3 de março de 2007

Idéias de um amador eminente

"Eu creio no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia ordenadora do que existe, não em um Deus que se preocupa com os destinos e ações dos seres humanos."

Como eu disse no texto anterior, consegui com este blog várias coisas que estavam nos meus objetivos, bem como algumas que eu não esperava de modo algum. Dentro desta última categoria está um gravíssimo conflito de consciência. Hoje pretendo resolver isso. O problema é simples: eu sou um físico que tem um blog com oito posts já publicados, e nenhum deles trata sequer indiretamente de alguma coisa relacionada à física. Um dos motivos disso reside nos meus interesses publicitários. Estou ciente de que muitos dos meus leitores não têm, pelo menos na prática, qualquer interesse pelo assunto. Eles provavelmente o suportarão de vez em quando, mas certamente desapareceriam prontamente se eu começasse a falar muito sobre esse tema por aqui.

Isso não significa, é claro, que eu não possa abordar o assunto de maneira mais indireta, falando, por exemplo, sobre aspectos históricos, filosóficos, biográficos ou mesmo literários da coisa. E isso está mesmo mais de acordo com minhas inclinações antiespecialistas. Mas para filosofar a partir da física é necessário conhecer física. Ficção científica não me atrai tanto assim, por motivos que explicarei em outra ocasião. História da física é muito mais história do que física. Biografias de físicos são tão interessantes quanto qualquer biografia. E as idéias dos grandes físicos sobre temas alheios ao seu domínio de especialidade, como filosofia ou religião, são geralmente mais medíocres que as dos grandes filósofos e teólogos sobre física.

O motivo da minha crise de consciência está, portanto, explicado: me sinto mal por não achar tão interessante falar sobre o tema que mais estudei na vida. A fim de atenuar isso, optei por discorrer sobre uma questão que tem pelo menos a vantagem de uma possível utilidade pública: Albert Einstein, ou, mais especificamente, algumas coisas que passavam pela cabeça dele nos momentos em que não pensava em física. Mais especificamente ainda, notei que um número não desprezível de pessoas tem curiosidade de entender os pensamentos dele acerca de questões religiosas ou quaisquer outras. Não sei se entendo bem o motivo dessa curiosidade toda, mas é fato que ela é mesmo algo tão extraordinário quanto o próprio Einstein.

Farei abaixo um resumo breve e meramente informativo. Para quem quiser mais informações e souber ler em inglês, recomendo este site, que reúne muitas interessantes declarações de Einstein sobre temas teológicos e filosóficos. Aqui neste post nada mais farei que sintetizar informações e acrescentar alguns esclarecimentos. De minha parte, a despeito da incontestável genialidade de Einstein em questões de física teórica, considero que, em muitos casos, suas opiniões sobre assuntos que fogem à sua especialidade, assim como os argumentos com que as defende, são simplistas e pueris. Talvez num post futuro eu venha a explicar as razões pelas quais penso assim, o que agora foge ao meu objetivo. Só estou dizendo isso para esclarecer que não dedico um post a expor as concepções religiosas de Einstein por julgar que tenham um grande valor filosófico, mas tão somente pela contribuição que essas informações podem trazer à compreensão adequada dessa grande personalidade.

Talvez a mais famosa declaração de Einstein sobre sua orientação religiosa pessoal seja a que transcrevi no início do texto. Comecemos por aí, então. Como é o Deus de Spinoza? O velho racionalista judeu era um monista, isto é, concebia Deus como a essência universal de todas as coisas, contendo em si todos os atributos que as coisas criadas (ou emanadas) possuem, sem, no entanto, se confundir com qualquer uma delas, ou mesmo com a totalidade delas. Isso distingue o monismo tanto do materialismo (ateísta ou não) quanto do panteísmo, que define Deus simplesmente como o conjunto de tudo o que existe. Einstein parecia pelo menos parcialmente consciente dessa distinção, pois declarou expressamente que não era ateu e não gostava de ser chamado de panteísta. A quem quiser compreender melhor o teísmo de Baruch Spinoza, recomendo um texto muito bom do meu amigo André Luiz, o qual pode ser lido no seu blog, O Eu (procurem o post Spinoza e o transcendentalismo monista). Porém, devo advertir que tenho minhas dúvidas sobre até que ponto Einstein chegou a endossar a filosofia de Spinoza.

Mas essa não foi a posição de Einstein durante toda a vida. Ele só a atingiu depois de ter passado por uma adolescência de profundo fervor religioso convencional, do qual se desligou sob a influência de obras de divulgação científica. Disso resultou uma boa dose de ceticismo contra a autoridade, o qual se estendeu para muito além da questão religiosa. Finalmente, Einstein tomou consciência de que a meta de sua vida deveria ser o abandono daquilo que ele via como "meramente pessoal" (os desejos, esperanças e sensações), trocando tudo isso pelo Absoluto impessoal buscado por tantos ao longo da história. Ele passou a considerar, inclusive, que o valor de um homem pode ser medido por seu esforço em prol desse objetivo.

A crença em um Deus pessoal acabou sendo considerada por Einstein como um enorme mal. Para ele, tal conceito só serviu para proporcionar à humanidade medos e esperanças desnecessários e infundados, além de ser legitimadora da dominação eclesiástica e incompatível com o espírito científico (e, portanto, oposto ao progresso da ciência). Ele acreditava que a observação da regularidade da natureza tornava impossível a crença em um ser capaz de interferir sobrenaturalmente nos rumos do universo físico. E, de maneira geral, Einstein cria que a convicção religiosa é inerentemente intolerante. O dever cristão de amar os inimigos está acima da capacidade humana, e portanto a intolerância prática contra os que crêem diferentemente é inevitável. Segundo ele, a incapacidade de converter o adepto de outra religião leva ao ódio ou, no mínimo, a um sentimento orgulhoso de piedade.

Não havendo personalidade acima do universo, a questão do propósito para o qual as coisas existem deixa de fazer sentido. Uma divindade impessoal não pode ter desejos a satisfazer ou metas a cumprir ao fazer as coisas. É possível ao homem, porém, tanto individualmente quanto coletivamente, estabelecer metas para si mesmo visando à satisfação de determinados desejos, e só nesses termos a questão passa a ter algum significado relevante.

É bem conhecido o fato de que, em oposição à interpretação oferecida por Niels Bohr e Werner Heisenberg do formalismo matemático da então nascente mecânica quântica, Einstein defendeu o determinismo inescapável das leis da natureza (ou "causalidade irrestrita", como ele o chamava), admitindo, porém, que no estado de conhecimento de então isso era apenas uma questão de fé. Sendo inviolável o determinismo material, não cabia sequer a possibilidade de uma interferência divina na ordem natural. Por essa razão, e coerentemente com sua visão impessoal de Deus, Einstein não cria na eficácia das orações. Spinoza havia ido ainda mais longe, afirmando ser a liberdade um atributo que nem Deus possui, visto que, em virtude de sua perfeição, não pode deixar de se manifestar da forma como o faz. O determinismo, assim, não se restringe ao domínio dos seres materiais. Einstein, porém, não chegou a se decidir acerca da liberdade divina, embora se interessasse muito por essa questão filosófica.

O determinismo de Einstein também tinha suas implicações no terreno da moral. A convicção de que o homem não tem liberdade para determinar suas decisões constitui, segundo ele, uma barreira racional contra a tentação de odiar os outros ou a si mesmo pelos erros cometidos. A aceitação de tal idéia, porém, requer um grau de integridade moral e humildade acima do que possui a maioria dos seres humanos, e é essa a única razão, além da pura falta de maturidade intelectual, pela qual essa é uma doutrina tão impopular.

A religião de Einstein consistia num sentimento de reverência e humildade diante do Absoluto, cuja grandeza vai muito além da nossa capacidade de apreensão (racional ou não), mas cuja mera sombra, o mistério vislumbrado na harmonia e beleza do universo e suas leis, já é mais que suficiente para levar o homem sensível a quedar-se maravilhado. Não há nisso, porém, nenhum aspecto moral. Moralidade é uma construção inteiramente humana elaborada em interesse próprio, não havendo qualquer fundamento para a mesma acima do homem. O Absoluto é amoral e não tem nada a dizer sobre essa questão.

Em virtude do reconhecimento desse enorme mistério e da centralidade do mesmo em sua filosofia, Einstein se identificava com o agnosticismo, chegando a declarar que sua postura diante de Deus é idêntica à de um agnóstico. Porém, ele estava mais para um "religioso descrente", como ele mesmo se definiu, do que para um agnóstico típico. Sua admiração pelo racionalismo de Spinoza não se coaduna bem com o agnosticismo, que pende muito mais na direção do empirismo positivista, e suas declarações acerca do Absoluto vão muito além do que os agnósticos se julgam capacitados a falar sobre seu Incognoscível. E, do ponto de vista emocional e contemplativo, é provável que Einstein não tivesse os pais do agnosticismo moderno, Herbert Spencer e Thomas Huxley, em mais alta conta que os militantes ateístas. Digo isso porque, apesar de compartilhar tantas idéias com o ateísmo moderno, Einstein se enfurecia diante da mera sugestão de o estar apoiando. Para ele o ateu militante era tão irracional e fanático quanto o religioso fundamentalista e, tornando-se insensível à verdadeira compreensão da divindade por trás do universo e manifesta no mesmo, cometia o erro de, como se diz, jogar fora o bebê com a água do banho.

Einstein não via no ser humano qualquer componente imaterial, e portanto não acreditava na imortalidade da alma ou na sobrevivência de qualquer aspecto da personalidade à morte do corpo. Embora tenha dito que o caminho da religião convencional é fácil demais, considerava que a crença na imortalidade da alma se origina do medo ou do egoísmo, e que deve tornar muito tristes os que crêem nela. O crescimento de movimentos espiritualistas e teosóficos era visto por ele como "nada mais que um sintoma de fraqueza e confusão". Ele cria que todas as nossas experiências internas são apenas "reproduções e combinações de impressões sensoriais" e, mesmo muito depois de ter abandonado o positivismo, ainda considerava a idéia de uma alma incorpórea como "vazia e desprovida de significado" e que a existência de um "eu" é nada mais que pura ilusão gerada pelas nossas limitações cognitivas e de linguagem.

Einstein não compartilhava do desprezo de tantos judeus e livres-pensadores por Jesus. Apesar de acreditar que os evangelhos, assim como os livros dos profetas, contêm quantidades consideráveis de embelezamento poético e mítico, o grande físico cria firmemente na realidade histórica de Jesus e na incomparável grandeza de sua personalidade, que transparecia em cada um de seus ensinamentos. De maneira geral, aliás, ele acreditava que as conquistas intelectuais e práticas dos grandes cientistas e filósofos fizeram menos pela humanidade do que fizeram os grandes luminares, como Jesus, Buda ou Moisés, ao propor elevados ideais morais.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi André.

Dos vários textos que já escreveu esse foi o que menos gostei.

Em minha opinião, a visão de um importante cientista ou homem comum acerca de suas crenças religiosas tem muito do que já viveram e por isso são particulares.

É claro que essa visão afetou a forma como Einstein olhava o Universo, sendo por isso sua escolha pelo determinismo das leis físicas.

Abraço