5. Ser sensato é conhecer a si mesmo. Isso equivale a dizer que o auto-conhecimento é uma ciência do eu. Mas, para o filósofo, assim como a medicina é uma ciência que visa produzir saúde e a arquitetura tem por fim a construção de edifícios, essa ciência deve ter um fim, um resultado a ser produzido. E qual seria? Crítias responde que algumas ciências, como a aritmética, não visam produzir nada. Sócrates reconhece a objeção, mas nota que toda ciência se volta para um objeto distinto de si mesmo: a arte de calcular não é a mesma coisa que os números, embora lide com eles. Sendo assim, qual é o objeto de conhecimento dessa ciência chamada sensatez ou sabedoria? Crítias nega que, sob esse aspecto, a sabedoria seja como as demais ciências: ela é uma ciência de todas as outras ciências e também de si própria; o sábio é aquele sabe o que sabe.
Mas a ciência de um conhecimento deve ser também a ciência da falta de conhecimento. Somente o sábio conhece a si próprio e é capaz de determinar o que sabe ou não, bem como o que outros sabem. Ele não apenas sabe o que conhece, mas também o que ignora. Eis a essência da sabedoria. No entanto, existe aqui um problema, pois não há situação paralela em nenhuma outra coisa existente. Não se pode imaginar uma visão que não percebe cores, e sim a si mesma e a outras visões. Nenhum dos sentidos pode prestar-se a tal papel. Da mesma forma, nenhum desejo pode ter por objeto a si próprio e a outros desejos, nenhum amor pode se dirigir a si e a todos os amores, nenhuma opinião diz respeito a ela mesma e às demais opiniões. É estranho, portanto, que exista uma ciência assim, embora tal consideração não baste para afirmar sua inexistência.
Toda ciência é necessariamente uma ciência de alguma coisa, assim como é próprio de um objeto grande sê-lo apenas em relação a outro menor. Se um objeto é maior que outro, então um terceiro que seja maior que o primeiro deve também ser maior que o segundo, ou seria ao mesmo tempo grande e pequeno em relação a si mesmo. E sucede ao peso, à idade, ao número e outras grandezas o mesmo que ao tamanho. Um objeto que se relaciona consigo mesmo deve possuir a qualidade que fundamenta a relação. A qualidade que possibilita a audição, por exemplo, é o som. Portanto, uma audição que ouve a si própria deve conter em si algum som. Tal coisa é difícil de conceber, mas alguns talvez não a considerem impossível. Assim, é necessário que alguém demonstre se existem ou não relações que contêm em si a qualidade necessária à sua própria existência. Se houver tal coisa, a ciência da sensatez pode se enquadrar nessa categoria.
Sócrates, porém, declara-se incapaz de descobrir isso: não sabe se existe uma ciência de toda ciência e, ainda que haja, ignora se tal ciência é a sabedoria ou sensatez, pois restaria demonstrar que ela sempre faz bem ao seu conhecedor, visto que a sabedoria é necessariamente benéfica a quem a possui. Pede então a Crítias, visto que ele sustenta tudo isso, que demonstre essas duas teses: primeiro, que a existência de tal ciência é possível; e, depois, que é vantajosa para seu possuidor. Como seu amigo não é capaz de provar a primeira tese, o filósofo propõe deixá-la de lado e dá-la como demonstrada para fins de argumentação. Assim sendo, pede que Crítias explique como tal ciência capacitaria seu possuidor a distinguir o que sabe do que ignora, proporcionando, portanto, o auto-conhecimento ou sabedoria.
O que está em questão é se o auto-conhecimento, considerado em si mesmo, permite que o sábio saiba o que conhece e o que ignora. A distinção entre essas duas coisas significa apenas que o indivíduo sabe que uma delas é conhecimento e a outra não. Mas conhecer os meios de produzir saúde não é o mesmo que saber como fazer justiça, e tampouco a falta de tais ciências é a mesma coisa: uma diz respeito à medicina, e a outra à política. O de que se falou até aqui, entretanto, não é uma ciência das coisas, e sim da ciência enquanto tal. O sábio que tem conhecimento sobre o conhecimento, mas não sobre assuntos específicos (como a medicina ou a política), sabe que conhece algo, mas ignora o quê, pois esse saber aponta apenas para si mesmo e nada é capaz de determinar enquanto se restringe à própria ciência, sem se dirigir a um objeto. O homem entendido em medicina, música, arquitetura ou qualquer outra ciência ou arte sabe que conhece tais coisas mediante o contato direto com seus objetos; o conhecimento do conhecimento, abstratamente, nada lhe diz a respeito.
Por isso mesmo, o sábio não poderá distinguir um médico verdadeiro de um farsante a menos que ele próprio conheça medicina. A sabedoria, conforme definida por Crítias, não o ajudará nisso. A fim de saber que tipo de ciência tem o médico (ou qualquer outro), o sábio terá de descobrir a que se refere ela, pois é nisso que as modalidades de conhecimento diferem entre si. Ele julgará o que diz o médico segundo seus efeitos sobre a saúde, porque é esse o objeto da medicina. Mas, se tudo isso for verdade, a tal sabedoria é totalmente inútil. Ao contrário do que parecia, ela não pode ajudar o sábio a descobrir o que ele (ou qualquer outra pessoa) conhece ou ignora. Se pudesse, ele sempre encontraria as pessoas certas para fazer tudo, e jamais tentaria ele mesmo fazer algo acima de sua capacidade. Uma cidade governada por essa pessoa seria próspera e feliz. Tal ciência, no entanto, parece não existir. Ainda assim, a sabedoria, entendida segundo a definição de Crítias, tem sua utilidade: por não perder de vista a ciência enquanto tal, quem a possui aprende tudo mais facilmente e com maior clareza. Além disso, o sábio pode testar com maior eficácia o conhecimento alheio quanto aos assuntos que ele também conhece.
Examinando-se a questão mais detidamente, porém, os frutos de uma ciência capaz de levar o indivíduo a saber o que conhece e o que desconhece talvez não sejam tão bons quanto Sócrates supusera. Ele tenta imaginar um mundo em que toda atividade, desde a navegação até as profecias, fosse empreendida de acordo com os melhores conhecimentos disponíveis e pelos indivíduos mais capazes. A ignorância estaria impedida de atuar, e todos viveriam de maneira próspera. Mas isso não implica que as pessoas agiriam bem e seriam felizes. Crítias observa que sem conhecimento não pode haver felicidade. Mas não se trata do conhecimento do trabalho com sapatos, lata, lã, madeira, e sim de um outro tipo, mais semelhante ao dos videntes. Um homem que conhece todo o passado, o presente e o futuro sabe mais que todos os homens, mas nem todos os conhecimentos o fazem feliz de igual maneira. O conhecimento que mais o leva à felicidade é aquele com base no qual ele discerne o bem e o mal. O filósofo concorda veementemente com seu amigo, acrescentando que essa é a ciência fundamental, sem a qual todas as outras juntas não bastam para levar o homem à felicidade. Tal prerrogativa não pertence à sabedoria, entendida como ciência das demais ciências, e sim a uma ciência particular, como todas as outras.
Em conclusão, Sócrates lamenta não ter sido capaz de descobrir o que é a sensatez ou sabedoria, e lembra que foram feitas várias concessões injustificáveis ao longo do debate. Apesar de tudo, crê que ela traz grande bem a quem a possui e, voltando sua atenção mais uma vez ao jovem, aconselha-o a ser sábio e sensato, pois isso de fato o fará mais feliz. O filósofo acha provável que o jovem seja sensato e não precise do encantamento. Cármides não sabe se possui ou não tal virtude, já que ninguém foi capaz de defini-la, mas deseja receber o encantamento diariamente do próprio Sócrates. Crítias incentiva seu primo, e na verdade ordena-lhe que se submeta a esse tratamento. E Sócrates recebe seu novo discípulo.
Mas a ciência de um conhecimento deve ser também a ciência da falta de conhecimento. Somente o sábio conhece a si próprio e é capaz de determinar o que sabe ou não, bem como o que outros sabem. Ele não apenas sabe o que conhece, mas também o que ignora. Eis a essência da sabedoria. No entanto, existe aqui um problema, pois não há situação paralela em nenhuma outra coisa existente. Não se pode imaginar uma visão que não percebe cores, e sim a si mesma e a outras visões. Nenhum dos sentidos pode prestar-se a tal papel. Da mesma forma, nenhum desejo pode ter por objeto a si próprio e a outros desejos, nenhum amor pode se dirigir a si e a todos os amores, nenhuma opinião diz respeito a ela mesma e às demais opiniões. É estranho, portanto, que exista uma ciência assim, embora tal consideração não baste para afirmar sua inexistência.
Toda ciência é necessariamente uma ciência de alguma coisa, assim como é próprio de um objeto grande sê-lo apenas em relação a outro menor. Se um objeto é maior que outro, então um terceiro que seja maior que o primeiro deve também ser maior que o segundo, ou seria ao mesmo tempo grande e pequeno em relação a si mesmo. E sucede ao peso, à idade, ao número e outras grandezas o mesmo que ao tamanho. Um objeto que se relaciona consigo mesmo deve possuir a qualidade que fundamenta a relação. A qualidade que possibilita a audição, por exemplo, é o som. Portanto, uma audição que ouve a si própria deve conter em si algum som. Tal coisa é difícil de conceber, mas alguns talvez não a considerem impossível. Assim, é necessário que alguém demonstre se existem ou não relações que contêm em si a qualidade necessária à sua própria existência. Se houver tal coisa, a ciência da sensatez pode se enquadrar nessa categoria.
Sócrates, porém, declara-se incapaz de descobrir isso: não sabe se existe uma ciência de toda ciência e, ainda que haja, ignora se tal ciência é a sabedoria ou sensatez, pois restaria demonstrar que ela sempre faz bem ao seu conhecedor, visto que a sabedoria é necessariamente benéfica a quem a possui. Pede então a Crítias, visto que ele sustenta tudo isso, que demonstre essas duas teses: primeiro, que a existência de tal ciência é possível; e, depois, que é vantajosa para seu possuidor. Como seu amigo não é capaz de provar a primeira tese, o filósofo propõe deixá-la de lado e dá-la como demonstrada para fins de argumentação. Assim sendo, pede que Crítias explique como tal ciência capacitaria seu possuidor a distinguir o que sabe do que ignora, proporcionando, portanto, o auto-conhecimento ou sabedoria.
O que está em questão é se o auto-conhecimento, considerado em si mesmo, permite que o sábio saiba o que conhece e o que ignora. A distinção entre essas duas coisas significa apenas que o indivíduo sabe que uma delas é conhecimento e a outra não. Mas conhecer os meios de produzir saúde não é o mesmo que saber como fazer justiça, e tampouco a falta de tais ciências é a mesma coisa: uma diz respeito à medicina, e a outra à política. O de que se falou até aqui, entretanto, não é uma ciência das coisas, e sim da ciência enquanto tal. O sábio que tem conhecimento sobre o conhecimento, mas não sobre assuntos específicos (como a medicina ou a política), sabe que conhece algo, mas ignora o quê, pois esse saber aponta apenas para si mesmo e nada é capaz de determinar enquanto se restringe à própria ciência, sem se dirigir a um objeto. O homem entendido em medicina, música, arquitetura ou qualquer outra ciência ou arte sabe que conhece tais coisas mediante o contato direto com seus objetos; o conhecimento do conhecimento, abstratamente, nada lhe diz a respeito.
Por isso mesmo, o sábio não poderá distinguir um médico verdadeiro de um farsante a menos que ele próprio conheça medicina. A sabedoria, conforme definida por Crítias, não o ajudará nisso. A fim de saber que tipo de ciência tem o médico (ou qualquer outro), o sábio terá de descobrir a que se refere ela, pois é nisso que as modalidades de conhecimento diferem entre si. Ele julgará o que diz o médico segundo seus efeitos sobre a saúde, porque é esse o objeto da medicina. Mas, se tudo isso for verdade, a tal sabedoria é totalmente inútil. Ao contrário do que parecia, ela não pode ajudar o sábio a descobrir o que ele (ou qualquer outra pessoa) conhece ou ignora. Se pudesse, ele sempre encontraria as pessoas certas para fazer tudo, e jamais tentaria ele mesmo fazer algo acima de sua capacidade. Uma cidade governada por essa pessoa seria próspera e feliz. Tal ciência, no entanto, parece não existir. Ainda assim, a sabedoria, entendida segundo a definição de Crítias, tem sua utilidade: por não perder de vista a ciência enquanto tal, quem a possui aprende tudo mais facilmente e com maior clareza. Além disso, o sábio pode testar com maior eficácia o conhecimento alheio quanto aos assuntos que ele também conhece.
Examinando-se a questão mais detidamente, porém, os frutos de uma ciência capaz de levar o indivíduo a saber o que conhece e o que desconhece talvez não sejam tão bons quanto Sócrates supusera. Ele tenta imaginar um mundo em que toda atividade, desde a navegação até as profecias, fosse empreendida de acordo com os melhores conhecimentos disponíveis e pelos indivíduos mais capazes. A ignorância estaria impedida de atuar, e todos viveriam de maneira próspera. Mas isso não implica que as pessoas agiriam bem e seriam felizes. Crítias observa que sem conhecimento não pode haver felicidade. Mas não se trata do conhecimento do trabalho com sapatos, lata, lã, madeira, e sim de um outro tipo, mais semelhante ao dos videntes. Um homem que conhece todo o passado, o presente e o futuro sabe mais que todos os homens, mas nem todos os conhecimentos o fazem feliz de igual maneira. O conhecimento que mais o leva à felicidade é aquele com base no qual ele discerne o bem e o mal. O filósofo concorda veementemente com seu amigo, acrescentando que essa é a ciência fundamental, sem a qual todas as outras juntas não bastam para levar o homem à felicidade. Tal prerrogativa não pertence à sabedoria, entendida como ciência das demais ciências, e sim a uma ciência particular, como todas as outras.
Em conclusão, Sócrates lamenta não ter sido capaz de descobrir o que é a sensatez ou sabedoria, e lembra que foram feitas várias concessões injustificáveis ao longo do debate. Apesar de tudo, crê que ela traz grande bem a quem a possui e, voltando sua atenção mais uma vez ao jovem, aconselha-o a ser sábio e sensato, pois isso de fato o fará mais feliz. O filósofo acha provável que o jovem seja sensato e não precise do encantamento. Cármides não sabe se possui ou não tal virtude, já que ninguém foi capaz de defini-la, mas deseja receber o encantamento diariamente do próprio Sócrates. Crítias incentiva seu primo, e na verdade ordena-lhe que se submeta a esse tratamento. E Sócrates recebe seu novo discípulo.
2 comentários:
Eu tenho acompanhado seu blog há um tempo.... muitas vezes me vejo perdida, sem entender argumentos e afirmações.... mas isso nunca se tornou problema!!!
Porém creio q o último assunto me dispertou gde interesse, por eu já ter participado de discussões e me questionar várias vezes sobre o assunto!!
bom é isso!!!
Carol
Oi, Carol! Se quiser, entre em contato comigo pelo endereço alvenancio@yahoo.com.br. Terei prazer em conversar e explicar melhor os pontos obscuros.
De qualquer forma, apareça sempre. E obrigado pelo comentário.
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