29 de julho de 2016

Profecia e divindade - parte 3

1.4. Sobre o vídeo

Diante do exposto na primeira e segunda partes da presente série, já posso dar início a alguns comentários sobre o conteúdo específico do vídeo, quanto aos aspectos que se relacionam com essas questões.

1.4.1. O Consolador

O primeiro é sobre a identidade e o papel do Consolador, que o preletor muçulmano cita nos segundos finais. Infelizmente o vídeo foi cortado nesse ponto, de modo que o argumento não termina. Mas sei que o propósito da citação é reforçar a convicção amplamente difundida entre os estudiosos muçulmanos de que Jesus predisse a vinda de Maomé, que seria o Consolador descrito por ele. Os trechos citados são os versículos 7 e, depois, 12 a 15 de João 16. No texto bíblico, Jesus diz aos discípulos: "Todavia digo-vos a verdade, que vos convém que eu vá; porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, quando eu for, vo-lo enviarei. [...] Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora. Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso vos disse que há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar."

Antes de tudo, deve ser observado é que essa não é a primeira menção ao Consolador no Evangelho segundo João. O trecho citado pelo preletor é parte de uma longa conversa de Jesus com os discípulos, que João relata extensamente e que começa ainda no capítulo 14. A primeira menção está em 14.16-17: "E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre; o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós." O contexto da conversa é a partida de Jesus, que afirma que em breve se ausentará e não estará mais com os discípulos. Lendo a conversa toda, fica claro que ele se refere à sua morte e posterior ascensão aos céus. Então Jesus promete que enviará outro para estar presente com os discípulos; o trecho que acabo de citar mostra que esse Consolador já está, de algum modo, presente; que o mundo, ou seja, aqueles que rejeitam Cristo, não podem vê-lo; que esse Consolador, tendo sido enviado, estará "nos" discípulos; e que ele ficará conosco para sempre. É fácil ver que Maomé não pode preencher nenhum desses requisitos sem um considerável malabarismo interpretativo. Ampliando um pouco esse princípio, eu diria que Jesus não parece estar falando de um ser humano, e muito menos de um que só surgiria no futuro distante. Enfatizo isso porque, além de Maomé, muitos líderes religiosos ao longo da história reivindicaram pessoalmente o papel de cumpridores dessa profecia, ou foram assim identificados por seus seguidores.

Em 14.26 há outra menção ao Consolador, na qual Jesus diz: "Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito". O elemento digno de nota aqui é que Jesus afirma que o Consolador é o Espírito Santo, expressão muito frequente na Bíblia, desde o Antigo Testamento. O Espírito Santo é visto tradicionalmente como a terceira pessoa da divina Trindade. Eu também creio nisso, mas não pretendo aqui repassar toda a evidência bíblica a respeito. Basta notar que, ao identificar o Consolador com o Espírito Santo, Jesus conectou esse termo relativamente desconhecido com um ser sobre o qual as Escrituras se referem com muita frequência, o que nos dá meios muito mais sólidos de determinar sua natureza e identidade.


Com isso fica fácil perceber que a Bíblia é muito clara ao relatar que o envio do Consolador que Jesus prometeu aqui se cumpriu ainda naquele tempo. Mais precisamente, esse cumprimento é relatado no capítulo 2 do livro dos Atos dos Apóstolos. Narra-se ali que, poucas semanas após a morte e ressurreição de Jesus, estando os discípulos reunidos em Jerusalém, "de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem" (Atos 2.2-4). (Observo de passagem que a ocorrência sobrenatural de um grande número de idiomas aponta para a abrangência universal da fé cristã, simbolizando a superação do âmbito nacionalista da religião judaica, conforme discutido na seção 1.2.) Esse acontecimento causa alvoroço entre a multidão presente, mas alguns zombam dos discípulos, dizendo que estão embriagados. Pedro toma então a palavra e discursa, começando assim (2.14-17): "Homens judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto notório, e escutai as minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel: 'E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne'". A partir de então, o Espírito Santo é dado como presente no mundo. Darei apenas um exemplo entre muitos. Ainda no livro de Atos, capítulo 5, um cristão chamado Ananias é repreendido por Pedro por ter mentido, nos seguintes termos: "Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo [...]? Não mentiste aos homens, mas a Deus." Por aí fica muito claro não só que o Espírito Santo estava presente, mas também que ele é divino e não humano. Portanto, a própria Bíblia interpreta o significado da vinda do Consolador e sua identidade, e o faz de um modo que diverge muito da abordagem islâmica.

1.4.2. Confiabilidade da Bíblia

O segundo ponto do vídeo que eu gostaria de comentar é que o preletor muçulmano cita muitos trechos da Bíblia com o propósito geral de mostrar que ela apoia pontos de vista tradicionalmente aceitos entre muçulmanos, mas contrariados pelas diversas tradições cristãs - e, portanto, que a doutrina de Jesus era a doutrina islâmica, e quem quiser ser um bom seguidor de Jesus deve se converter ao islã. Adiante discutirei com mais detalhes as interpretações bíblicas específicas do preletor. Antes, porém, quero chamar a atenção para um aspecto mais geral no qual o conteúdo do vídeo me surpreendeu: o preletor em momento algum coloca em dúvida a autoridade divina e a autenticidade da Bíblia.


Digo que isso me surpreendeu porque esse não é o ponto de vista dominante entre os estudiosos muçulmanos, e muito menos entre os muçulmanos leigos. É verdade que o Alcorão menciona explicitamente que Deus revelou livros sagrados a Jesus e aos profetas judeus anteriores, e que esses livros sagrados são distintos do Alcorão. Inclusive, as traduções do Alcorão geralmente traduzem essas referências como "Torah" e "Evangelho", como em 3.3-4: "Ele fez descer sobre ti o Livro, com a verdade para confirmar o que havia antes dele. E fizera descer a Torah e o Evangelho, antes, como orientação para a humanidade". Contudo, não fica claro o que exatamente se deve entender por essas referências. Por exemplo, a Torah é o nome que os judeus dão aos cinco livros de Moisés; às vezes, por metonímia, essa palavra é usada para descrever todo o Antigo Testamento. No Novo Testamento, a palavra "evangelho" designa tanto a mensagem cristã quanto cada um dos quatro livros canônicos que relatam a vida, morte e ressurreição de Jesus. Não fica claro se o Alcorão usa essas palavras com algum desses sentidos ou com algum outro. Até onde sei, a convicção dominante entre os estudiosos muçulmanos é que as mensagens de Jesus e demais profetas judeus foram distorcidas ao longo do tempo, de modo que na Bíblia só restam fragmentos dos ensinamentos originais. Por isso, eles geralmente leem a Bíblia simplesmente descartando tudo o que lhes parece conflitar com o islã, exatamente como tantos estudiosos ocidentais modernos fazem - com a diferença de que estes não recorrem ao Alcorão, e sim a outras fontes de autoridade. Naturalmente, dizer, por exemplo, que Jesus não pode ter dito ou feito isto ou aquilo porque essa ideia conflita com o Alcorão (ou com a razão, ou com determinada concepção de ciência, ou com a filosofia de fulano ou beltrano) é um argumento válido para convencer quem já crê de antemão nessa outra fonte de autoridade, mas constituiria argumento circular se usado contra a autoridade e fidelidade dos relatos bíblicos enquanto tais.

A abordagem do preletor do vídeo escapa dessa dificuldade, mas paga um preço por isso: ao citar textos bíblicos como prova de que a Bíblia ensina basicamente o mesmo que o Alcorão, ele implicitamente endossa a confiabilidade do texto bíblico. Se não fizesse isso, seu argumento não valeria nada, pois poderia ser aplicado no sentido inverso: eu poderia "provar" que Maomé era um cristão selecionando os trechos corânicos que concordam com a Bíblia e dizendo que os demais trechos são corrupções do texto original. Não acho provável que o preletor do vídeo de fato acredite na fidedignidade integral da Bíblia, pois isso seria problemático demais para qualquer muçulmano, exceto, talvez, os das vertentes mais esotéricas (pois também existem linhas esotéricas e místicas dentro do islã - minoritárias, é claro). Acho mais provável que ele tenha usado isso como um artifício retórico. Não considero essa estratégia necessariamente ruim ou desonesta: conheço ao menos as principais objeções islâmicas à autoridade e confiabilidade da Bíblia, e posso imaginar que a problematização desse ponto complicaria demais o argumento do preletor. A abordagem escolhida pelo preletor se justifica, penso eu, por sua convicção manifesta de que, mesmo aceitando a autoridade bíblica para fins de argumentação, ele ainda poderia demonstrar facilmente sua tese. Contudo, é aí que, como eu disse, ele paga seu preço: ao pressupor a confiabilidade e a integridade da Bíblia, mesmo que apenas para fins de argumentação, ele se obriga a ser capaz de harmonizar os dois livros sagrados até o fim, e esse é um compromisso que o ponto de vista muçulmano mais convencional pode dispensar. Na próxima postagem passarei a analisar suas tentativas de conciliação.

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