11 de janeiro de 2010

Briguinha na areia

Há um ano publiquei um texto, Areias invasoras, sobre o que me pareciam ser os pontos positivos e negativos do livro As raízes do problema e da pessoa, o primeiro volume da série Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, do historiador americano John Paul Meier. Recebi dois comentários sobre esse texto, e hoje pretendo apenas falar um pouco sobre um deles, o segundo, recebido em 3 de julho. Achei-o muito enigmático à primeira vista. Na verdade, não chega a ser um comentário sobre meu texto, de modo algum. Traz dois subtítulos, A gnose moderna e A oposição entre a gnose moderna e o cristianismo, e no final há um nome e um link, presumivelmente para a fonte de onde os trechos foram retirados. O link, porém, não funciona. O nome é de Nivaldo Cordeiro, conhecido articulista católico e conservador. (Pelo menos é assim que o conheço.) Creio já ter lido quase uma centena de seus textos, e boa parte deles me pareceu no mínimo interessante. Mas até hoje não ficou claro para mim se seu nome estava ali a título de assinatura ou de mera referência bibliográfica, isto é, se foi ele mesmo quem transcreveu em meu blog os trechos de um de seus artigos ou se outra pessoa fez isso. Prefiro crer na segunda opção, pois ela proporciona uma explicação plenamente satisfatória para o nome ali transcrito, e eu, como simpatizante da navalha de Ockham, não vejo razão para postular uma segunda função para esse nome. Além disso, há apenas um Nivaldo Cordeiro na internet, e milhões de outras pessoas que não o são, de modo que é estatisticamente improvável que logo ele tenha aparecido por aqui. De qualquer forma, o tom do comentário é bastante impessoal. Não há saudações nem qualquer referência ao conteúdo de meu texto. Há apenas a transcrição do trecho, o nome do autor e o link. E, além de tudo isso, um comentário estritamente idêntico foi postado num outro texto meu, Briga de família, apenas um minuto depois do primeiro. Tal identidade de comentários é bem-vinda, pois me dispensa de responder duas vezes. Mas o fato em si demonstra que a publicação deles foi premeditada. Algúem lera com antecedência os dois textos e decidira que ambos mereciam essas idênticas palavras, e isso mostra que o elemento que chamou a atenção dessa pessoa é exatamente o mesmo em ambos os casos.

Agora vamos ao que interessa, isto é, passemos a essas palavras propriamente ditas. É fácil notar qual é o nexo entre as duas postagens que saltou aos olhos do autor do comentário: no texto
Briga de família, de novembro de 2007, expus algumas de minhas impressões sobre certos aspectos do catolicismo. (Não devo deixar de dizer, de passagem, que minhas impressões mudaram consideravelmente desde então, e isso está entre os temas com que pretendo lidar em minhas futuras retratações.) No texto Areias invasoras fiz um breve e parentético comentário sobre essa mesma doutrina. Não pode ser outra a razão que motivou o duplo comentário do Anônimo (referir-me-ei a esse anônimo específico dessa forma, de agora em diante), que evidentemente é católico e pretendia atacar minha posição protestante, muito embora, de modo geral, no primeiro texto eu tenha publicado considerações mais favoráveis que contrárias ao catolicismo. Quem quiser ler o comentário completo do Anônimo pode fazê-lo acessando um dos links disponibilizados ao longo deste post. Descreverei e comentarei aqui seus aspectos essenciais.

O comentário começa falando do gnosticismo, heresia antiga que, sustentada por Pelágio e derrotada por Agostinho, afinal triunfou na modernidade, tendo se manifestado em
"diferentes teorias e movimentos religiosos e políticos". Ele menciona como exemplos os pensamentos de Smith, Ricardo, Kant, Hegel, Marx e Nietzsche. Afirma ainda que a ideia central do gnosticismo é "a de que o homem pode ser aperfeiçoado nesta vida e buscar a salvação ainda nesse mundo", e o denominador comum a toda a gnose moderna é "declarar a imanência da salvação e reduzir a psique do homem à relação binária busca do prazer/fuga da dor". Tudo isso está sob o primeiro subtítulo, enquanto o segundo declara o seguinte:

"O inimigo dessa gente é um só, a Igreja Católica e o Cristianismo ele mesmo. Na verdade as denominações protestantes são elas próprias uma plena manifestação do gnosticismo usando a roupagem evangélica. Sei que muitos dos seguidores dessas religiões ditas cristãs talvez nem tenham a noção do que se passou, porque não é tarefa fácil encontrar livros de história e menos ainda livros de filosofia política que relatem fielmente o que aconteceu. A decretação de morte de Deus por Nietzsche é o coroamento da modernidade e a síntese de tudo, o corolário da Reforma."


Essa teoria não me é desconhecida; se não por outros motivos, ao menos porque conheço algo da obra de um grande defensor dela, Eric Voegelin, a quem Nivaldo Cordeiro dedica uma admiração intelectual que não é segredo para ninguém. Eu gostaria de responder aos argumentos levantados em favor dessa teoria, mas estou impossibilitado disso simplesmente por não ter encontrado nenhum. Não há nada no comentário que indique a razão pela qual a morte de Deus é o corolário da Reforma, nem são apresentadas provas de que o protestantismo prega a imanência da salvação e reduz a psique do homem à busca do prazer e à fuga da dor. Todas essas proposições me parecem mero resultado de uma tremenda ignorância sobre a doutrina protestante, como a que estou habituado a encontrar mesmo entre os católicos mais cultos. Além disso, não posso sequer discutir apropriadamente a proposição de que
"o homem pode ser aperfeiçoado nesta vida e buscar a salvação ainda nesse mundo" por ser ela flagrantemente imprecisa. Talvez se refira à doutrina do progresso, ao sucessivo aperfeiçoamento da natureza humana levado a cabo pelo poder do próprio homem, de modo a atingir o paraíso terrestre no futuro. Tal acusação, que cabe perfeitamente às doutrinas liberais e socialistas em geral, não se aplicam de modo algum à doutrina dos reformadores, e muita ignorância é necessária para fazer tal associação. E, se era outra a acusação que se tinha em mente, fico aguardando que o Anônimo explique o que quis dizer. Seja como for, não convém que eu me estenda em considerações sobre ideias que não foram bem expostas, e muito menos bem defendidas. Ou, pior ainda, não foram defendidas de modo algum.

Mas nossa história não acaba por aqui. Não podendo crer que o sempre mui argumentativo Nivaldo Cordeiro tenha passado tão rapidamente por um ponto tão importante, fui procurar na internet o texto de onde foi retirado o trecho que o Anônimo publicou aqui. E encontrei o tal texto. Trata-se de um artigo intitulado
A gnose petista, de 18 de novembro de 2007. O objetivo do artigo é expor a origem do triunfo do PT no cenário político e cultural nacional, tanto na história recente do Brasil quanto nas raízes profundas de nossa civilização. O autor identifica os antepassados remotos do petismo em Epicuro e seus discípulos, e vem gradualmente se aproximando até o presente. É em algum momento desse processo que surge o trecho que veio a aparecer em meu blog. Com relação ao protestantismo, porém, há somente esse comentário, feito de passagem. Nenhuma tentativa é feita para aprofundar ou justificar as acusações ali contidas. Talvez Nivaldo Cordeiro esteja correto em dizer que não é fácil encontrar livros que relatem o que ocorreu nos tempos da Reforma, mas é ainda mais difícil encontrar argumentos sobre isso no artigo em questão.

O autor tem a seu favor, naturalmente, o fato de que o assunto do artigo não era esse, e a questão não podia mesmo ser discutida em profundidade. Isso de modo algum torna suas declarações menos absurdas, mas ao menos justifica a brevidade nada argumentativa com que foram apresentadas. Além disso, talvez suas opiniões sobre o protestantismo tenham sido melhor expostas e defendidas em algum outro lugar, muito embora eu tenha procurado em vão por algo do tipo em seu site. Mas mesmo que exista essa exposição, tal análise fugiria ao meu propósito imediato, que é apenas o de dar uma resposta ao Anônimo que comentou em meu blog. Tendo, pois, descoberto que o artigo original completo nada pode acrescentar ao trecho aqui transcrito, posso agora me voltar para este último e dar-lhe uma resposta com rigor argumentativo compatível com o encontrado no desafio ali proposto. Assim sendo, à afirmação de que
"as denominações protestantes são elas próprias uma plena manifestação do gnosticismo usando a roupagem evangélica", minha resposta é: são nada!

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