2 de maio de 2013

Deveres sem pessoas - parte 5

Na última postagem, procurei mostrar que o artigo A autonomia da ética, de David O. Brink, descreveu mal as vertentes voluntarista e naturalista do cristianismo, representadas, segundo ele, nas obras de Guilherme de Ockham e Tomás de Aquino, respectivamente. Antes de prosseguir, julgo importante fazer alguns esclarecimentos sobre isso. Em primeiro lugar, é claro que, em teoria, é possível que Brink esteja certo, e Boehner, Gilson e Pieper estejam errados. Contudo, os três filósofos citados, além de serem católicos - o que lhes dá a vantagem natural de uma identificação subjetiva mais profunda com a cosmovisão medieval -, são também acadêmicos de renome no estudo da filosofia cristã pré-moderna; Boehner foi um dos grandes responsáveis pela renovação do interesse pela escolástica franciscana (que inclui Ockham) no século XX, e os outros dois foram neotomistas eminentes; Gilson, em especial, é conhecido por qualquer um que saiba qualquer coisa sobre escolástica. Em comparação com eles, Brink é quase tão amador quanto eu quando fala sobre Ockham e Aquino, de modo que acho justo conceder a eles o benefício da dúvida. Além do mais, conheço o suficiente de filosofia moderna para saber que um entendimento profundo e uma sensibilidade justa a cosmovisões e filosofias pré-modernas são qualidades extremamente raras, especialmente em meios intelectuais como esses em que o Dr. Brink circula habitualmente. A propósito, é significativo o fato de que a pequena galeria de filósofos presente no topo de sua página pessoal pula sem cerimônia de Aristóteles para Kant. Também nisso o Dr. Brink é um filósofo moderno típico, e isso não é um elogio.
 
Esclareço também que não pretendo negar que haja diferenças importantes entre Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham, e muito menos que haja divergências minhas em relação a ambos, inclusive quanto à metafísica da moralidade. Digo apenas que tais diferenças envolvem sutilezas que o Dr. Brink não conseguiu captar, e isso o levou a forçar a visão cristã dos fundamentos da moral a caber em categorias que não lhe são próprias: as do paganismo grego, como já observei. Nenhuma das opções oferecidas por Brink descreve bem as ideias cristãs sobre o tema. E aqui não me refiro só às posições de Aquino e Ockham, mas também à "minha" própria (que obviamente não foi inventada por mim, daí as aspas). É por isso que não posso me identificar como voluntarista ou naturalista segundo os sentidos dados no artigo.
 
Finalmente, devo dizer que não considero impossível a formulação de definições mais precisas para os termos "naturalismo" e "voluntarismo" de modo a torná-los úteis como descrição fidedigna de certa divergência filosófica interna à cristandade. Norman Geisler, que é um protestante consideravelmente próximo do tomismo em sua filosofia, também é um crítico do que chama de "voluntarismo divino", e advoga - por exemplo, em sua Enciclopédia de apologética - uma visão que chama de "essencialismo divino". Contudo, foge ao meu objetivo o esforço de redimir o vocabulário usado por Brink; e, de qualquer modo, também estou um tanto longe de ser um discípulo de Geisler. O que quero dizer é que, apesar das distorções embutidas na formulação de Brink, vejo nela algo válido: a oposição que ele expressou muito mal é, no fim das contas, entre pessoalidade e impessoalidade. Trata-se da mesma oposição que John Frame descreveu, conforme a citação que fiz na terceira parte. Sendo mais preciso, a questão é se o fundamento metafísico último da moralidade é uma pessoa ou um princípio. O problema é que Brink, talvez por falta de familiaridade com metafísica, teologia e antropologia filosófica, expressou desastradamente ambos os pólos, reduzindo a personalidade a uma simples "vontade", artificialmente abstraída e desconectada das demais faculdades de um ser pessoal, e não se preocupando em refletir sobre que tipo de ser impessoal poderia ser o fundamento de uma moral objetiva.
 
Na verdade, a posição do Dr. Brink é mais mal formulada do que parece à primeira vista, e isso é demonstrado em [2.4] por sua própria definição de naturalismo como a ideia que "faz a piedade de algo depender da sua natureza", em contraste com o voluntarismo, que "faz a piedade de algo depender da vontade de Deus". A rigor, essa contraposição não faz sentido. Para o cristão, tanto a vontade de Deus quanto a natureza de uma pessoa (ou situação) estão envolvidas na avaliação moral desta última. Dizer que ela é (ou não é) moralmente correta significa que a sua natureza está (ou não está) em conformidade com a vontade de Deus. Qualquer juízo moral pressupõe um exame da natureza da coisa à luz de um padrão normativo. O protesto do cristianismo contra Brink não é quanto à natureza da coisa avaliada, e sim quanto à natureza do padrão com base no qual essa coisa é avaliada. Na verdade, não creio que Brink esteja inconsciente disso em seus melhores momentos. Tal consciência se manifesta em várias partes do artigo, como, por exemplo, em [4.1], com a ênfase nos "princípios" com base nos quais um Deus naturalista amaria as coisas. O que Sócrates e Eutífron procuravam era justamente esse princípio à luz do qual a natureza das pessoas (ou situações) poderia ser declarada moralmente boa ou má.
 
Contudo, essa consciência desaparece em alguns momentos cruciais, como na própria definição de naturalismo. O autor seria mais claro com os leitores (e consigo mesmo) se o definisse como a ideia de que o fundamento da objetividade moral é um princípio impessoal, ou que a natureza das coisas é boa ou má em virtude de sua conformidade ou não com um princípio impessoal. A falta de clareza sobre o que está em jogo é o que permite ao Dr. Brink se situar em uma confortável ambivalência: ele se lembra dos princípios impessoais quando precisa de sua existência para denunciar a suposta arbitrariedade divina, e se esquece deles quando chega sua vez de fazer o trabalho duro e mostrar que sua própria posição é menos arbitrária que a posição "teísta". Não creio que essa ambivalência seja consciente, o que seria nada menos que desonesto da parte do autor. Mas, mesmo de um ponto de vista estritamente intelectual, sua falta de rigor inviabiliza completamente a defesa daquilo que ele defende em seu artigo.
 
Quando pensamos nesses termos, isto é, na questão do artigo como uma escolha entre um fundamento metafísico pessoal ou impessoal para a moralidade, a opção do Dr. Brink não encontra apoio, nem em Tomás de Aquino, nem em Guilherme de Ockham. Assim como eu, e apesar das diferenças, ambos veem em Deus esse fundamento, nem que seja apenas pela simples razão de que não há outro candidato. Afinal, para o cristianismo, tudo o que existe e que não é Deus faz parte de sua criação, inclusive leis e princípios. Brink considera isso um absurdo; para ele, quem não se sujeita a princípios superiores a si mesmo é arbitrário por definição, e decorre daí seu argumento baseado em considerações sobre a "vontade" de Deus. É claro que sua falsa concepção de Deus como uma espécie de vontade flutuante no vácuo colabora para fortalecer sua convicção. Se o Dr. Brink levasse a sério a ideia da pessoalidade de Deus, ainda que somente para fins de refutação, veria que seu trabalho não é tão simples: uma pessoa de verdade não tem uma vontade arbitrária, e sim uma vontade que brota do conjunto dos elementos constituintes de sua personalidade, de sua natureza, de seu caráter. Esse é o único "naturalismo" moral admitido pelo cristianismo: a natureza de Deus como normativa para os seres criados à sua imagem e semelhança. O Dr. Brink nega isso, mas é significativo o fato de que ele não conseguiu - na verdade, nem tentou ou, pior ainda, não percebeu que precisaria tentar - propor uma alternativa real, dizendo que outra natureza poderia ser normativa para nós. Seu procedimento é puramente ofensivo: denunciar o argueiro no olho do outro para não ter de pensar na trave que está em seu próprio olho.
 
Porém, o problema da tese do Dr. Brink é mais grave que isso. Há uma arbitrariedade dogmática até em sua definição do que é arbitrário e do que não é. Para ele, uma pessoa é arbitrária se não se submete a uma lei superior. Mas a lei também pode ser considerada arbitrária se não houver uma pessoa com autoridade para estabelecê-la. Talvez isso possa ser considerado uma versão do velho paradoxo do ovo e da galinha. Estamos de volta à questão: o fundamento último da realidade é pessoal ou impessoal? O que me espanta não é que Brink se comprometa com a segunda opção, e sim que o faça sem sequer perceber a existência de duas opções, e não veja que toda a sua argumentação apenas pressupõe dogmaticamente a validade da opção que fez. Frame está certo quando diz que o incrédulo é cego para a escolha fundamental que faz ao recusar a personalidade.
 
Porém, não considero que o paradoxo seja de todo insolúvel nesse caso. Tenho tentado mostrar que o pressuposto de Brink é bastante problemático mesmo à parte de um compromisso absoluto com o cristianismo. Lewis expressou bem o problema, em Cristianismo puro e simples, quando, depois de gastar alguns capítulos defendendo a objetividade da lei moral, afirmou:
 
"Tudo o que alcancei é um Algo que está dirigindo o universo, e que aparece em mim como uma lei que me incita a fazer o que é correto e faz com que eu me sinta responsável e desconfortável quando faço o que é errado. Penso que temos de assumir que esse Algo é mais semelhante a uma mente que a qualquer outra coisa que conhecemos - pois, afinal, a única outra coisa que conhecemos é matéria, e é difícil imaginar um punhado de matéria dando instruções."
 
Não é difícil ver aqui a influência da matriz filosófica idealista de Lewis, não só em sua linguagem, mas também no próprio conteúdo de suas ideias. Ele acrescenta, por exemplo: "Não pense que estou indo mais rápido do que realmente estou. [...] é claro que esse Algo não precisa ser muito semelhante a uma mente, menos ainda a uma pessoa." Creio que essa hesitação em atribuir a objetividade moral a uma pessoa revela a influência do monismo semi-hegeliano defendido por filósofos como T. H. Green e F. H. Bradley, a que Lewis aderiu logo após abandonar o ateísmo, muito embora, ainda antes de se tornar cristão, ele tenha abandonado esse monismo impessoal em troca de um idealismo pessoal, à maneira de Berkeley, justamente por crer que o primeiro só trazia desvantagens em termos de clareza conceitual. Tudo isso é narrado em Surpreendido pela alegria. Lewis é um filósofo cauteloso o suficiente para evitar o salto lógico de tomar como certo um conceito que ainda não defendeu com argumentos. Mas vejo como ponto negativo o fato de ele não ter argumentado em favor da personalidade nesse ponto. De qualquer modo, a despeito da informalidade, creio que ele enunciou um argumento válido: a objetividade da lei moral não é compatível com o materialismo. Frame foi adiante com esse argumento, desenvolvendo-o no seguinte trecho de seu livro Apologética para a glória de Deus (os destaques são dele):
 
"[...] de onde vem a autoridade do princípio moral absoluto? [...] por que deveríamos prestar-lhe o respeito que de fato prestamos? Em última instância, somente dois tipos de resposta são possíveis: a fonte da autoridade moral absoluta é pessoal ou impessoal. Considere em primeiro lugar a última possibilidade. Isso significaria a existência de alguma estrutura impessoal ou lei no universo que coloca e requer justa fidelidade a seus preceitos éticos. Entretanto, que espécie de ser impessoal poderia fazer isso? [...] O que poderíamos aprender, [em termos] de significância ética, de colisões de partículas subatômicas totalmente ao acaso? [...] como é que uma estrutura impessoal poderia criar uma obrigação? [...] Ou: em que base uma estrutura impessoal demanda lealdade ou obediência? [...] De onde, então, vem tal dever? O que há, aí fora, capaz de impor uma obrigação absoluta sobre os seres humanos? Para responder a isso, temos de deixar o ambiente dos princípios impessoais e voltar ao ambiente das pessoas. Obrigações e lealdades brotam no contexto de relacionamentos pessoais. Em termos da teologia reformada, podemos colocar do seguinte modo: obrigações, lealdades - e, portanto, moralidade - são de caráter pactual."
 
A ideia de uma obrigação moral à parte de relações pessoais é absolutamente sem sentido e, ao menos em algum nível, todos sabemos disso. Todo dever é um dever em relação a alguém. A palavra-chave, oportunamente usada por Frame, é "lealdade". Mesmo a lealdade a uma causa ou instituição (igreja, partido, país) é, em última análise, lealdade às pessoas ligadas a essa causa ou instituição. Nosso dever é o direito de alguém em relação a nós. Não faz sentido falar em lealdade a seres não-pessoais, e tampouco em direitos deles sobre nós. Se não quero destruir um objeto que pertenceu a meu bisavô e que lhe era caro, é por lealdade ao meu bisavô (ainda que ele não mais exista), não ao objeto. Se não posso partir a cabeça de meu vizinho com um cabo de vassoura, é porque o vizinho tem direito à integridade de seu crânio, não porque o cabo de vassoura tenha o direito de não ficar sujo de sangue. A objetividade da lei moral implica a autoridade de um Legislador pessoal, e implica também a natureza pessoal da realidade última. Brink é inconsequente, na medida em que não extrai as devidas conclusões de seu compromisso com a objetividade da ética. Ele não percebe que não há deveres à parte de relações pessoais.

Um comentário:

Gustvo disse...

André,

Ajude-me a refutar a argumentação de que a moralidade que temos foi convencionada em tentativas e erros ao longo dos milênios. Assim, dizem, por exemplo, que matar o próximo é errado por causa da inexorável vingança vindoura da parte/família agredida. Tal fato foi percebido como prejudicial, então, matar o próximo passou a ser errado. Como refutar tal alegação ateísta? Se puder responder, agradeço imensamente.

Abraços.

mendonça.gustavo@yahoo.com.br