26 de março de 2014

Esperança milenar - parte 3



2.5. Limites

Os aspectos destacados na seção anterior mostram a afinidade do pensamento de Clarke com o progressismo racionalista clássico, de caráter cientificista e iluminista. Na realidade, porém, Clarke não permaneceu de todo imune às desilusões características do homem pós-moderno, e é necessário expor brevemente os indícios que evidenciam isso.

O progresso concebido por Clarke diverge daquele do progressismo clássico, em primeiro lugar, pelo fato de não ser linear e monotônico. O século XX é conhecido no século XXXI como “O Século da Tortura”, e algumas pessoas o veem como “o pior período da história humana” (p. 217). Embora essa visão não seja unânime, até os mais otimistas consideram que o século XXI “marca a transição entre o barbarismo e a civilização” (p. 87), em parte por causa das guerras mundiais e outras atrocidades, como as do comunismo (p. 225-6).

Outra diferença é que Clarke acreditava no progresso da humanidade, mas não em sua perfectibilidade, por crer que todo progresso traz alguma perda correspondente: “tudo tem um preço”, disse ele nesse contexto[1]. Poole constatou inúmeros exemplos disso no século XXXI: desigualdade política, suicídios, crimes, corrupção, motins (em naves espaciais), acidentes, superstições e doenças mentais foram bastante reduzidos, mas não eliminados por completo, e há claras sugestões da impossibilidade de um triunfo completo contra esses males.

Outra classe de problemas é a daqueles acerca dos quais se fez pouco ou nenhum progresso. Por exemplo, embora o acesso à informação seja facílimo, quase ninguém se interessa em ler ou adquirir conhecimento (p. 84), de modo que Poole rapidamente superou quase todos os seus conhecidos na compreensão da história do terceiro milênio (p. 61, 115). Pior que isso é o fato de que a prosperidade material e tecnológica tornou a vida demasiado confortável, e as pessoas tornaram-se acomodadas (p. 106), a tal ponto que Poole só encontrou um forte senso de aventura e propósito na vida entre os colonizadores de uma lua de Júpiter, para os quais a sociedade terráquea-lunar estava em franca decadência (p. 136). O livro revela alguns aspectos dessa decadência, a começar pela culinária: as refeições, sempre preparadas por robôs, eram nutritivas e “perfeitamente aceitáveis”, mas “certamente nada com que se animar, e teriam sido o desespero de um gourmet do século XXI” (p. 89). Ainda mais grave é a ocorrência de um fenômeno análogo entre as pessoas, com uma tendência à uniformização das personalidades: “havia bem poucos personagens memoráveis nessa sociedade” (p. 217).

Um último aspecto que vale a pena mencionar é que Clarke não via solução para a tensão entre os direitos do indivíduo e o bem da coletividade. Isso é ilustrado em 3001 pelo progresso que possibilitou a identificação de pessoas com potencial para psicose (ou fanatismo religioso) antes que elas oferecessem ameaça real. Quando o governo passou a examinar indivíduos sem ficha criminal contra a vontade deles, surgiram protestos que, no entanto, não prevaleceram: “De modo lento, e até relutante, foi aceito que essa forma de monitoramento era uma precaução necessária contra males muito piores” (p. 226). Clarke ilustrou aqui uma preocupação real quanto ao possível mau uso da tecnologia nesse campo. Comentando sobre o atentado de 11 de setembro, ele declarou: “Eu não acho que possamos vislumbrar nenhuma mudança técnica que impeça esse tipo de coisa de acontecer. [...] Olhando para o futuro distante, pode-se imaginar – não estou certo de que seja uma boa ideia: parecido demais com 1984 – o teste psicológico de todos para ver quem tem esses impulsos”[2].

Por essas e outras razões, inimigos da tecnologia continuam a existir ainda no século XXXI (p. 21). Mas Clarke certamente não se enquadra nessa categoria. Quando lhe perguntaram se deveríamos frear o moderno ímpeto de procurar soluções tecnológicas para tudo, sua resposta foi: “Deveríamos acelerar”[3].

2.6. Antropologia

Para Clarke, o século XX foi ao mesmo tempo “maravilhoso e terrível” (p. 35), mas havia esperança de que o primeiro aspecto prevalecesse. 3001 foi dedicado às três filhas de um amigo, com as seguintes palavras: “Que vocês possam ser felizes em um século muito melhor que o meu”. Uma exploração das razões mais profundas por trás disso nos levará ao núcleo da visão de Clarke sobre o homem.

Começando pelos aspectos mais superficiais, pode-se ver em 3001 uma consciência da fragilidade humana que não combina com o humanismo progressista clássico, denunciando certa influência pós-moderna. Assim, embora as doenças tenham sido controladas há muito pelo avanço da medicina, não cessaram as precauções acerca disso, pois “nunca foi sábio subestimar a engenhosidade da Mãe Natureza, e ninguém duvidava de que o futuro ainda tinha surpresas biológicas desagradáveis guardadas para a humanidade” (p. 221). De modo semelhante, a humanidade no século XXXI procura colonizar outros mundos porque “Os milhões de mortos no tsunami causado pelo asteroide do Pacífico em 2304 [...] tinha lembrado a todas as gerações futuras de que a raça humana tinha muitos ovos em uma única e frágil cesta” (p. 8). Essa era uma preocupação real de Clarke, crítico severo do corte de verbas para pesquisas sobre viagens espaciais. “Como disse um amigo meu, os dinossauros se extinguiram porque não tinham um programa espacial”[4]. O sentimento por trás disso foi bem resumido em uma breve reflexão sobre o naufrágio do Titanic, em 1912: “uma civilização que estava demasiado segura, confortável e talvez complacente percebeu que não éramos os mestres de nosso próprio destino”[5].

Para Clarke, portanto, ciência e tecnologia são ferramentas disponíveis para reduzir os riscos a que estamos sujeitos em um universo repleto de forças hostis sobre as quais temos pouco ou nenhum controle. Pode-se dizer que são preciosas por serem as melhores armas disponíveis, mas nem por isso capazes de garantir a vitória. Em seu pensamento há, pois, um elemento de tragédia, no sentido pagão original do termo: não havendo em sua cosmovisão uma Providência em que pudesse confiar, restou apenas o capricho cego das circunstâncias.

Não obstante, para ele, o perigo mais grave é interior. Quando lhe perguntaram qual era a maior ameaça à humanidade, a resposta foi: “A humanidade. Nossa única esperança é inteligência e senso comum, que são tão incomuns”[6]. Essa resposta sugere uma limitação cognitiva, mas Clarke considerava igualmente perigosa a limitação moral do homem. Ambos os elementos estão presentes em 3001, em que um personagem identifica como os principais problemas da natureza humana a incapacidade “de pensamento lógico consistente” e uma dose de agressividade “muito maior que o absolutamente necessário”. Poole se pergunta: “Isso é um acidente evolutivo – um pedaço de azar genético?” (p. 151). Na visão materialista de Clarke, não há outra explicação disponível. Mas, na ficção, aventa-se a possibilidade de ter havido um erro de projeto da parte dos Primogênitos. Por aí se vê que, se Clarke acreditasse em Deus, não hesitaria em culpá-lo pelas más inclinações do coração humano, uma vez que estão ausentes de sua estrutura de plausibilidade a doutrina bíblica da queda e o conceito kuyperiano de “cosmos anormal”[7].

Clarke tinha uma clara percepção de que há algo muito errado na natureza humana, a despeito de sua visão reduzida tanto da profundidade do problema, visto como mero excesso de agressividade, quanto de sua causa, entendida como simples acidente evolutivo. Mas é justo dizer que ele aparentemente intuía a insuficiência dessas ideias, sem, no entanto, dispor de uma explicação melhor. Isso fica bastante claro em uma entrevista na qual, depois de dizer que a moralidade se resume à famosa Regra de Ouro, ele exclamou:

Por que os seres humanos não conseguem viver de acordo com esse princípio? Por que é que as pessoas não conseguem agir como os seres humanos deveriam agir? Fico assustado com o que todos nós vemos nas notícias todos os dias – massacres, atrocidades, injustiças, ultrajes de todos os tipos. Quando vejo o que está acontecendo, eu às vezes penso se a raça humana merece sobreviver.[8]

O tom de perplexidade contido nessas palavras denuncia com vigor a surpresa de Clarke diante de um fato que, em última análise, sua cosmovisão não é capaz de abarcar. Não menos eloquente é a inusitada epígrafe da quinta seção do livro (pois as quatro primeiras não têm epígrafe), que contêm os seguintes versos de A. E. Housman: “A labuta de tudo o que há / não muda o erro original; / Chove sempre sobre o mar, / mas o mar ainda é sal”[9] (p. 199).

2.7. Otimismo

Infelizmente, os questionamentos que acabo de citar eram, ao que tudo indica, apenas raros lampejos de lucidez na mente de um homem que, no restante do tempo, seguia as consequências dos pressupostos básicos de sua cosmovisão. As intuições de Clarke sobre a profundidade da depravação do coração humano jamais resultaram em um diagnóstico que lhes fizesse justiça. Com isso, sua cosmovisão não pôde deixar de tomar o caminho natural em direção ao otimismo, embora acrescido de todas as qualificações já citadas.

Isso é ilustrado pelos comentários de Clarke acerca do fim das ditaduras por meio das informações transmitidas via satélite: “Alguns países proibiram as antenas parabólicas particulares, outros têm experimentado o bloqueio da internet, mas no longo prazo as pessoas descobrirão modos engenhosos de contornar esses controles”[10]. O fato interessante revelado aqui é que Clarke tinha mais confiança na inventividade das pessoas “boas” que querem o fim das ditaduras que na dos ditadores que desejam perpetuá-las. Na prática, Clarke via na inovação tecnológica um maior potencial para o bem do que para o mal. Isso se verifica com especial clareza se 3001 for comparado com o Admirável mundo novo de Aldous Huxley[11], também uma ficção científica futurista, mas com um prognóstico bem mais aterrador sobre os usos possíveis da ciência e da técnica, especialmente como meios de manipulação de massas. Huxley tinha uma sensibilidade muito mais penetrante e consistente para a maldade humana, ao passo que Clarke pode, por contraste, ser considerado um otimista ingênuo. Sobre seu otimismo, aliás, ele mesmo declarou:

Tenho frequentemente descrito a mim mesmo como um otimista. Eu costumava acreditar que a raça humana tinha 51% de chance de sobreviver. Depois do fim da Guerra Fria, revisei essa estimativa para algo entre 60% e 70%. Tenho muita fé no otimismo como uma filosofia, mesmo que seja apenas porque ele nos oferece a oportunidade da profecia autorrealizável.[12]

Tais palavras revelam que o otimismo de Clarke é em parte real, mas em parte é motivado pela convicção bastante pragmática de que não há outro meio de melhorar a situação. Clarke não cria em um determinismo histórico que faz com que tudo melhore automaticamente. Mas sua esperança no triunfo final da humanidade se reflete em uma interessante passagem de 3001 na qual Poole constata, ao comparar as pessoas que o cercam às do século XXI, um notável aprimoramento moral da natureza humana ao longo desses mil anos, o qual é atribuído à melhoria da qualidade da educação e à contenção dos desajustados – causas que, por sua vez, são ambas devidas ao progresso da tecnologia (p. 217). O materialismo de Clarke não lhe permitiu escapar à visão do homem como produto do meio.

Em um futuro muito distante, Clarke cria que nossos descendentes poderiam ser “como deuses, porque nenhum deus imaginado por nossas mentes jamais possuiu os poderes que eles comandarão”[13]. Clarke julgava possível (e plausível) que a humanidade pudesse um dia, à semelhança dos Primogênitos, superar os perigos internos e externos às quais tem estado vulnerável desde sua origem. Só então ela poderá dizer: “Tragada foi a morte pela vitória” (1 Coríntios 15.54); mas essa vitória, ao contrário da declarada na Bíblia, seria obtida unicamente pelo esforço humano.


[1] ROBINSON, Tasha. Arthur C. Clarke Interview. Chicago, 2004. Disponível aqui. Acesso em: 28 de junho de 2012.
[2] KOVSKY, Steve. Understanding Tech and Terror. San Francisco, 2001. Disponível aqui. Acesso em: 22 de junho de 2012.
[3] COKER III, John L. A Visit with Arthur C. Clarke. Oakland, 1999. Disponível aqui. Acesso em: 14 de junho de 2012.
[4] SPIKE MAGAZINE. Arthur C. Clarke: 3001: The Final Odyssey. Brighton, 1998. Disponível aqui. Acesso em: 12 de junho de 2012.
[5] KOVSKY, Steve. Understanding Tech and Terror. San Francisco, 2001. Disponível aqui. Acesso em: 22 de junho de 2012.
[6] COKER III, John L. A Visit with Arthur C. Clarke. Oakland, 1999. Disponível aqui. Acesso em: 14 de junho de 2012.
[7] KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
[8] CHERRY, Matt. God, Science, and Delusion: a Chat with Arthur Clarke. Ahmerst, 1999. Disponível aqui. Acesso em: 13 de junho de 2012.
[9] “The toil of all that be / Helps not the primal fault; / It rains into the sea, / And still the sea is salt.”
[10] GUNAWARDENE, Nalaka. Humanity Will Survive Information Deluge – Sir Arthur C. Clarke. Nova Délhi, 2003. Disponível aqui. Acesso em: 27 de junho de 2012.
[11] HUXLEY, Aldous Leonard. Admirável mundo novo. Rio de Janeiro, Dinal, 1971.
[12] GUNAWARDENE, Nalaka. Humanity Will Survive Information Deluge – Sir Arthur C. Clarke. Nova Délhi, 2003. Disponível aqui. Acesso em: 27 de junho de 2012.
[13] HOUSTON, Frank. Salon People: Arthur C. Clarke. San Francisco, 2000. Disponível aqui. Acesso em: 15 de junho de 2012.

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