Em abril de 2012, durante minhas férias,
cursei com a Norma, na qualidade de aluno ouvinte, a disciplina Cosmovisão
Reformada, oferecida pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.
Era parte de meu compromisso como aluno elaborar uma análise de um filme ou
obra literária usando as ferramentas que aprendi no curso, baseadas sobretudo na
antropologia filosófica de Herman Dooyeweerd. Escolhi a obra 3001: a odisseia final, de Arthur Clarke,
fiz o trabalho e o entreguei, se bem me lembro, em agosto do mesmo ano.
A partir de hoje, e continuando nas
próximas três postagens, publicarei esse trabalho, cujo título original era 3001: a odisseia final - uma análise crítica
teorreferente. O trabalho não ficou tão bom quanto poderia, sobretudo por
causa da limitação de espaço; eu sou prolixo demais para dizer o que quer que
seja com propriedade em um espaço curto. Mas preferi manter o texto como
estava, exceto por ter traduzido as citações, que foram feitas do inglês e
incluem as da própria obra sob análise. A edição que usei, e à qual farei
referências o tempo todo, é a da Ballantine Books (Nova York, 1996).
Li esse livro pela primeira vez em 2005,
graças à indicação de Daniel Souza, colega de faculdade e grande amigo que
agora é também um irmão em Cristo. Registro, portanto, minha gratidão a ele.
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1. Introdução
1.1. Objetivo
Este trabalho apresenta uma
análise crítica de alguns aspectos relevantes do livro 3001: a odisseia final, de Arthur Clarke, a partir de uma
perspectiva filosófica biblicamente orientada.
1.2. O autor
O inglês Arthur Charles Clarke
(1917-2008) foi provavelmente o melhor e mais prolífico escritor de ficção
científica do século XX, tendo publicado 51 livros desse teor, além de 45 obras
não-ficcionais e muitos contos e ensaios. A tecnologia, seus fundamentos e seus
usos sempre estiveram no centro de suas atenções, e ele próprio deu algumas
contribuições para seu desenvolvimento, sendo a mais notável delas o conceito
de órbitas geoestacionárias, que possibilitou a invenção dos satélites de
telecomunicações.
Clarke defendia o agnosticismo e
o ceticismo cientificista, e sua cosmovisão era dominada pelo materialismo. Em
muitos aspectos, embora não em todos, ele se afinava ao racionalismo típico da
subcultura das ciências exatas, que ainda resiste em parte ao avanço da
pós-modernidade nas universidades. Embora nutrisse certa simpatia pelo budismo,
desprezava as religiões em geral e tinha um ódio especialmente intenso pelo
cristianismo. Seu interesse em ciências humanas era amplo, mas pouco profundo,
e a superficialidade de seus conhecimentos nessa área pode ser percebida com
facilidade.
Além de suas atividades como
escritor, Clarke também se envolveu na fundação de vários centros de pesquisa
tecnológica, apoiou associações ligadas a astronomia e proteção dos animais,
colaborou para o desenvolvimento da indústria no Sri Lanka (onde residiu desde 1956
até sua morte) e foi membro da Academia Internacional de Humanismo.
1.3. A obra
2001: uma odisseia no espaço é a obra mais famosa de Clarke, em
virtude de sua relação com o filme homônimo de Stanley Kubrick. Clarke e
Kubrick trabalharam em estreita colaboração, produzindo simultaneamente o livro
e filme, ambos os quais foram lançados em 1968. O livro teve uma continuação em
1982, com 2010: uma odisseia no espaço II,
seguida por 2061: uma odisseia no espaço
III, publicado em 1985. O autor tinha 78 anos em 1996, quando escreveu 3001, o volume final da tetralogia.
Não pretendo fazer aqui uma
análise literária do livro, e tampouco descrevê-lo além do necessário para o
entendimento deste trabalho por parte de quem não o leu; para tanto, bastam
algumas observações gerais sobre as características da obra e seu enredo.
Descrições mais pontuais serão dadas adiante, na medida em que forem
necessárias.
O protagonista da história é o
astronauta Frank Poole, personagem que fora dado como morto no espaço em 2001, mas que é resgatado e reabilitado
mil anos depois. É da perspectiva dele que é narrado quase tudo o que se passa.
Naturalmente, em mil anos muitas coisas terão mudado dos pontos de vista tecnológico,
político, cultural, linguístico e outros, de modo que boa parte do trabalho do
autor consiste em descrever essas mudanças imaginadas e, ao mesmo tempo,
retratar de modo psicologicamente realista o esforço de Poole para se adaptar ao
novo mundo. Dessa forma é tentado um equilíbrio entre as dimensões objetiva e
subjetiva da obra, e o autor busca a verossimilhança em ambos os campos.
Os avanços tecnológicos ocupam uma
posição central na obra, dando ensejo a várias reflexões, por parte do
protagonista, acerca de seu papel na promoção de mudanças sociais, políticas,
culturais e até filosóficas. Clarke visivelmente se esmera (e se deleita) no
esforço de produzir um quadro tão preciso e realista quanto possível,
valendo-se de amplo conhecimento e elevada criatividade. Muitos detalhes
narrativos ligados à questão da tecnologia podem passar despercebidos ao leitor
não iniciado em ciências exatas, mas os detalhes técnicos não chegam a
comprometer a narrativa, que pode ser interessante e envolvente para qualquer
leitor. O estilo de Clarke não é profundo em nenhum sentido, mas busca manter
em dose equilibrada todos os aspectos necessários a uma boa história. Contribui
para isso o bom humor – que é, aliás, uma característica pessoal do autor.
O livro contém também elementos
importantes que não derivam de suas considerações sobre a humanidade. Ao lado
da adaptação de Poole ao século XXXI, o problema central do livro é uma ameaça
vinda do espaço, da parte de seres extraterrestres que o prólogo chama de
Primogênitos. Trata-se de uma raça muito antiga e poderosa que logrou alcançar
a imortalidade, e que se empenha em estimular o desenvolvimento de vida
inteligente em diversos pontos da galáxia. A própria humanidade só pôde evoluir
graças à ajuda dos Primogênitos. Mais tarde, porém, eles concluíram que somos
um experimento mal sucedido e decidiram extinguir nossa espécie. Esse “juízo
final” chegou justamente no século XXXI, e a tarefa de Poole e demais
personagens é impedi-lo.
3001 contém um prólogo sobre os Primogênitos, seguido por quarenta
capítulos (distribuídos em cinco seções), um epílogo e duas seções adicionais,
uma das quais (Fontes e reconhecimentos)
é útil para este trabalho, por revelar algumas de suas influências.
1.4. Questões metodológicas
Antes de passar à análise
propriamente dita, é necessário fazer algumas considerações gerais sobre a
maneira pela qual a cosmovisão do autor é ali revelada e transmitida. A
ausência de grandes conflitos de ideias na obra é uma de suas maiores
limitações, mas é também um fator que facilita minha tarefa neste trabalho. A
uniformidade de opiniões entre os personagens é quase absoluta e, além disso, Clarke
muitas vezes coloca suas próprias opiniões nas bocas (e cabeças) deles, jamais
permitindo que um eventual opositor tenha a palavra final. Isso pode ser
atestado tanto pelo exame de outros pronunciamentos públicos do autor quanto
pelos comentários pessoais que ele registrou no final da própria obra.
Porém, não podemos deixar de lado
sem discussão os problemas com que se depara a análise de qualquer obra
ficcional e não-dissertativa, agravados pelo caráter futurista do livro em
questão: antes de tudo, ele poderia ser facilmente tomado de modo indevido como
uma simples tentativa de prever o futuro. O próprio Clarke viu-se obrigado a
protestar em diversas oportunidades contra essa maneira equivocada de entender
sua obra. Disse ele: “Eu nunca previ o futuro. Ou quase nunca. Eu faço
extrapolações. Veja, eu escrevi seis histórias sobre o fim do planeta; é
impossível que todas elas se realizem!”[1]. Indagado
sobre a diferença entre ciência e ficção científica, ele respondeu: “Bem a
ficção científica... raramente tenta prever o futuro. É mais frequente que ela
tente impedir o futuro. [...] Acho que alguns de nós, como George Orwell, foram
muito bem-sucedidos em impedir alguns tipos de futuro”[2]. E,
quando pediram que falasse de sua motivação para atuar no gênero da ficção
científica, Clarke respondeu: “A ficção é mais que a não-ficção, em certos aspectos.
Você pode criar um universo próprio. Você pode expandir a mente das pessoas,
alertando sobre as possibilidades do futuro, o que é muito importante em uma
época na qual as coisas estão mudando rapidamente”[3]. Esses
breves comentários mostram que Clarke estava, ao menos até certo ponto, ciente
da intensidade do elemento puramente imaginativo na literatura futurista, bem
como das pesadas limitações de nosso poder de predição.
Não convém, no entanto,
superestimar o valor dessas advertências, pois Clarke se mostrou deveras
inconsistente em algumas de suas considerações sobre o futuro. Ele afirmou, por
exemplo: “No que diz respeito ao futuro, toda predição política ou sociológica
é impossível. [...] A única área onde há alguma possibilidade de sucesso é o
futuro tecnológico”[4]. No
entanto, ele não resistiu à tentação de fazer predições políticas e
sociológicas em diversas oportunidades. Afirmou, por exemplo, que “o livre
fluxo de informação possibilitado pelos satélites significa o fim da censura e
da ditadura”[5], e
profetizou o fim da crença na astrologia preditiva[6].
As causas dessa inconsistência serão expostas adiante; por ora, é importante
apenas ter em mente que as afirmações sobre o futuro feitas ficcionalmente em 3001 têm uma intenção preditiva
potencialmente mais forte do que o próprio Clarke estaria disposto a admitir.
À parte disso, contudo, as ideias
acima apresentadas – da ficção como extrapolação, denúncia de possibilidades
indesejadas ou sugestão de bons caminhos a trilhar – não deixam de apontar para
uma conexão proposital com a realidade presente, tal como compreendida pelo
autor. E, na verdade, essa conexão brota do próprio espírito da ficção
científica enquanto gênero literário: o que a distingue da literatura
fantasiosa, por exemplo, é justamente o esforço de plausibilidade do ponto de
vista científico. Isso não significa que o escritor não possa dar asas à
imaginação e propor seres, eventos ou artefatos tecnológicos não abarcáveis por
teorias científicas conhecidas. Mas significa que, mesmo nesses casos, é
importante que haja verossimilhança. A ficção científica está, pois,
fundamentalmente comprometida com a busca de um alto grau de realismo.
Além disso, a lógica interna do
gênero leva naturalmente à generalização desse princípio para outros elementos
da narrativa, alheios ao aspecto estritamente científico e tecnológico. Um
autor que preza por esse tipo de verossimilhança também zelará por ela em
outros planos. 3001 é uma obra que
apresenta esse esforço de modo notório em todos os níveis: psicológico,
cultural, político, sociológico e até no pouco que é dito sobre uma raça
inteiramente fictícia como a dos Primogênitos.
Mas a grande pergunta, que nos
leva ao cerne metodológico do presente trabalho, é esta: aquilo que o autor
considera realista o é de fato? O esforço do autor para produzir um mundo
verossímil diz muito sobre seus critérios de verossimilhança ou, em outras
palavras, sobre a estrutura de
plausibilidade por ele adotada. Analisando a obra, é possível extrair
elementos que permitem constituir um retrato dessa estrutura e dos pressupostos
nela embutidos e, por essa via, chegar a uma avaliação biblicamente orientada
da cosmovisão contida na obra.
Naturalmente, esse empreendimento
só será possível na medida em que o texto analisado for rico em elementos e
aspectos relevantes para a obtenção desse retrato. Desse ponto de vista, a
criatividade literária de Clarke e a vastidão de seus interesses tornam sua
obra deveras adequada. 3001 foi
escolhido em detrimento dos volumes precedentes da mesma série não só por
apresentar uma fase mais madura do pensamento do autor, mas também porque sua
proposta de retratar um futuro consideravelmente mais distante trouxe o efeito
benéfico de deixá-lo menos preso aos ditames da realidade presente e, dessa
forma, livre para expor sua cosmovisão de modo mais profundo e abrangente. Não
é à toa que o próprio Clarke descreveu 3001
como o projeto mais desafiador de sua carreira[7].
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