daquele do progressismo clássico, em primeiro lugar, pelo fato de não
ser linear e monotônico. O século XX é conhecido no século XXXI como “O Século
da Tortura”, e algumas pessoas o veem como “o pior período da história humana” (p.
217). Embora essa visão não seja unânime, até os mais otimistas consideram que
o século XXI “marca a transição entre o barbarismo e a civilização” (p. 87), em
parte por causa das guerras mundiais e outras atrocidades, como as do comunismo
(p. 225-6).
Outra diferença é que Clarke
acreditava no progresso da humanidade, mas não em sua perfectibilidade, por
crer que todo progresso traz alguma perda correspondente: “tudo tem um preço”,
disse ele nesse contexto[1]. Poole
constatou inúmeros exemplos disso no século XXXI: desigualdade política,
suicídios, crimes, corrupção, motins (em naves espaciais), acidentes,
superstições e doenças mentais foram bastante reduzidos, mas não eliminados por
completo, e há claras sugestões da impossibilidade de um triunfo completo
contra esses males.
Outra classe de problemas é a
daqueles acerca dos quais se fez pouco ou nenhum progresso. Por exemplo, embora
o acesso à informação seja facílimo, quase ninguém se interessa em ler ou
adquirir conhecimento (p. 84), de modo que Poole rapidamente superou quase
todos os seus conhecidos na compreensão da história do terceiro milênio (p. 61,
115). Pior que isso é o fato de que a prosperidade material e tecnológica tornou
a vida demasiado confortável, e as pessoas tornaram-se acomodadas (p. 106), a
tal ponto que Poole só encontrou um forte senso de aventura e propósito na vida
entre os colonizadores de uma lua de Júpiter, para os quais a sociedade
terráquea-lunar estava em franca decadência (p. 136). O livro revela alguns
aspectos dessa decadência, a começar pela culinária: as refeições, sempre
preparadas por robôs, eram nutritivas e “perfeitamente aceitáveis”, mas
“certamente nada com que se animar, e teriam sido o desespero de um gourmet do século XXI” (p. 89). Ainda mais
grave é a ocorrência de um fenômeno análogo entre as pessoas, com uma tendência
à uniformização das personalidades: “havia bem poucos personagens memoráveis
nessa sociedade” (p. 217).
Um último aspecto que vale a pena
mencionar é que Clarke não via solução para a tensão entre os direitos do
indivíduo e o bem da coletividade. Isso é ilustrado em 3001 pelo progresso que possibilitou a identificação de pessoas com
potencial para psicose (ou fanatismo religioso) antes que elas oferecessem
ameaça real. Quando o governo passou a examinar indivíduos sem ficha criminal
contra a vontade deles, surgiram protestos que, no entanto, não prevaleceram:
“De modo lento, e até relutante, foi aceito que essa forma de monitoramento era
uma precaução necessária contra males muito piores” (p. 226). Clarke ilustrou
aqui uma preocupação real quanto ao possível mau uso da tecnologia nesse campo.
Comentando sobre o atentado de 11 de setembro, ele declarou: “Eu não acho que
possamos vislumbrar nenhuma mudança técnica que impeça esse tipo de coisa de
acontecer. [...] Olhando para o futuro distante, pode-se imaginar – não estou
certo de que seja uma boa ideia: parecido demais com 1984 – o teste psicológico de todos para ver quem tem esses
impulsos”[2].
Por essas e outras razões,
inimigos da tecnologia continuam a existir ainda no século XXXI (p. 21). Mas
Clarke certamente não se enquadra nessa categoria. Quando lhe perguntaram se
deveríamos frear o moderno ímpeto de procurar soluções tecnológicas para tudo,
sua resposta foi: “Deveríamos acelerar”[3].
2.6. Antropologia
Para Clarke, o século XX foi ao
mesmo tempo “maravilhoso e terrível” (p. 35), mas havia esperança de que o
primeiro aspecto prevalecesse. 3001
foi dedicado às três filhas de um amigo, com as seguintes palavras: “Que vocês
possam ser felizes em um século muito melhor que o meu”. Uma exploração das
razões mais profundas por trás disso nos levará ao núcleo da visão de Clarke
sobre o homem.
Começando pelos aspectos mais
superficiais, pode-se ver em 3001 uma
consciência da fragilidade humana que não combina com o humanismo progressista
clássico, denunciando certa influência pós-moderna. Assim, embora as doenças
tenham sido controladas há muito pelo avanço da medicina, não cessaram as
precauções acerca disso, pois “nunca foi sábio subestimar a engenhosidade da
Mãe Natureza, e ninguém duvidava de que o futuro ainda tinha surpresas biológicas
desagradáveis guardadas para a humanidade” (p. 221). De modo semelhante, a
humanidade no século XXXI procura colonizar outros mundos porque “Os milhões de
mortos no tsunami causado pelo asteroide do Pacífico em 2304 [...] tinha
lembrado a todas as gerações futuras de que a raça humana tinha muitos ovos em
uma única e frágil cesta” (p. 8). Essa era uma preocupação real de Clarke,
crítico severo do corte de verbas para pesquisas sobre viagens espaciais. “Como
disse um amigo meu, os dinossauros se extinguiram porque não tinham um programa
espacial”[4]. O
sentimento por trás disso foi bem resumido em uma breve reflexão sobre o
naufrágio do Titanic, em 1912: “uma civilização que estava demasiado segura,
confortável e talvez complacente percebeu que não éramos os mestres de nosso
próprio destino”[5].
Para Clarke, portanto, ciência e tecnologia
são ferramentas disponíveis para reduzir os riscos a que estamos sujeitos em um
universo repleto de forças hostis sobre as quais temos pouco ou nenhum
controle. Pode-se dizer que são preciosas por serem as melhores armas
disponíveis, mas nem por isso capazes de garantir a vitória. Em seu pensamento
há, pois, um elemento de tragédia, no sentido pagão original do termo: não
havendo em sua cosmovisão uma Providência em que pudesse confiar, restou apenas
o capricho cego das circunstâncias.
Não obstante, para ele, o perigo
mais grave é interior. Quando lhe perguntaram qual era a maior ameaça à
humanidade, a resposta foi: “A humanidade. Nossa única esperança é inteligência
e senso comum, que são tão incomuns”[6].
Essa resposta sugere uma limitação cognitiva, mas Clarke considerava igualmente
perigosa a limitação moral do homem. Ambos os elementos estão presentes em 3001, em que um personagem identifica
como os principais problemas da natureza humana a incapacidade “de pensamento
lógico consistente” e uma dose de agressividade “muito maior que o
absolutamente necessário”. Poole se pergunta: “Isso é um acidente evolutivo –
um pedaço de azar genético?” (p. 151). Na visão materialista de Clarke, não há
outra explicação disponível. Mas, na ficção, aventa-se a possibilidade de ter
havido um erro de projeto da parte dos Primogênitos. Por aí se vê que, se
Clarke acreditasse em Deus, não hesitaria em culpá-lo pelas más inclinações do coração
humano, uma vez que estão ausentes de sua estrutura de plausibilidade a
doutrina bíblica da queda e o conceito kuyperiano de “cosmos anormal”[7].
Clarke tinha uma clara percepção
de que há algo muito errado na natureza humana, a despeito de sua visão
reduzida tanto da profundidade do problema, visto como mero excesso de
agressividade, quanto de sua causa, entendida como simples acidente evolutivo.
Mas é justo dizer que ele aparentemente intuía a insuficiência dessas ideias,
sem, no entanto, dispor de uma explicação melhor. Isso fica bastante claro em
uma entrevista na qual, depois de dizer que a moralidade se resume à famosa
Regra de Ouro, ele exclamou:
Por que os seres humanos não conseguem viver de acordo
com esse princípio? Por que é que as pessoas não conseguem agir como os seres
humanos deveriam agir? Fico assustado com o que todos nós vemos nas notícias
todos os dias – massacres, atrocidades, injustiças, ultrajes de todos os tipos.
Quando vejo o que está acontecendo, eu às vezes penso se a raça humana merece
sobreviver.[8]
O tom de perplexidade contido
nessas palavras denuncia com vigor a surpresa de Clarke diante de um fato que,
em última análise, sua cosmovisão não é capaz de abarcar. Não menos eloquente é
a inusitada epígrafe da quinta seção do livro (pois as quatro primeiras não têm
epígrafe), que contêm os seguintes versos de A. E. Housman: “A labuta de tudo o
que há / não muda o erro original; / Chove sempre sobre o mar, / mas o mar
ainda é sal”[9] (p. 199).
2.7. Otimismo
Infelizmente, os questionamentos
que acabo de citar eram, ao que tudo indica, apenas raros lampejos de lucidez
na mente de um homem que, no restante do tempo, seguia as consequências dos
pressupostos básicos de sua cosmovisão. As intuições de Clarke sobre a
profundidade da depravação do coração humano jamais resultaram em um
diagnóstico que lhes fizesse justiça. Com isso, sua cosmovisão não pôde deixar
de tomar o caminho natural em direção ao otimismo, embora acrescido de todas as
qualificações já citadas.
Isso é ilustrado pelos
comentários de Clarke acerca do fim das ditaduras por meio das informações
transmitidas via satélite: “Alguns países proibiram as antenas parabólicas
particulares, outros têm experimentado o bloqueio da internet, mas no longo
prazo as pessoas descobrirão modos engenhosos de contornar esses controles”[10]. O
fato interessante revelado aqui é que Clarke tinha mais confiança na
inventividade das pessoas “boas” que querem o fim das ditaduras que na dos
ditadores que desejam perpetuá-las. Na prática, Clarke via na inovação
tecnológica um maior potencial para o bem do que para o mal. Isso se verifica
com especial clareza se 3001 for
comparado com o Admirável mundo novo
de Aldous Huxley[11], também
uma ficção científica futurista, mas com um prognóstico bem mais aterrador
sobre os usos possíveis da ciência e da técnica, especialmente como meios de
manipulação de massas. Huxley tinha uma sensibilidade muito mais penetrante e
consistente para a maldade humana, ao passo que Clarke pode, por contraste, ser
considerado um otimista ingênuo. Sobre seu otimismo, aliás, ele mesmo declarou:
Tenho frequentemente descrito a mim mesmo como um
otimista. Eu costumava acreditar que a raça humana tinha 51% de chance de
sobreviver. Depois do fim da Guerra Fria, revisei essa estimativa para algo
entre 60% e 70%. Tenho muita fé no otimismo como uma filosofia, mesmo que seja
apenas porque ele nos oferece a oportunidade da profecia autorrealizável.[12]
Tais palavras revelam que o
otimismo de Clarke é em parte real, mas em parte é motivado pela convicção
bastante pragmática de que não há outro meio de melhorar a situação. Clarke não
cria em um determinismo histórico que faz com que tudo melhore automaticamente.
Mas sua esperança no triunfo final da humanidade se reflete em uma interessante
passagem de 3001 na qual Poole constata,
ao comparar as pessoas que o cercam às do século XXI, um notável aprimoramento
moral da natureza humana ao longo desses mil anos, o qual é atribuído à melhoria
da qualidade da educação e à contenção dos desajustados – causas que, por sua
vez, são ambas devidas ao progresso da tecnologia (p. 217). O materialismo de
Clarke não lhe permitiu escapar à visão do homem como produto do meio.
Em um futuro muito distante,
Clarke cria que nossos descendentes poderiam ser “como deuses, porque nenhum
deus imaginado por nossas mentes jamais possuiu os poderes que eles comandarão”[13]. Clarke
julgava possível (e plausível) que a humanidade pudesse um dia, à semelhança
dos Primogênitos, superar os perigos internos e externos às quais tem estado
vulnerável desde sua origem. Só então ela poderá dizer: “Tragada foi a morte
pela vitória” (1 Coríntios 15.54); mas essa vitória, ao contrário da declarada
na Bíblia, seria obtida unicamente pelo esforço humano.
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