Embora eu seja um dos sujeitos mais anti-socialistas que eu mesmo conheço, não tenho grandes simpatias pelo capitalismo, e menos ainda pelo moderno sistema de mega-corporações financeiras e industriais. Apesar disso, tenho um sério problema em comum com os grandes empresários e administradores: assim como para eles, para mim o tempo é curto demais, e há muita coisa pra fazer; é necessário, portanto, planejar rigorosamente as ações a fim de aproveitar todos os momentos possíveis. No meu caso, não se trata de ganhar dinheiro, e sim de algo muito específico: a obtenção de conhecimento, principalmente através da leitura. Quatro anos atrás notei que a quantidade de livros que eu tinha pra ler era muito grande (quinze, pra ser exato), e resolvi fazer uma lista pra não esquecer nenhum. Mantive-a atualizada desde então, removendo os livros que ia lendo e acrescentando os que iam despertando meu interesse. Atualmente a lista contém pouco mais de 250 títulos, o que constitui prova de que meu planejamento não tem sido muito bom.
Estou contando isso tudo apenas para justificar (inclusive para mim mesmo) o fato de ter demorado tanto para ler A divina comédia. Diante da oportunidade de ler um livro longamente esperado, é normal procurar lê-lo o mais rápido possível. Mas havendo centenas deles, o jeito é deixar muitos pra depois. O fato é que, felizmente, a vez de Dante chegou, e foi a minha primeira leitura do ano. Deixei passar algumas oportunidades de escrever sobre isso aqui, mas resolvi fazê-lo agora, antes que a impressão causada pela leitura se desvaneça. Mas acho bom esclarecer que meu desejo de comentar esse livro não provém de eu ter algo muito importante a dizer sobre ele; apenas acho injusto não dizer nada sobre uma obra tão valiosa. Farei, então, apenas alguns comentários breves e um pouco desconexos, visto que uma análise digna do livro comentado está seguramente acima da minha capacidade.
Lembro-me precisamente da primeira vez em que ouvi falar em A divina comédia: foi ainda na minha infância. Havia um artigo de uma ou duas páginas sobre ela numa velha enciclopédia de que eu gostava muito, e que meus pais têm em casa até hoje. Nunca cheguei a ler aquele artigo, pois na época eu me interessava quase exclusivamente por povos antigos e animais. Mas lembro-me de ter me detido um pouco para contemplar o esquema do universo desenhado naquela página: A Terra no centro, com os nove círculos do inferno no subterrâneo de um dos hemisférios, oposto ao qual erguia-se o monte do purgatório; em volta, as nove esferas celestes, fora das quais estava o trono de Deus. Não entendi quase nada daquilo; só me lembro de ter sentido uma profunda sensação de estranheza.
Foi apenas na oitava série, durante uma aula de história, que eu soube que o título daquele breve artigo era também o de um livro escrito por um medieval chamado Dante Alighieri, e que nele era relatada uma viagem fictícia do autor pelos três reinos do além. Desde então fiquei curioso para ler o livro, pois eu tinha curiosidade de saber qual era a concepção do inferno, do purgatório e do paraíso que as pessoas tinham na Idade Média. Com o passar dos anos, outras razões foram se acrescentando a essa, incluindo-se aí meus estudos sobre filosofia, teologia, história e ciências, que levaram inevitavelmente à ampliação do meu interesse pela cultura medieval em todos os seus aspectos. Enfim a leitura tornou-se inadiável, especialmente depois que meu amigo Fortes comprou um exemplar e gentilmente o ofereceu para que eu o lesse nessas curtas férias.
Devo começar elogiando a edição brasileira. A obra foi editada pela Itatiaia em parceria com a USP. Cristiano Martins (1912-1981) não apenas traduziu o poema como também escreveu milhares de notas explicativas, muitas das quais importantíssimas, e uma excelente narrativa de cerca de setenta páginas sobre a vida de Dante, descrevendo ainda o contexto cultural, social e político em que o poeta italiano viveu e escreveu. Como não falo italiano, e muito menos italiano do século XIV, não sei até que ponto a tradução foi fiel ao original. Mas admiro a competência de Cristiano Martins pelo simples fato de ele ter traduzido um épico de quase quinze mil versos mantendo o tempo todo a rima e o metro decassílabo, e em alguns trechos até mesmo o ritmo. Fiel ou não, é no mínimo uma belíssima tradução.
Conhecer algo sobre a vida de Dante também foi muito proveitoso. Além de seu talento para a poesia, descobri que ele possuía várias outras qualidades: foi soldado valente na juventude; homem de grande erudição, bem versado no trivium e no quadrivium; político sábio e honesto, embora isso não o tenha livrado de perseguições injustas movidas por seus inimigos; e, o mais importante, um homem sinceramente interessado no bem e na virtude. Se eu fosse um progressista, diria que ele foi um homem à frente de seu tempo, inclusive por ter defendido que a Igreja não deveria se preocupar em ter nas mãos o poder temporal e que estava aí a causa da decadência e corrupção da mesma. Mas posso igualmente dizer que nisso Dante era um cristão primitivo, e não um evoluído. Não deixa de ser interessante, aliás, notar que suas concepções políticas eram monárquicas e inspiradas justamente no Império Romano, em forte oposição ao sistema de pequenas repúblicas independentes que prevalecia na Península Itálica do fim da Idade Média.
Mas não pretendo falar sobre o autor, e sim sobre a obra. Ao iniciar a leitura, aquilo que inicialmente me motivou a ler o livro - os retratos dos castigos no inferno e no purgatório e da beatitude dos eleitos no paraíso - rapidamente perdeu toda a sua importância. Embora a criatividade de Dante para inventar tormentos seja para muitos o principal atrativo do livro, parece-me agora que o valor do poema não reside de modo algum nisso. Embora a imaginação do autor seja prodigiosa, inclusive nesse aspecto, o livro tem tantos outros méritos, e tão mais dignos, que a mera descrição do ambiente acaba totalmente eclipsada por eles. Na verdade, percebo hoje que não poderia ser de outra forma. Qualquer tentativa de extrair dos aspectos descritivos da narrativa uma concepção literal sobre a "estrutura interna" do além me parece agora inteiramente ingênua. A paisagem (ou seu equivalente infernal) não está lá para que a tomemos como descrição do que as pessoas encontrarão depois da morte, e sim como pano de fundo simbólico para a exposição de uma mensagem muito profunda e ampla que constitui, essa sim, o cerne da obra. Quem ler o livro encontrará lições de filosofia, teologia e moral e reflexões sobre arte e política, bem como inúmeras referências à vida pessoal do autor, especialmente quanto a seu amor por Beatriz e seu sofrimento no exílio imposto pelo governo florentino. A narrativa em si é apenas o substrato necessário à exposição de tudo isso. Trazer as descrições físicas ao primeiro plano é deixar de lado quase todo o valor da obra.
Através de toda a obra é possível encontrar uma elevada consciência dos problemas que afligiam a sociedade daquele tempo, bem como das deficiências morais do ser humano, que estão por trás de todos eles. Transparece também o profundo respeito pelo legado da antiga civilização greco-romana, bem como pelos sábios da vizinha civilização muçulmana. A valorização do conhecimento pela sociedade medieval, e particularmente pelo próprio Dante, pode ser vista no fato de que, em sua jornada pelo paraíso, o autor passa quase o tempo todo ouvindo das almas bem-aventuradas dissertações sobre diversos temas teológicos, históricos e, sobretudo, filosóficos. E quem imagina que na Idade Média predominava um servilismo acrítico diante do poder da Igreja se surpreenderá com a quantidade de ex-papas com que Dante se depara em sua jornada pelo inferno.
Dificilmente haverá melhor antídoto que A divina comédia para curar quem ainda acredita que o fim da Idade Média foi um período de ignorância, barbárie e cegueira. Dante seguramente não foi, nem de longe, o mais sábio dentre os medievais. A sabedoria que transparece em seu poema não é propriedade exclusiva sua, e sim a expressão dos valores e conflitos de toda uma civilização, a hoje extinta civilização cristã. A despeito de todas as diferenças de cosmovisão que possa haver entre um poeta católico do século XIV e um físico protestante do século XXI, não posso deixar de reconhecer e apreciar esse traço comum.
Resta falar, é claro, sobre o aspecto especificamente poético da obra. Já é impressionante que alguém tenha inserido magistralmente numa interessante narrativa suas reflexões pessoais acerca de alguns dos grandes homens da história e suas ações, seu julgamento acerca dos rumos da própria nação, suas lembranças da cidade natal, suas opiniões sobre a arte, a filosofia de Aristóteles, as ciências naturais e a teologia escolástica, bem como inúmeras referências à mitologia e às narrativas bíblicas, e coroando tudo isso com declarações de amor à mulher que não pôde ouvi-las em vida. Mas que ele tenha feito tudo isso em verso, com rima e métrica, eis o que considero verdadeiramente assombroso. É claro que meu juízo pode ter sido indevidamente influenciado pelo fato de eu ter lido apenas uma tradução; mas não vejo como a tradução de um poema possa ser superior ao próprio poema, de modo que, se houve distorção, provavelmente não terá sido para melhor.
Autor de uma das melhores análises já escritas sobre Dante, T. S. Eliot afirmou que ele foi um poeta superior a Milton, e no mínimo tão grande quanto Shakespeare. Quanto à primeira parte, não sei; Milton é outro que está na minha lista já há muito tempo. Mas Shakespeare de fato não me impressionou tanto quanto Alighieri. Diante disso, devo reconhecer que a afirmação de Eliot não me parece nada exagerada. Não vejo maneira melhor de expressar minha admiração pelo grande poeta italiano do que dizer que, de agora em diante, o adjetivo "dantesco" tem para mim um sentido muito diferente do que tinha até trinta dias atrás.
Estou contando isso tudo apenas para justificar (inclusive para mim mesmo) o fato de ter demorado tanto para ler A divina comédia. Diante da oportunidade de ler um livro longamente esperado, é normal procurar lê-lo o mais rápido possível. Mas havendo centenas deles, o jeito é deixar muitos pra depois. O fato é que, felizmente, a vez de Dante chegou, e foi a minha primeira leitura do ano. Deixei passar algumas oportunidades de escrever sobre isso aqui, mas resolvi fazê-lo agora, antes que a impressão causada pela leitura se desvaneça. Mas acho bom esclarecer que meu desejo de comentar esse livro não provém de eu ter algo muito importante a dizer sobre ele; apenas acho injusto não dizer nada sobre uma obra tão valiosa. Farei, então, apenas alguns comentários breves e um pouco desconexos, visto que uma análise digna do livro comentado está seguramente acima da minha capacidade.
Lembro-me precisamente da primeira vez em que ouvi falar em A divina comédia: foi ainda na minha infância. Havia um artigo de uma ou duas páginas sobre ela numa velha enciclopédia de que eu gostava muito, e que meus pais têm em casa até hoje. Nunca cheguei a ler aquele artigo, pois na época eu me interessava quase exclusivamente por povos antigos e animais. Mas lembro-me de ter me detido um pouco para contemplar o esquema do universo desenhado naquela página: A Terra no centro, com os nove círculos do inferno no subterrâneo de um dos hemisférios, oposto ao qual erguia-se o monte do purgatório; em volta, as nove esferas celestes, fora das quais estava o trono de Deus. Não entendi quase nada daquilo; só me lembro de ter sentido uma profunda sensação de estranheza.
Foi apenas na oitava série, durante uma aula de história, que eu soube que o título daquele breve artigo era também o de um livro escrito por um medieval chamado Dante Alighieri, e que nele era relatada uma viagem fictícia do autor pelos três reinos do além. Desde então fiquei curioso para ler o livro, pois eu tinha curiosidade de saber qual era a concepção do inferno, do purgatório e do paraíso que as pessoas tinham na Idade Média. Com o passar dos anos, outras razões foram se acrescentando a essa, incluindo-se aí meus estudos sobre filosofia, teologia, história e ciências, que levaram inevitavelmente à ampliação do meu interesse pela cultura medieval em todos os seus aspectos. Enfim a leitura tornou-se inadiável, especialmente depois que meu amigo Fortes comprou um exemplar e gentilmente o ofereceu para que eu o lesse nessas curtas férias.
Devo começar elogiando a edição brasileira. A obra foi editada pela Itatiaia em parceria com a USP. Cristiano Martins (1912-1981) não apenas traduziu o poema como também escreveu milhares de notas explicativas, muitas das quais importantíssimas, e uma excelente narrativa de cerca de setenta páginas sobre a vida de Dante, descrevendo ainda o contexto cultural, social e político em que o poeta italiano viveu e escreveu. Como não falo italiano, e muito menos italiano do século XIV, não sei até que ponto a tradução foi fiel ao original. Mas admiro a competência de Cristiano Martins pelo simples fato de ele ter traduzido um épico de quase quinze mil versos mantendo o tempo todo a rima e o metro decassílabo, e em alguns trechos até mesmo o ritmo. Fiel ou não, é no mínimo uma belíssima tradução.
Conhecer algo sobre a vida de Dante também foi muito proveitoso. Além de seu talento para a poesia, descobri que ele possuía várias outras qualidades: foi soldado valente na juventude; homem de grande erudição, bem versado no trivium e no quadrivium; político sábio e honesto, embora isso não o tenha livrado de perseguições injustas movidas por seus inimigos; e, o mais importante, um homem sinceramente interessado no bem e na virtude. Se eu fosse um progressista, diria que ele foi um homem à frente de seu tempo, inclusive por ter defendido que a Igreja não deveria se preocupar em ter nas mãos o poder temporal e que estava aí a causa da decadência e corrupção da mesma. Mas posso igualmente dizer que nisso Dante era um cristão primitivo, e não um evoluído. Não deixa de ser interessante, aliás, notar que suas concepções políticas eram monárquicas e inspiradas justamente no Império Romano, em forte oposição ao sistema de pequenas repúblicas independentes que prevalecia na Península Itálica do fim da Idade Média.
Mas não pretendo falar sobre o autor, e sim sobre a obra. Ao iniciar a leitura, aquilo que inicialmente me motivou a ler o livro - os retratos dos castigos no inferno e no purgatório e da beatitude dos eleitos no paraíso - rapidamente perdeu toda a sua importância. Embora a criatividade de Dante para inventar tormentos seja para muitos o principal atrativo do livro, parece-me agora que o valor do poema não reside de modo algum nisso. Embora a imaginação do autor seja prodigiosa, inclusive nesse aspecto, o livro tem tantos outros méritos, e tão mais dignos, que a mera descrição do ambiente acaba totalmente eclipsada por eles. Na verdade, percebo hoje que não poderia ser de outra forma. Qualquer tentativa de extrair dos aspectos descritivos da narrativa uma concepção literal sobre a "estrutura interna" do além me parece agora inteiramente ingênua. A paisagem (ou seu equivalente infernal) não está lá para que a tomemos como descrição do que as pessoas encontrarão depois da morte, e sim como pano de fundo simbólico para a exposição de uma mensagem muito profunda e ampla que constitui, essa sim, o cerne da obra. Quem ler o livro encontrará lições de filosofia, teologia e moral e reflexões sobre arte e política, bem como inúmeras referências à vida pessoal do autor, especialmente quanto a seu amor por Beatriz e seu sofrimento no exílio imposto pelo governo florentino. A narrativa em si é apenas o substrato necessário à exposição de tudo isso. Trazer as descrições físicas ao primeiro plano é deixar de lado quase todo o valor da obra.
Através de toda a obra é possível encontrar uma elevada consciência dos problemas que afligiam a sociedade daquele tempo, bem como das deficiências morais do ser humano, que estão por trás de todos eles. Transparece também o profundo respeito pelo legado da antiga civilização greco-romana, bem como pelos sábios da vizinha civilização muçulmana. A valorização do conhecimento pela sociedade medieval, e particularmente pelo próprio Dante, pode ser vista no fato de que, em sua jornada pelo paraíso, o autor passa quase o tempo todo ouvindo das almas bem-aventuradas dissertações sobre diversos temas teológicos, históricos e, sobretudo, filosóficos. E quem imagina que na Idade Média predominava um servilismo acrítico diante do poder da Igreja se surpreenderá com a quantidade de ex-papas com que Dante se depara em sua jornada pelo inferno.
Dificilmente haverá melhor antídoto que A divina comédia para curar quem ainda acredita que o fim da Idade Média foi um período de ignorância, barbárie e cegueira. Dante seguramente não foi, nem de longe, o mais sábio dentre os medievais. A sabedoria que transparece em seu poema não é propriedade exclusiva sua, e sim a expressão dos valores e conflitos de toda uma civilização, a hoje extinta civilização cristã. A despeito de todas as diferenças de cosmovisão que possa haver entre um poeta católico do século XIV e um físico protestante do século XXI, não posso deixar de reconhecer e apreciar esse traço comum.
Resta falar, é claro, sobre o aspecto especificamente poético da obra. Já é impressionante que alguém tenha inserido magistralmente numa interessante narrativa suas reflexões pessoais acerca de alguns dos grandes homens da história e suas ações, seu julgamento acerca dos rumos da própria nação, suas lembranças da cidade natal, suas opiniões sobre a arte, a filosofia de Aristóteles, as ciências naturais e a teologia escolástica, bem como inúmeras referências à mitologia e às narrativas bíblicas, e coroando tudo isso com declarações de amor à mulher que não pôde ouvi-las em vida. Mas que ele tenha feito tudo isso em verso, com rima e métrica, eis o que considero verdadeiramente assombroso. É claro que meu juízo pode ter sido indevidamente influenciado pelo fato de eu ter lido apenas uma tradução; mas não vejo como a tradução de um poema possa ser superior ao próprio poema, de modo que, se houve distorção, provavelmente não terá sido para melhor.
Autor de uma das melhores análises já escritas sobre Dante, T. S. Eliot afirmou que ele foi um poeta superior a Milton, e no mínimo tão grande quanto Shakespeare. Quanto à primeira parte, não sei; Milton é outro que está na minha lista já há muito tempo. Mas Shakespeare de fato não me impressionou tanto quanto Alighieri. Diante disso, devo reconhecer que a afirmação de Eliot não me parece nada exagerada. Não vejo maneira melhor de expressar minha admiração pelo grande poeta italiano do que dizer que, de agora em diante, o adjetivo "dantesco" tem para mim um sentido muito diferente do que tinha até trinta dias atrás.
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