14 de fevereiro de 2009

A enxaqueca na alma - parte 2

5. Ser sensato é conhecer a si mesmo. Isso equivale a dizer que o auto-conhecimento é uma ciência do eu. Mas, para o filósofo, assim como a medicina é uma ciência que visa produzir saúde e a arquitetura tem por fim a construção de edifícios, essa ciência deve ter um fim, um resultado a ser produzido. E qual seria? Crítias responde que algumas ciências, como a aritmética, não visam produzir nada. Sócrates reconhece a objeção, mas nota que toda ciência se volta para um objeto distinto de si mesmo: a arte de calcular não é a mesma coisa que os números, embora lide com eles. Sendo assim, qual é o objeto de conhecimento dessa ciência chamada sensatez ou sabedoria? Crítias nega que, sob esse aspecto, a sabedoria seja como as demais ciências: ela é uma ciência de todas as outras ciências e também de si própria; o sábio é aquele sabe o que sabe.

Mas a ciência de um conhecimento deve ser também a ciência da falta de conhecimento. Somente o sábio conhece a si próprio e é capaz de determinar o que sabe ou não, bem como o que outros sabem. Ele não apenas sabe o que conhece, mas também o que ignora. Eis a essência da sabedoria. No entanto, existe aqui um problema, pois não há situação paralela em nenhuma outra coisa existente. Não se pode imaginar uma visão que não percebe cores, e sim a si mesma e a outras visões. Nenhum dos sentidos pode prestar-se a tal papel. Da mesma forma, nenhum desejo pode ter por objeto a si próprio e a outros desejos, nenhum amor pode se dirigir a si e a todos os amores, nenhuma opinião diz respeito a ela mesma e às demais opiniões. É estranho, portanto, que exista uma ciência assim, embora tal consideração não baste para afirmar sua inexistência.

Toda ciência é necessariamente uma ciência de alguma coisa, assim como é próprio de um objeto grande sê-lo apenas em relação a outro menor. Se um objeto é maior que outro, então um terceiro que seja maior que o primeiro deve também ser maior que o segundo, ou seria ao mesmo tempo grande e pequeno em relação a si mesmo. E sucede ao peso, à idade, ao número e outras grandezas o mesmo que ao tamanho. Um objeto que se relaciona consigo mesmo deve possuir a qualidade que fundamenta a relação. A qualidade que possibilita a audição, por exemplo, é o som. Portanto, uma audição que ouve a si própria deve conter em si algum som. Tal coisa é difícil de conceber, mas alguns talvez não a considerem impossível. Assim, é necessário que alguém demonstre se existem ou não relações que contêm em si a qualidade necessária à sua própria existência. Se houver tal coisa, a ciência da sensatez pode se enquadrar nessa categoria.

Sócrates, porém, declara-se incapaz de descobrir isso: não sabe se existe uma ciência de toda ciência e, ainda que haja, ignora se tal ciência é a sabedoria ou sensatez, pois restaria demonstrar que ela sempre faz bem ao seu conhecedor, visto que a sabedoria é necessariamente benéfica a quem a possui. Pede então a Crítias, visto que ele sustenta tudo isso, que demonstre essas duas teses: primeiro, que a existência de tal ciência é possível; e, depois, que é vantajosa para seu possuidor. Como seu amigo não é capaz de provar a primeira tese, o filósofo propõe deixá-la de lado e dá-la como demonstrada para fins de argumentação. Assim sendo, pede que Crítias explique como tal ciência capacitaria seu possuidor a distinguir o que sabe do que ignora, proporcionando, portanto, o auto-conhecimento ou sabedoria.

O que está em questão é se o auto-conhecimento, considerado em si mesmo, permite que o sábio saiba o que conhece e o que ignora. A distinção entre essas duas coisas significa apenas que o indivíduo sabe que uma delas é conhecimento e a outra não. Mas conhecer os meios de produzir saúde não é o mesmo que saber como fazer justiça, e tampouco a falta de tais ciências é a mesma coisa: uma diz respeito à medicina, e a outra à política. O de que se falou até aqui, entretanto, não é uma ciência das coisas, e sim da ciência enquanto tal. O sábio que tem conhecimento sobre o conhecimento, mas não sobre assuntos específicos (como a medicina ou a política), sabe que conhece algo, mas ignora o quê, pois esse saber aponta apenas para si mesmo e nada é capaz de determinar enquanto se restringe à própria ciência, sem se dirigir a um objeto. O homem entendido em medicina, música, arquitetura ou qualquer outra ciência ou arte sabe que conhece tais coisas mediante o contato direto com seus objetos; o conhecimento do conhecimento, abstratamente, nada lhe diz a respeito.

Por isso mesmo, o sábio não poderá distinguir um médico verdadeiro de um farsante a menos que ele próprio conheça medicina. A sabedoria, conforme definida por Crítias, não o ajudará nisso. A fim de saber que tipo de ciência tem o médico (ou qualquer outro), o sábio terá de descobrir a que se refere ela, pois é nisso que as modalidades de conhecimento diferem entre si. Ele julgará o que diz o médico segundo seus efeitos sobre a saúde, porque é esse o objeto da medicina. Mas, se tudo isso for verdade, a tal sabedoria é totalmente inútil. Ao contrário do que parecia, ela não pode ajudar o sábio a descobrir o que ele (ou qualquer outra pessoa) conhece ou ignora. Se pudesse, ele sempre encontraria as pessoas certas para fazer tudo, e jamais tentaria ele mesmo fazer algo acima de sua capacidade. Uma cidade governada por essa pessoa seria próspera e feliz. Tal ciência, no entanto, parece não existir. Ainda assim, a sabedoria, entendida segundo a definição de Crítias, tem sua utilidade: por não perder de vista a ciência enquanto tal, quem a possui aprende tudo mais facilmente e com maior clareza. Além disso, o sábio pode testar com maior eficácia o conhecimento alheio quanto aos assuntos que ele também conhece.

Examinando-se a questão mais detidamente, porém, os frutos de uma ciência capaz de levar o indivíduo a saber o que conhece e o que desconhece talvez não sejam tão bons quanto Sócrates supusera. Ele tenta imaginar um mundo em que toda atividade, desde a navegação até as profecias, fosse empreendida de acordo com os melhores conhecimentos disponíveis e pelos indivíduos mais capazes. A ignorância estaria impedida de atuar, e todos viveriam de maneira próspera. Mas isso não implica que as pessoas agiriam bem e seriam felizes. Crítias observa que sem conhecimento não pode haver felicidade. Mas não se trata do conhecimento do trabalho com sapatos, lata, lã, madeira, e sim de um outro tipo, mais semelhante ao dos videntes. Um homem que conhece todo o passado, o presente e o futuro sabe mais que todos os homens, mas nem todos os conhecimentos o fazem feliz de igual maneira. O conhecimento que mais o leva à felicidade é aquele com base no qual ele discerne o bem e o mal. O filósofo concorda veementemente com seu amigo, acrescentando que essa é a ciência fundamental, sem a qual todas as outras juntas não bastam para levar o homem à felicidade. Tal prerrogativa não pertence à sabedoria, entendida como ciência das demais ciências, e sim a uma ciência particular, como todas as outras.

Em conclusão, Sócrates lamenta não ter sido capaz de descobrir o que é a sensatez ou sabedoria, e lembra que foram feitas várias concessões injustificáveis ao longo do debate. Apesar de tudo, crê que ela traz grande bem a quem a possui e, voltando sua atenção mais uma vez ao jovem, aconselha-o a ser sábio e sensato, pois isso de fato o fará mais feliz. O filósofo acha provável que o jovem seja sensato e não precise do encantamento. Cármides não sabe se possui ou não tal virtude, já que ninguém foi capaz de defini-la, mas deseja receber o encantamento diariamente do próprio Sócrates. Crítias incentiva seu primo, e na verdade ordena-lhe que se submeta a esse tratamento. E Sócrates recebe seu novo discípulo.

12 de fevereiro de 2009

A enxaqueca na alma - parte 1

Hoje darei continuidade ao projeto de resumir os diálogos platônicos, fazendo com o Cármides o mesmo que já fiz com a Apologia de Sócrates e o Críton. O texto traz o nome de um jovem primo de Crítias, amigo de Sócrates; ambos travam diálogo com o filósofo, que acaba de voltar de Potidéia, onde tomou parte em uma batalha. Após narrar os eventos bélicos a um grupo ansioso, Sócrates passa a indagar sobre a juventude ateniense, interessado em saber se alguém se destaca por sua sabedoria ou beleza. Crítias chama sua atenção para alguns jovens que se aproximam seguindo Cármides, líder natural entre eles, e dono de estatura e beleza notáveis. Sócrates compartilha da admiração pela compleição do rapaz, mas deseja investigar se ele possui uma alma igualmente nobre. Crítias assegura que Cármides é tão belo por dentro quanto por fora e, a fim de demonstrar o que diz, chama-o para vir conversar com seu amigo e sugere a este que se faça passar por um médico que conhece a cura da enxaqueca, mal de que o jovem vinha se queixando nos últimos dias.

Sócrates de fato afirma ao rapaz que conhece a cura desejada, a qual consiste num encantamento a ser repetido em voz alta durante a aplicação do remédio. Mas os grandes médicos jamais tratam uma parte do corpo isoladamente do conjunto. O filósofo conta que o encantamento lhe foi ensinado por um médico da Trácia, para quem o erro dos gregos é não levar esse princípio às últimas conseqüências: não se deve tentar a cura do corpo sem a cura da alma, "pois a parte não pode ficar bem a menos que o todo esteja bem". O bem e o mal, dizia o trácio, têm início na alma, e só depois afloram para o corpo. O encantamento trata justamente da alma, dando-lhe sensatez, e esta promove a cura física. Não é recomendável, portanto, dar início ao tratamento pela enxaqueca em si, e Sócrates jurou ao médico que jamais o faria. É necessário, portanto, começar a cura de Cármides pelo exame de sua alma. Sócrates afirma que o rapaz foi privilegiado por ter antepassados nobres e belos; se for verdade que ele possui sensatez em alto grau, como garante Crítias, então sua alma está curada e pode-se passar diretamente à cura da doença. Mas o jovem, temendo vangloriar-se e, ao mesmo tempo, não desejando desmentir seu parente, afirma não saber se deve dizer-se sensato ou não. O filósofo propõe, então, que descubram juntos a resposta a essa questão, e começa perguntando a Cármides o que pensa ele ser a sensatez. Cinco definições são propostas ao longo da conversa, sendo cada uma refutada por Sócrates, conforme se vê a seguir.

(Há cinco elementos soltos ao longo do diálogo que vale a pena mencionar, dos quais o primeiro é narrativo e os demais dizem respeito ao espírito do diálogo: a. a proximidade do rapaz deixa o filósofo - assim como outros ali presentes - momentaneamente embaraçado; na verdade, as expressões utilizadas parecem indicar, por eufemismos, nada menos que atração sexual; b. a identidade do autor de uma idéia não tem importância para o julgamento de sua veracidade ou falsidade; c. não há problema em definir os termos de maneira estranha à usual, desde que seus respectivos significados fiquem claros a todos os participantes; d. a tentativa de refutação é parte da investigação de um assunto, e a descoberta da verdade é um bem para todos os homens, de modo que a pessoa cujas posições são refutadas não deve se ressentir disso; e e. é dever de todo homem examinar todo pensamento que lhe ocorre, por mais absurdo que pareça.)

1. Ser sensato é ser tranqüilo, fazer tudo de maneira calma e ordeira. Mas a sensatez é uma coisa nobre e boa, e no entanto considera-se que os melhores em muitas ações - leitura, corrida e todo tipo de aprendizado, por exemplo - são aqueles capazes de realizá-las com rapidez e agilidade. Em tais atividades, a sensatez - conforme definida por Cármides - seria um mal, não um bem, e uma vida humana na qual todas as ações fossem efetuadas com lentidão estaria longe de ser a melhor possível. Cármides reconhece prontamente seu erro e reflete sobre os efeitos da sensatez em seu próprio ser para produzir uma nova definição.

2. Ser sensato é ser modesto. Cármides mantém que a sensatez é nobre e boa, e sempre faz bem ao seu possuidor. Entretanto, concorda com Homero, segundo o qual "a modéstia não é boa para o necessitado". Tais posturas são mutuamente contraditórias, pois seu assentimento ao antigo poeta implica que a modéstia, ao contrário da sensatez, não é sempre um bem, de modo que não pode haver identidade entre os dois conceitos.

3. Ser sensato é se ocupar apenas de seus próprios assuntos. Tal idéia não foi elaborada por Cármides, e sim por Crítias, embora este negue a autoria. O filósofo acredita ser impossível determinar se a definição é correta, visto que é inerentemente ambígua, e que seu autor não pretendia dizer o que disse. O menino que aprende a escrever os nomes de outros, além de seu próprio, não está de modo algum sendo intrometido ou insensato. De maneira similar, as profissões do pedreiro, do tecelão e do médico dizem respeito, por natureza, aos interesses de outras pessoas. Uma lei que obrigasse cada cidadão a construir sua própria casa, fabricar suas próprias vestimentas e curar suas próprias doenças não promoveria a ordem, e assim não favoreceria a sensatez, pois aquela é produzida por esta. Tamanha tolice não pode ser o sentido pretendido pelo autor da definição, que Cármides garante ser um grande sábio, e portanto só resta concluir que esse homem elaborou propositalmente um enigma, de modo que seu verdadeiro sentido permanecesse oculto.

Então Crítias, apesar de não assumir a autoria da definição, vê-se obrigado a defender sua validade, e assim toma o lugar de seu primo na discussão. Ele sustenta que há uma distinção entre se ocupar dos assuntos alheios, coisa que os sensatos não fazem, e apenas fazer coisas que afetam ou dizem respeito a outras pessoas, o que qualquer um faz. Este último verbo se relaciona ao trabalho e, segundo Hesíodo, "nenhum trabalho é desonroso". Pois essa ação só inclui aquilo que é nobre e útil, enquanto a ocupação pode não possuir essas características: ocupar-se do que é prejudicial ou desonroso não é trabalhar, e portanto não é um dos assuntos próprios do indivíduo. Com base nisso produz-se uma nova definição.

4. Ser sensato é fazer coisas boas. Acrescenta-se que o homem não pode exercer sua sensatez de modo inconsciente. Mas da obra que um artesão faz para outra pessoa pode resultar benefício para si próprio (ao receber pagamento, por exemplo), assim como um médico ao curar um paciente, ou qualquer um que cumpre seu dever com relação a outros. Entretanto, tal pessoa não necessariamente sabe de antemão se virá daí algum benefício. Sendo assim, o homem pode fazer o bem, e portanto agir de maneira sábia e sensata, sem perceber isso durante o próprio ato. Crítias reconhece a contradição, mas vê o auto-conhecimento como inerente à própria noção de sensatez e requisito para todo conhecimento. Renuncia, portanto, a tudo o que disse antes e propõe a última definição, que dá ensejo a um novo debate sobre outros assuntos, como será mostrado na próxima postagem.