2. Análise
2.1. Religião
Clarke não era ateu no sentido
estrito, pois não descartava a ideia de uma divindade no estilo deísta[1]. Mas,
por não julgar possível (nem muito interessante) dizer algo sobre esse ser
hipotético, era um agnóstico. Sua atitude quanto à religião era fortemente
negativa, e sua posição a respeito foi resumida por ele mesmo na tese de que “a
religião é o mais malévolo de todos os vírus da mente”, ideia em que reconheceu
a influência de Richard Dawkins[2].
Essa opinião se manifesta de
várias formas em 3001. Uma delas é a
dissertação mais longa do livro, dedicada a defender a ideia de que a religião
é uma psicopatologia (p. 222-5). Clarke deixa claro de várias formas que essa é
sua opinião, inclusive ao endossá-la explicitamente em Fontes e reconhecimentos (p. 261).
Não farei aqui uma exposição dos
argumentos antirreligiosos do livro por ser essa uma das poucas coisas que não
mudaram nada no decorrer dos mil anos fictícios. Mas Clarke pinta um retrato
pouco favorável à religião também de outros modos, como ao descrever o
terrorismo religioso de seitas milenaristas diversas como principal ameaça à
paz mundial ao longo do século XXI, com muitos atentados químicos, biológicos e
virtuais[3].
Em parte por esses
acontecimentos, e em parte pelo progresso intelectual da humanidade, “todas as
velhas religiões caíram em descrédito” (p. 60). Os religiosos à moda antiga não
desapareceram por completo, mas são considerados loucos e assim tratados pelos
especialistas (p. 142). Ateísmo, agnosticismo e deísmo são as únicas visões
socialmente aceitáveis: as pessoas creem “tão pouco quanto possível” (p. 60).
Quando o inglês se consolidou como idioma universal, a palavra God foi abandonada por causa de sua
carga semântica negativa – isto é, associada às antigas religiões – e passou a
ser considerada “palavrão” (p. 48) e “vulgaridade” (p. 86); adotou-se a forma
latina Deus para fazer referência ao
Criador, ou qualquer que tenha sido a Causa Primeira, sem evocar as velhas
crenças. O único resquício de uma influência cultural cristã mencionado no
livro é o hábito de trocar presentes no fim do ano (p. 104).
Descontados os elementos
ficcionais, fica patente a visão fortemente negativa de Clarke sobre as
religiões em geral, e o clima da narrativa deixa claro que, para ele, o fim de
todas elas é deveras desejável e merecido.
2.2. Ontologia
Passando do plano da cultura e
das relações humanas para o da ontologia, o livro traz várias evidências do
materialismo presente na cosmovisão de Clarke. Ele não cria em uma vida futura,
mas, em parte por sua residência em um país de cultura budista, tinha interesse
em debates sobre a reencarnação, e reconhecia a existência de dezenas de “casos
que são difíceis de explicar”[4]. Ainda
assim, seu veredito foi desfavorável: “Eu hesito em descartá-la completamente,
mas eu precisaria de provas muito precisas”. A causa dessa rejeição foi bem
resumida por ele nestas palavras: “Não vejo nenhum mecanismo que a tornaria
possível”[5].
Essa exigência de um mecanismo como requisito para julgar uma ideia plausível
é, em si, uma forte evidência de apego ao materialismo.
3001 traz os efeitos desse apego em vários pontos. Poole descobre
que já é possível armazenar toda a informação necessária para reproduzir uma
pessoa inteira (p. 45-6). Em Fontes e
reconhecimentos, Clarke endossa uma afirmação semelhante feita por Chris Winter,
para quem é possível “recriar uma pessoa física, emocional e espiritualmente”
se as informações estiverem disponíveis (p. 253). Na verdade, isso não difere
muito do que os Primogênitos haviam feito em 2001 com o astronauta David Bowman, colega de Poole.
Clarke está, pois, convencido de
que a consciência humana é redutível às informações armazenadas no cérebro e,
inversamente, que matéria e informação bastam para produzir consciência. Essa
convicção já se manifestara nos volumes anteriores da série, os quais contêm
várias indicações de que supercomputadores podem ter autoconsciência e
personalidade. Em 3001, a revelação
de que certo artefato de origem alienígena é apenas um computador desprovido de
autoconsciência, a despeito de seu poder e complexidade inconcebíveis, é
recebido com um espanto[6]
que só faz sentido em uma cosmovisão na qual matéria e complexidade de fato bastam
para produzir consciência.
De modo coerente com tais
opiniões, Clarke também cria que “é provável que, na medida em que nos desenvolvermos,
transfiramos nossas mentes para nossas máquinas”[7].
Essa afirmação permite compreender o breve relato sobre os Primogênitos contido
no prólogo do livro. Os membros dessa raça agem em toda a série como autênticos
deuses – são imortais, supervisionam os mundos habitados e interferem neles a
seu bel-prazer. É nítida a intenção do autor de explicar a origem desses seres
de um modo que não viole os dogmas do materialismo: eles são, em última análise,
apenas uma raça semelhante à nossa, mas que teve muito mais tempo para evoluir.
Eles eram “carne e sangue” (p. 1) e tiveram sua origem “no limo quente de um
mar desaparecido” (p. 3). Tornaram-se muito avançados tecnologicamente e
aprenderam a transferir sua consciência para máquinas melhores que seus corpos.
“Eles não mais construíam naves especiais. Eles eram naves espaciais” (p. 2).
Mais tarde, descobriram como “armazenar conhecimento na estrutura do próprio
espaço, e preservar seus pensamentos em redes congeladas de luz” (p. 2),
transformando-se em seres de pura energia, “livres, afinal, da tirania da
matéria” (p. 3).
Isso é o mais perto que a
cosmovisão de Clarke permite chegar de um autêntico mundo espiritual. Nem os
deuses podem ter sua presença justificada na narrativa sem o materialismo e seu
corolário nunca ausente, o evolucionismo.
2.3. Reducionismo
O
entendimento da religião como psicopatologia e da consciência como combinação
de matéria e informação bastam para indicar o caráter reducionista da
cosmovisão de Clarke, mas não esgotam os efeitos deletérios dessa
característica. 3001 dá um ótimo
exemplo adicional quando Poole assiste a um programa de televisão que foi ao ar
mil anos antes, na aurora do terceiro milênio. O narrador compara o homem dos
séculos XX e XXI ao da Idade Média e atribui as diferenças a dois conjuntos de
causas (p. 34):
As telecomunicações, a capacidade de registrar
imagens e sons que antes estariam irrevogavelmente perdidos, a conquista do ar
e do espaço – tudo isso criou uma civilização que ia além das mais selvagens
fantasias do passado. E, igualmente importante, Copérnico, Newton, Darwin e
Einstein mudaram de tal modo nossos modos de pensar e nossa perspectiva do
universo que quase poderíamos ser vistos como uma nova espécie até pelo mais
brilhante de nossos predecessores.
Essa supervalorização do papel da
tecnologia na história combina com cosmovisões materialistas (o marxismo, por
exemplo, faz a mesma coisa). A ilustração mais eloquente desse excesso foi dada
por Clarke em uma única palavra quando lhe perguntaram qual era a mais
maravilhosa das realizações humanas. A resposta foi: “O microchip”[8].
É digno de nota, porém, que todos
os quatro indivíduos citados como tendo importância decisiva na formação da
cosmovisão contemporânea são cientistas da natureza, não restando espaço para
políticos, empresários, artistas, líderes eclesiásticos, escritores ou
filósofos. Não ocorre a Clarke que a própria atividade científica foi moldada
por fatores culturais alheios à investigação da natureza. Ele não comete o erro
de considerar os fatores culturais (“nossos modos de pensar”) menos importantes
que os tecnológicos, mas ambos lhe parecem determinados pela ciência, que é vista
como o verdadeiro motor imóvel da história.
O livro traz uma observação
interessante ao dizer que, no século XXXI, o problema das propostas políticas
inadequadas foi resolvido mediante o emprego de simulações computacionais para
testar previamente sua viabilidade (p. 88). Dado que simulações computacionais
só têm alguma chance de ser bem-sucedidas quando levam em conta todos os fatos
relevantes, vê-se que a razão pela qual Clarke julgava impossível fazer
previsões políticas e sociológicas no presente reside apenas na complexidade
exorbitante dos fenômenos políticos e sociais. Clarke de fato cria que tal
problema poderia ser resolvido no futuro, mediante o simples uso de simuladores
e processadores mais potentes, o que constitui sintoma adicional de seu
reducionismo.
Isso lança luz sobre a já citada
contradição entre a tese do autor acerca da impossibilidade de previsões
políticas e sociológicas e sua certeza de que as ditaduras e censuras acabarão,
assim como a crença na astrologia. A razão dessa incoerência reside justamente
no reducionismo de Clarke: ele cria que só o futuro tecnológico é previsível;
mas, por valorizar demais o papel da ciência e da tecnologia, ele não podia
deixar de manter algumas certezas não autorizadas pela consciência de sua
ignorância. Clarke sabia que o mundo é complexo demais, mas sua cosmovisão não lhe
permitia ver em que consiste essa complexidade e, por conseguinte, não lhe dava
os meios adequados para distinguir o conhecimento da mera opinião.
2.4. Progresso
3001 apresenta o século XXXI como um tempo em que já foram
eliminados ou minimizados todos os grandes problemas que afligem a humanidade
hoje: a sociedade é mais bem ajustada e a prosperidade material está ao alcance
de todos; as guerras cessaram, as doenças foram debeladas ainda no século XXI,
e a expectativa de vida está próxima de 150 anos; o problema da poluição foi
resolvido, e o estilo de vida é mais saudável; a criminalidade foi reduzida ao
mínimo, e os métodos de punição são menos degradantes. Por todo o livro é
possível encontrar evidências do progresso da humanidade, e o autor está sempre
chamando a atenção para o papel crucial que o surgimento deste ou daquele
artefato tecnológico desempenhou para possibilitar isso, como no caso da já
citada predição do fim das ditaduras.
Para Clarke, como disse uma
personagem do livro, “o bom selvagem sempre foi um mito” (p. 21). Em seu
contexto imediato, essa frase significa não apenas que os selvagens não eram
bons, mas também que não poderiam sê-lo: a tecnologia é o requisito material
para a excelência moral e social; “civilização é tecnologia”, disse ele em seu
costumeiro reducionismo[9].
Isso ajuda a entender a postura
sóbria de Clarke quanto às questões ecológicas. Um de seus traços positivos
mais notáveis é o amor pelos animais, que o levou a apoiar diversas iniciativas
de combate à extinção de espécies ameaçadas. Ele também se preocupava com a
obtenção de energia limpa, ansiando de modo especial pelo fim do uso de
combustíveis fósseis. Por outro lado, tratava com evidente desprezo os
ecologistas radicais, que veem a natureza como um santuário a ser mantido
intacto. Grupos assim, aliás, ainda se manifestam no século XXXI, protestando
contra o projeto de transformação de Vênus e Mercúrio em lugares habitáveis (p.
8) e coisas semelhantes. Para Clarke, o homem é o guardião das espécies e deve
estar disposto a fazer concessões para desempenhar bem esse papel, mas não a
ponto de sacrificar seu próprio bem-estar e desenvolvimento. Além disso, a
própria solução para os problemas ambientais demanda mais desenvolvimento
científico e tecnológico, e não menos: “É impossível retornar ao passado, mas a
ciência e a tecnologia nos oferecem os meios para administrar racionalmente o
nosso ambiente natural”[10].
Além disso, Clarke corretamente
via na tecnologia benefícios que vão além dos aspectos puramente pragmáticos.
Ele afirmou, por exemplo: “As várias formas de entretenimento que vieram à
existência no último século tornaram a vida mais rica e, de modo geral, mais
aprazível. [...] Vivemos em um mundo infinitamente mais rico e somos
definitivamente melhores por isso”[11]. Tais
percepções apontam para aquilo que Herman Dooyeweerd chamava de “processo de
abertura” da cultura[12].
Embora sem desenvolver a ideia, Clarke percebeu que o progresso tecnológico
contribui para esse processo em sentidos que transcendem as necessidades
físicas e sociais básicas do ser humano. Em 3001
há também várias cenas – algumas das quais bem longas – que apontam para o papel
da tecnologia na tremenda expansão das possibilidades turísticas, lúdicas e
artísticas no mundo futuro.
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