15 de março de 2014

Esperança milenar - parte 2



2. Análise

2.1. Religião

Clarke não era ateu no sentido estrito, pois não descartava a ideia de uma divindade no estilo deísta[1]. Mas, por não julgar possível (nem muito interessante) dizer algo sobre esse ser hipotético, era um agnóstico. Sua atitude quanto à religião era fortemente negativa, e sua posição a respeito foi resumida por ele mesmo na tese de que “a religião é o mais malévolo de todos os vírus da mente”, ideia em que reconheceu a influência de Richard Dawkins[2].

Essa opinião se manifesta de várias formas em 3001. Uma delas é a dissertação mais longa do livro, dedicada a defender a ideia de que a religião é uma psicopatologia (p. 222-5). Clarke deixa claro de várias formas que essa é sua opinião, inclusive ao endossá-la explicitamente em Fontes e reconhecimentos (p. 261).

Não farei aqui uma exposição dos argumentos antirreligiosos do livro por ser essa uma das poucas coisas que não mudaram nada no decorrer dos mil anos fictícios. Mas Clarke pinta um retrato pouco favorável à religião também de outros modos, como ao descrever o terrorismo religioso de seitas milenaristas diversas como principal ameaça à paz mundial ao longo do século XXI, com muitos atentados químicos, biológicos e virtuais[3].

Em parte por esses acontecimentos, e em parte pelo progresso intelectual da humanidade, “todas as velhas religiões caíram em descrédito” (p. 60). Os religiosos à moda antiga não desapareceram por completo, mas são considerados loucos e assim tratados pelos especialistas (p. 142). Ateísmo, agnosticismo e deísmo são as únicas visões socialmente aceitáveis: as pessoas creem “tão pouco quanto possível” (p. 60). Quando o inglês se consolidou como idioma universal, a palavra God foi abandonada por causa de sua carga semântica negativa – isto é, associada às antigas religiões – e passou a ser considerada “palavrão” (p. 48) e “vulgaridade” (p. 86); adotou-se a forma latina Deus para fazer referência ao Criador, ou qualquer que tenha sido a Causa Primeira, sem evocar as velhas crenças. O único resquício de uma influência cultural cristã mencionado no livro é o hábito de trocar presentes no fim do ano (p. 104).

Descontados os elementos ficcionais, fica patente a visão fortemente negativa de Clarke sobre as religiões em geral, e o clima da narrativa deixa claro que, para ele, o fim de todas elas é deveras desejável e merecido.

2.2. Ontologia

Passando do plano da cultura e das relações humanas para o da ontologia, o livro traz várias evidências do materialismo presente na cosmovisão de Clarke. Ele não cria em uma vida futura, mas, em parte por sua residência em um país de cultura budista, tinha interesse em debates sobre a reencarnação, e reconhecia a existência de dezenas de “casos que são difíceis de explicar”[4]. Ainda assim, seu veredito foi desfavorável: “Eu hesito em descartá-la completamente, mas eu precisaria de provas muito precisas”. A causa dessa rejeição foi bem resumida por ele nestas palavras: “Não vejo nenhum mecanismo que a tornaria possível”[5]. Essa exigência de um mecanismo como requisito para julgar uma ideia plausível é, em si, uma forte evidência de apego ao materialismo.

3001 traz os efeitos desse apego em vários pontos. Poole descobre que já é possível armazenar toda a informação necessária para reproduzir uma pessoa inteira (p. 45-6). Em Fontes e reconhecimentos, Clarke endossa uma afirmação semelhante feita por Chris Winter, para quem é possível “recriar uma pessoa física, emocional e espiritualmente” se as informações estiverem disponíveis (p. 253). Na verdade, isso não difere muito do que os Primogênitos haviam feito em 2001 com o astronauta David Bowman, colega de Poole.

Clarke está, pois, convencido de que a consciência humana é redutível às informações armazenadas no cérebro e, inversamente, que matéria e informação bastam para produzir consciência. Essa convicção já se manifestara nos volumes anteriores da série, os quais contêm várias indicações de que supercomputadores podem ter autoconsciência e personalidade. Em 3001, a revelação de que certo artefato de origem alienígena é apenas um computador desprovido de autoconsciência, a despeito de seu poder e complexidade inconcebíveis, é recebido com um espanto[6] que só faz sentido em uma cosmovisão na qual matéria e complexidade de fato bastam para produzir consciência.

De modo coerente com tais opiniões, Clarke também cria que “é provável que, na medida em que nos desenvolvermos, transfiramos nossas mentes para nossas máquinas”[7]. Essa afirmação permite compreender o breve relato sobre os Primogênitos contido no prólogo do livro. Os membros dessa raça agem em toda a série como autênticos deuses – são imortais, supervisionam os mundos habitados e interferem neles a seu bel-prazer. É nítida a intenção do autor de explicar a origem desses seres de um modo que não viole os dogmas do materialismo: eles são, em última análise, apenas uma raça semelhante à nossa, mas que teve muito mais tempo para evoluir. Eles eram “carne e sangue” (p. 1) e tiveram sua origem “no limo quente de um mar desaparecido” (p. 3). Tornaram-se muito avançados tecnologicamente e aprenderam a transferir sua consciência para máquinas melhores que seus corpos. “Eles não mais construíam naves especiais. Eles eram naves espaciais” (p. 2). Mais tarde, descobriram como “armazenar conhecimento na estrutura do próprio espaço, e preservar seus pensamentos em redes congeladas de luz” (p. 2), transformando-se em seres de pura energia, “livres, afinal, da tirania da matéria” (p. 3).

Isso é o mais perto que a cosmovisão de Clarke permite chegar de um autêntico mundo espiritual. Nem os deuses podem ter sua presença justificada na narrativa sem o materialismo e seu corolário nunca ausente, o evolucionismo.

2.3. Reducionismo

            O entendimento da religião como psicopatologia e da consciência como combinação de matéria e informação bastam para indicar o caráter reducionista da cosmovisão de Clarke, mas não esgotam os efeitos deletérios dessa característica. 3001 dá um ótimo exemplo adicional quando Poole assiste a um programa de televisão que foi ao ar mil anos antes, na aurora do terceiro milênio. O narrador compara o homem dos séculos XX e XXI ao da Idade Média e atribui as diferenças a dois conjuntos de causas (p. 34):

As telecomunicações, a capacidade de registrar imagens e sons que antes estariam irrevogavelmente perdidos, a conquista do ar e do espaço – tudo isso criou uma civilização que ia além das mais selvagens fantasias do passado. E, igualmente importante, Copérnico, Newton, Darwin e Einstein mudaram de tal modo nossos modos de pensar e nossa perspectiva do universo que quase poderíamos ser vistos como uma nova espécie até pelo mais brilhante de nossos predecessores.

Essa supervalorização do papel da tecnologia na história combina com cosmovisões materialistas (o marxismo, por exemplo, faz a mesma coisa). A ilustração mais eloquente desse excesso foi dada por Clarke em uma única palavra quando lhe perguntaram qual era a mais maravilhosa das realizações humanas. A resposta foi: “O microchip”[8].

É digno de nota, porém, que todos os quatro indivíduos citados como tendo importância decisiva na formação da cosmovisão contemporânea são cientistas da natureza, não restando espaço para políticos, empresários, artistas, líderes eclesiásticos, escritores ou filósofos. Não ocorre a Clarke que a própria atividade científica foi moldada por fatores culturais alheios à investigação da natureza. Ele não comete o erro de considerar os fatores culturais (“nossos modos de pensar”) menos importantes que os tecnológicos, mas ambos lhe parecem determinados pela ciência, que é vista como o verdadeiro motor imóvel da história.

O livro traz uma observação interessante ao dizer que, no século XXXI, o problema das propostas políticas inadequadas foi resolvido mediante o emprego de simulações computacionais para testar previamente sua viabilidade (p. 88). Dado que simulações computacionais só têm alguma chance de ser bem-sucedidas quando levam em conta todos os fatos relevantes, vê-se que a razão pela qual Clarke julgava impossível fazer previsões políticas e sociológicas no presente reside apenas na complexidade exorbitante dos fenômenos políticos e sociais. Clarke de fato cria que tal problema poderia ser resolvido no futuro, mediante o simples uso de simuladores e processadores mais potentes, o que constitui sintoma adicional de seu reducionismo.

Isso lança luz sobre a já citada contradição entre a tese do autor acerca da impossibilidade de previsões políticas e sociológicas e sua certeza de que as ditaduras e censuras acabarão, assim como a crença na astrologia. A razão dessa incoerência reside justamente no reducionismo de Clarke: ele cria que só o futuro tecnológico é previsível; mas, por valorizar demais o papel da ciência e da tecnologia, ele não podia deixar de manter algumas certezas não autorizadas pela consciência de sua ignorância. Clarke sabia que o mundo é complexo demais, mas sua cosmovisão não lhe permitia ver em que consiste essa complexidade e, por conseguinte, não lhe dava os meios adequados para distinguir o conhecimento da mera opinião.

2.4. Progresso

3001 apresenta o século XXXI como um tempo em que já foram eliminados ou minimizados todos os grandes problemas que afligem a humanidade hoje: a sociedade é mais bem ajustada e a prosperidade material está ao alcance de todos; as guerras cessaram, as doenças foram debeladas ainda no século XXI, e a expectativa de vida está próxima de 150 anos; o problema da poluição foi resolvido, e o estilo de vida é mais saudável; a criminalidade foi reduzida ao mínimo, e os métodos de punição são menos degradantes. Por todo o livro é possível encontrar evidências do progresso da humanidade, e o autor está sempre chamando a atenção para o papel crucial que o surgimento deste ou daquele artefato tecnológico desempenhou para possibilitar isso, como no caso da já citada predição do fim das ditaduras.

Para Clarke, como disse uma personagem do livro, “o bom selvagem sempre foi um mito” (p. 21). Em seu contexto imediato, essa frase significa não apenas que os selvagens não eram bons, mas também que não poderiam sê-lo: a tecnologia é o requisito material para a excelência moral e social; “civilização é tecnologia”, disse ele em seu costumeiro reducionismo[9].

Isso ajuda a entender a postura sóbria de Clarke quanto às questões ecológicas. Um de seus traços positivos mais notáveis é o amor pelos animais, que o levou a apoiar diversas iniciativas de combate à extinção de espécies ameaçadas. Ele também se preocupava com a obtenção de energia limpa, ansiando de modo especial pelo fim do uso de combustíveis fósseis. Por outro lado, tratava com evidente desprezo os ecologistas radicais, que veem a natureza como um santuário a ser mantido intacto. Grupos assim, aliás, ainda se manifestam no século XXXI, protestando contra o projeto de transformação de Vênus e Mercúrio em lugares habitáveis (p. 8) e coisas semelhantes. Para Clarke, o homem é o guardião das espécies e deve estar disposto a fazer concessões para desempenhar bem esse papel, mas não a ponto de sacrificar seu próprio bem-estar e desenvolvimento. Além disso, a própria solução para os problemas ambientais demanda mais desenvolvimento científico e tecnológico, e não menos: “É impossível retornar ao passado, mas a ciência e a tecnologia nos oferecem os meios para administrar racionalmente o nosso ambiente natural”[10].

Além disso, Clarke corretamente via na tecnologia benefícios que vão além dos aspectos puramente pragmáticos. Ele afirmou, por exemplo: “As várias formas de entretenimento que vieram à existência no último século tornaram a vida mais rica e, de modo geral, mais aprazível. [...] Vivemos em um mundo infinitamente mais rico e somos definitivamente melhores por isso”[11]. Tais percepções apontam para aquilo que Herman Dooyeweerd chamava de “processo de abertura” da cultura[12]. Embora sem desenvolver a ideia, Clarke percebeu que o progresso tecnológico contribui para esse processo em sentidos que transcendem as necessidades físicas e sociais básicas do ser humano. Em 3001 há também várias cenas – algumas das quais bem longas – que apontam para o papel da tecnologia na tremenda expansão das possibilidades turísticas, lúdicas e artísticas no mundo futuro.


[1] HOUSTON, Frank. Salon People: Arthur C. Clarke. San Francisco, 2000. Disponível aqui. Acesso em: 15 de junho de 2012.
[2] ROBINSON, Tasha. Arthur C. Clarke Interview. Chicago, 2004. Disponível aqui. Acesso em: 28 de junho de 2012.
[3] Clarke de fato nutria uma preocupação bastante exagerada com a ameaça das seitas milenaristas, como deixou claro em CHERRY, Matt. God, Science, and Delusion: a Chat with Arthur Clarke. Ahmerst, 1999. Disponível aqui. Acesso em: 13 de junho de 2012..
[4] CHERRY, Matt. God, Science, and Delusion: a Chat with Arthur Clarke. Ahmerst, 1999. Disponível aqui. Acesso em: 13 de junho de 2012.
[5] GREENWALD, Jeff. Arthur C. Clarke on Life. San Francisco, 1993. Disponível aqui. Acesso em: 6 de junho de 2012.
[6] Eu ainda não consigo apreender de fato a ideia de que [ele], apesar de todos os seus poderes, não possui consciência – nem mesmo sabe que existe!” (p. 214).
[7] ROBINSON, Tasha. Arthur C. Clarke Interview. Chicago, 2004. Disponível aqui. Acesso em: 28 de junho de 2012.
[8] SCIFI.COM. Arthur C. Clarke and Gentry Lee Online Chat. Nova York, 1996. Disponível aqui. Acesso em: 11 de junho de 2012.
[9] COKER III, John L. A Visit with Arthur C. Clarke. Oakland, 1999. Disponível aqui. Acesso em: 14 de junho de 2012.
[10] CLARKE, Arthur Charles. Arthur Clarke’s 2001 Diary (excerpt). Nova York, 1972. Disponível aqui. Acesso em: 5 de junho de 2012.
[11] HARRISON, Francis. Arthur C. Clarke Sees E-mail for All. Londres, 2003. Disponível aqui. Acesso em: 25 de junho de 2012.
[12] KALSBEEK, L. Contours of a Christian Philosophy: an Introduction to Herman Dooyeweerd’s Thought. Toronto: Wedge, 1975.

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