24 de setembro de 2009

Almas sob o altar

"Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam. Clamaram em grande voz, dizendo: 'Até quando, ó soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?' Então a cada um deles foi dada uma vestidura branca, e lhes disseram que repousassem ainda por pouco tempo, até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos que iam ser mortos como também eles foram." (Apocalipse 6.9-11)

Têm havido mártires cristãos quase desde a própria fundação da Igreja, desde que os judeus de Jerusalém apedrejaram Estêvão, conforme a história narrada nos Atos dos apóstolos. E a lista dos mártires continua aumentando com rapidez até hoje. Desde a infância tenho ouvido muitas histórias de perseguições aos cristãos, mas tenho pensado nisso com maior frequência ultimamente. Só o século XX testemunhou a morte de dezenas de milhões, mortos por se recusarem a negar sua fé ou trair seus irmãos, sobretudo sob regimes comunistas e islâmicos. Porém, isso não fez o cristianismo desaparecer nos países onde há perseguição, e talvez esses lugares não sejam mais suscetíveis a esse risco que aqueles em que ser cristão é uma coisa tão fácil e cômoda que se torna possível ostentar esse título sem risco ou compromisso algum. Esse fato talvez confirme a declaração feita, creio eu, por Tertuliano de Cartago, segundo a qual o sangue dos mártires é a semente da Igreja.

Recentemente li, em edição portuguesa, um livro já meio antigo de Richard Wurmbrand, um judeu romeno que passou catorze anos numa prisão comunista, sofrendo solidão total, fome, torturas e trabalhos forçados. Foi condenado a tudo isso sob a terrível acusação - verdadeira, por sinal - de ser pastor luterano. Uma vez libertado, ele emigrou para a Europa Ocidental e, mais tarde, para os EUA, onde fundou e presidiu uma missão para prestar ajuda (espiritual e material) às igrejas dos países comunistas, fornecer exemplares da Bíblia e outros textos cristãos, além de pregar o Evangelho aos que vivem sob (e sobre) o regime. Ao longo do livro, intitulado Onde é que Cristo está ainda a ser perseguido?, Wurmbrand conta muitas histórias sobre toda sorte de sofrimentos e privações enfrentados por esses cristãos distantes: assassinatos, prisões, torturas físicas e psicológicas, carreiras destruídas, famílias separadas. Essas histórias são contadas com graus diversos de detalhamento; em muitas delas os nomes ou locais sequer são mencionados, pois a divulgação dessas informações poderia colocar irmãos em perigo. Alguns casos são mencionados apenas de passagem, enquanto outros são narrados mais extensamente. Transcrevo abaixo os nomes dos 56 mártires citados no livro, acompanhados de algumas das informações que porventura lhes digam respeito. (Alguns dos prenomes devem ter sido aportuguesados, e outros anglicizados; não procurei saber qual era a grafia original.)

Note-se que há na lista nomes de protestantes, católicos, ortodoxos e outros grupos cristãos minoritários. Apesar de todas as graves divergências internas da cristandade, acho justo mencionar todos esses grupos. É verdade que somos todos hereges aos olhos uns dos outros, mas os Estados ateístas que levaram todos esses fiéis à morte não estavam preocupados em saber quem era representante do cristianismo verdadeiro. Por isso, ao menos num certo sentido, Cristo foi perseguido em todos os casos. Cabe só a Deus decidir quem morreu pela causa (ou Pessoa) correta. A nós cabem as orações e o auxílio a todos os perseguidos, sejam de que estirpe forem.

1 e 2. Odintsev e Pedro Vins, cristãos mortos sob o regime de Stálin; o segundo foi morto na prisão, e seu filho também foi preso posteriormente.

3 a 8. Khmara, Moiseyev, Ostapenko, Bilenko, Deynega e Lambdin, batistas russos mortos sob os governos de Krushev e Breznev. O primeiro teve a língua cortada. Sobre Ivan Moiseyev eu já havia lido em outro lugar: foi um jovem soldado pentecostal que teve problemas no exército por causa de sua fé, e acabou morto devido ao tratamento que recebeu na prisão - coisas como passar a noite em pé ao relento do inverno russo usando farda de verão. O exército divulgou o afogamento como causa acidental da morte e não entregou o corpo à família Moiseyev.

9. Nina Rujetshko, adventista russa torturada até a morte na prisão de Kemerovsk no Ano Novo de 1980.

10. Simeão Baholdin, adventista russo morto no campo de Slikamsk em setembro de 1980.

11 e 12. Gorgula e Kotyk, padres católicos ucranianos. O primeiro foi regado com gasolina e queimado, e o segundo foi encontrado coberto de sangue, com os dentes quebrados e a boca cheia de pão, em sinal de zombaria à Eucaristia.

13. Premysl Coufal, padre da igreja subterrânea (isto é, não autorizada pelo Estado) da Tchecoslováquia que havia sido ordenado secretamente. Foi morto por ter se recusado a denunciar outros fiéis. Os comunistas invadiram sua casa, quebraram-lhe o nariz e o crânio e deixaram o gás ligado ao sair.

14 e 15. Barendsen, Sobrenome de um casal de missionários protestantes holandeses que foram picados em pedaços no Afeganistão comunista.

16. Jameel Safoury, protestante libanês que teve os braços e cabeça decepados por guerrilheiros palestinos.

17. Alexandre Sisoiev (nome provável, mas incerto), segundo Solzhenitsyn, foi um evangelista fuzilado no campo de concentração de Kengir depois de ter passado muitos anos detido ali. Era tão estimado pelos 2500 presos desse campo (dos quais apenas um quinto eram presos políticos) que sua morte causou uma rebelião, a qual foi sufocada violentamente, resultando na morte de setecentos detentos.

18. Munteanu, padre ortodoxo romeno.

19. Gavrilov, capitão russo executado por organizar uma União de Oficiais Cristãos e publicar uma revista cristã.

20. Ramero, pregador batista cubano. Foi preso e confinado numa cela cujo tamanho era o estritamente suficiente para que ele ficasse sentado. Foi também espancado com cordas e paus, queimado com brasas, banhado em ácido e teve sua cabeça colocada numa caixa com abelhas. Como, depois de tudo isso, ainda se recusava a confessar crimes que nunca cometeu, foi enfim executado.

21. Boitel, jovem cubano fuzilado.

22 a 28. Wen-Yuang Kung, Liu-Ling-Chiu, Chou-Ching-Tse, Tung-Hu-En, Fang-Ai-Shih, Chou-Fu Ching e Marcus Cheng, alguns dentre os milhões de cristãos chineses mortos sob o regime maoísta.

29. Kuman Chandah, médico indiano que morreu após ter tido as pernas e os olhos arrancados numa prisão chinesa.

30 e 31. A família de Vladimir Tatishtshev, um cristão russo que teve as pernas quebradas na cadeia para confessar crimes imaginários. Como se recusasse, sua casa foi invadida, a esposa foi fuzilada e o filho bebê teve a cabeça esmagada contra uma parede.

32. Kiwanuka, procurador da missão de Wurmbrand no Uganda.

33. Wang-Shiu-Mei, cristão chinês e membro da missão de Wurmband, foi espancado até a morte por ter sido flagrado portando Bíblias.

34 e 35. Jon Clipa e Sabin Teodasiu, colaboradores da missão de Wurmbrand que foram mortos na Romênia.

36 a 40. Suciu, Frentziu, Rusu, Hossu e Aftenine, bispos uniatas romenos. O último morreu louco devido às torturas que sofreu na prisão.

41 a 44. Macavel, Pop, Moldovan e Stanescu, padres uniatas romenos. (Uniatas, ou católicos do rito oriental, são ex-ortodoxos que se submeteram a Roma, preservando, porém, um rito próprio.)

45 e 46. Chiu-Chin-Hsiu & Ho-Hsiu-Tzu, duas jovens chinesas de Kiangsi, fuziladas na prisão por seu próprio pastor, que atirou nelas em troca da promessa de liberdade e foi fuzilado em seguida, pagando assim o preço por sua traição e por confiar em comunistas.

47 a 51. John Kotcurov, John Riabuhin, John Krasnov, Nikolai Koniuhov e Alexandre Podolskii, padres ortodoxos russos. O primeiro dessa lista foi também o primeiro padre ortodoxo a ser morto pelos comunistas, segundo uma fonte ortodoxa russa clandestina. O segundo foi morto em Essentuki, juntamente com muitos outros; teve os membros amputados e foi sepultado vivo. O terceiro também foi sepultado vivo. O quarto foi abandonado à morte por congelamento. O último foi espancado até a morte, e aqueles que tentaram sepultá-lo foram fuzilados.

52. Tikhon, diácono ortodoxo russo que foi forçado pelos comunistas a cantar os cânticos de seu próprio funeral enquanto seu filho de dez anos cavava sua sepultura.

53 e 54. Grigorii Dmitrevskii e Grigorii Nikolski, padres ortodoxos russos. O primeiro teve o nariz decepado, seguido pelas orelhas, e foi, enfim, decapitado. O segundo foi morto por um grupo de comunistas cujo líder, depois de tê-lo ouvido recitar a liturgia, lhe disse: "Agora vamos dar-te a Santa Comunhão", e lhe deu um tiro na boca.

55. Ghasibe Kayrouz, estudante libanês de vinte e dois anos que foi fuzilado enquanto viajava a Nabha para passar o Natal com sua família. Tendo tido um pressentimento de sua morte, escreveu uma carta consolando seus queridos e pedindo que perdoassem seus assassinos.

56. Pavel Vasilievitch, pastor batista morto num campo de concentração soviético. Sua esposa foi condenada a dez anos de trabalhos forçados, e só soube de sua morte anos mais tarde.

Mas por que estou transcrevendo esses nomes todos aqui? Acho que o principal motivo é que me ocorreu, enquanto lia o livro, que esses nomes merecem ser lembrados, ainda que seja difícil decorá-los. Wurmbrand diz em alguma parte que se espantava em saber que muitos cristãos americanos conheciam o nome de atletas e outras celebridades romenas, mas não sabiam citar um único irmão romeno martirizado. Os nomes dos mártires deveriam ser lembrados com maior frequência. Conta-nos Marcos em seu evangelho que Jesus honrou a mulher que o ungiu com um perfume caríssimo de nardo. Diante dos protestos de alguém que sugeriu que a preciosa substância deveria ter sido vendida e o dinheiro usado para ajudar os pobres, o Senhor respondeu: "Os pobres sempre tendes convosco e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem, mas a mim nem sempre tendes. [...] Onde for pregado em todo o mundo o Evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua." (14.7,9). João dá nomes aos personagens, identificando a mulher com Maria, irmã de Lázaro e Marta, e o queixoso com Judas Iscariotes. Sobre este diz o quarto evangelista: "Isto disse ele, não porque tivesse cuidado dos pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, tirava o que nela se lançava" (12.6).

Vejo alguma semelhança entre Maria e os mártires cristãos produzidos pelo comunismo: tanto estes como aquela deram maior valor a Cristo (ou pelo menos à igreja e aos irmãos de fé) que aos que perpetravam crimes e os justificavam pelo falso pretexto do amor aos pobres. Em vista disso, deixo aqui este pequeno memorial em homenagem a esses bravos combatentes e à classe que eles representam, a daqueles que vão, a cada século, completando o número de almas que aguardam sob o altar de Deus.