8 de julho de 2010

Dúvidas rememoradas

Tenho vários projetos já iniciados neste blog, e espero não demorar para dar-lhes continuidade. Mas, agora que entreguei minha dissertação e tenho uns poucos dias de relativo sossego, prefiro aproveitar para falar sobre o que está em minha cabeça neste momento. Trata-se de uma discussão virtual que presenciei outro dia, sem nela tomar parte. Ou, dizendo de maneira mais específica, da conduta de um dos participantes daquela discussão. Sua identidade não vem ao caso, pois o que ocorreu só me interessa enquanto exemplo de um fenômeno que, temo eu, atinge muitas pessoas. Além disso, omitir a identidade do sujeito é uma verdadeira gentileza que lhe faço. Eu, pelo menos, ficaria envergonhado se tivesse dito aquelas coisas e alguém as publicasse por aí. Dois exemplos bastarão para esclarecer o que quero dizer. Por coincidência (ou não), ambos relacionam-se à admiração indevida que o sujeito devota a Karl Marx.

O primeiro caso é apenas uma questão de ignorância. O indivíduo afirma que não é justo atribuir a Marx alguma culpa pelos cem milhões de mortos em nome do comunismo, pois crê que o mesmo argumento poderia ser usado contra Cristo, levando-se em conta todos os mortos em nome da fé cristã nos últimos dois milênios. Contudo, mesmo que a cristandade tivesse sacrificado cem milhões de vidas por século - e o número não chega nem perto disso -, haveria um problema qualitativo a ser resolvido. A doutrina de Marx, como todo materialismo consistente, é expressamente amoral. Como declarou o próprio Marx em sua crítica a Bakunin a propósito do manifesto pan-eslavista, valores morais como "justiça, liberdade, igualdade, fraternidade, independência [...] não têm nenhum sentido no domínio histórico e político". Não é difícil ver de que maneira essa visão da realidade abre espaço para a justificação de toda sorte de crimes contra a humanidade. E também não é difícil ver que Marx não esteve longe de fazer justamente isso. No mesmo parágrafo de onde tirei os trechos acima, o pai do comunismo apoiou a ocupação americana da Califórnia, que até então pertencera aos mexicanos, com o seguinte argumento: "A independência de alguns californianos pode sofrer com isso, a justiça e outros princípios morais podem ser feridos – mas isto conta, diante de tais realidades que são o domínio da história universal?" Só mesmo a ignorância histórica pode concluir que Lênin e toda a hoste de ditadores genocidas que o comunismo produziu no século XX estavam muito distantes dos sublimes ideais de seu Cristo postiço.

O segundo exemplo, porém, não pode ser atribuído à ignorância, restando como explicação apenas a obtusidade da inteligência. Comentando algumas guerras descritas no Antigo Testamento, nas quais, segundo a narrativa bíblica, os hebreus eram incumbidos por Deus de exterminar certos povos, o sujeito a que me referi no início do post declarou que "'Tribo contra tribo' nada mais é do que classes diferentes brigando pelos seus interesses". Ora, pouco é necessário para ver que tribos e classes são coisas muito diferentes. Para sustentar essa identidade, seria preciso supor que existem povos inteiros compostos apenas de "burgueses" fazendo guerra contra povos em que só havia "proletários". Resta saber como seria possível determinar quem é quem, já que os povos em questão nunca haviam se encontrado antes e, portanto, não haviam tido ainda a oportunidade de explorar um ao outro. Se as narrativas bíblicas servissem para sustentar alguma mitologia ideológica, não seria a dos marxistas, e sim a dos fascistas, que realmente dão proeminência à identidade nacional e étnica em detrimento da social e de classe. O problema é que, aos olhos dos comunistas, o fascismo costuma ser o pior inimigo de sua adorada revolução. Por causa da ironia da situação criada pelo próprio autor da bobagem, referir-me-ei a ele como Fascista deste ponto em diante. Explico-me: visto que os esquerdistas adoram acusar de fascismo qualquer um que se atreva a fazer-lhes uma cara feia, por menos que suas posições se assemelhem às de um fascista de fato, eu não acho justo perder a oportunidade de designá-los assim quando dizem algo que soa semelhante ao verdadeiro fascismo.

Pode parecer que estou me detendo demais nos preâmbulos, e de fato tenho esse mau hábito. Mas os exemplos acima se relacionam com o a questão central que pretendo comentar, e que não diz respeito diretamente a assuntos políticos. Tendo equiparado Marx a Cristo em suas respectivas relações com os crimes de seus seguidores, o Fascista tratou de levar às últimas consequências a divinização de Marx (ou, caso se prefira assim, a difamação de Deus) atribuindo a ambos o mesmo direito de encerrar vidas humanas. É nesse espírito que ele pergunta, por exemplo: "Se a implantação do ideal de Marx exigia a morte de alguns assim como a implantação do ideal de Deus exigia o mesmo, volto a perguntar: em que sentido Marx é um monstro assassino e Deus não?" Naturalmente, a resposta a essa pergunta foi dada pelo apóstolo Paulo em Romanos 11.35-36: "Quem primeiro deu a ele, para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, por meio dele e para ele são todas as coisas." Convém lembrar que o apóstolo, de maneira mui apropriada, estava se referindo a Deus, e não a Marx. Há, porém, um sentido em que se justifica a pretensão kantiana de estabelecer um código moral válido para todos os seres racionais, incluindo-se aí o próprio Deus. No caso em questão, eu expressaria o mandamento do seguinte modo: "todo ser racional tem o direito de tirar a vida (ou delegar a outro o direito de tirá-la) dos seres que ele próprio criou ex nihilo". Se Deus tem o direito de tirar vidas, é porque foi ele quem as deu. Se Deus resolve apenas tomar de volta tudo aquilo que ele graciosamente deu a um ser vivo, nada sobrará desse ser; nem mesmo sua vida. Por essa mesma razão, o direito de Marx sobre a vida restringe-se àquelas vidas que ele criou ex nihilo. Entretanto, não é difícil notar que essa categoria de seres não inclui sequer o próprio Marx. Como diriam os escolásticos, Marx não possui em si a razão suficiente de sua existência, muito menos a dos outros. É por isso que ele não pode competir com Deus em matéria de direitos.

O Fascista não foi capaz de perceber isso, mesmo depois que alguém o declarou expressamente. A mim, por outro lado, sempre pareceu uma coisa por demais óbvia. E esse comentário nos levará diretamente ao cerne do que pretendo dizer hoje. A julgar pelo início deste parágrafo, pode parecer que sempre tive uma fé cristã inabalável, na qual jamais penetrou dúvida alguma. O Fascista, por exemplo, que é um cristão de tendências liberais, racionalistas e modernistas, fez várias alusões à ausência de questionamentos entre cristãos que conhece, como se vê nos trechos abaixo. Transcrevê-los-ei como foram escritos, mas devo avisar que os erros de português são dele mesmo, assim como a insinuação do palavrão com asteriscos.

"Eu converso bastante sobre vários assuntos com vários amigos meus, e os papos mais proveitosos são aqueles em que deixamos nossas pressuposições de lado por um instante e conversamos, refletimos, vemos se as conclusões que chegamos são iguais às pressuposições que deixamos de lado por alguns instantes. [...] O problema das mortes causadas por Deus só não faz parte da reflexão de todos os cristãos porque eles são massivamente ensinados a não pensar, ou a pensar dentro do cercadinho das pressuposições do tipo 'panos-quente'. [...] Não há erro algum em ter convicções. O ponto reside em como lidamos com as contradições existentes para nossas convicções. Existe a postura do diálogo: 'Bem, eu creio em uma coisa e você em outra. Vamos conceder um ao outro a dúvida e vamos dialogar sobre as divergências'. Existe também a postura unilateral 'bater de frente': 'Bem, este é meu círculo, aqui estão minhas convicções, aqui está a verdade. Então, que se f*** qualquer coisa que ousar contradizer este círculo'."

A insinuação contida nessas declarações, bem como em outras que não transcrevi para não emporcalhar meu blog mais que o necessário, não corresponde de modo algum à minha experiência pessoal, nem ao que tenho observado por aí. Como afirmei acima, a dúvida sobre "o problema das mortes causadas por Deus" sempre me pareceu besta demais - inclusive porque não há morte que não seja causada por Deus. Nunca tive essa dúvida. Porém, tive muitas outras, e quase todas as que tive até os vinte anos foram bem típicas de qualquer ateu ou agnóstico. O materialismo foi de fato a minha primeira tentação intelectual; apenas a primeira, por ser a mais superficial e mais tola. Eu absorvera por osmose uma porção de dúvidas, preconceitos e imbecilidades da modernidade racionalista, e durante anos lutei com todos esses monstros interiores.

Pensando hoje sobre aquela fase de minha vida, recordo que, ao lado da tentação intelectual em si, havia sempre a tentação de me considerar superior, em algum sentido, aos meus irmãos que não travavam tais embates. Eu costumava me referir a eles em termos lisonjeiros, como tendo recebido uma bênção pela qual eu precisava lutar de modo bastante árduo. Mas percebo agora que esse modo de me expressar ocultava uma ironia perversa: embora eu de fato soubesse que a incredulidade era algo ruim, um problema a ser superado, continuei por muito tempo a entreter a convicção de que manter certas portas entreabertas era o melhor jeito de evitar o emburrecimento, e que não havia muita virtude espiritual no coração que crê com simplicidade e sem dar lugar a dúvidas. No fundo, era como se eu pensasse: "Bom mesmo seria se todos os cristãos fossem como eu. Ainda bem que Deus é misericordioso o suficiente para resgatar pessoas burras que não possuem todo o brilhantismo intelectual manifesto em minha incredulidade". Dizendo dessa forma, parece ridículo. E é mesmo. E é claro que eu jamais teria formulado as coisas dessa forma, sequer para mim mesmo; mas de fato era assim que eu sentia.

Desde então, Deus mudou muito minha disposição interior. Hoje me parece evidente que eu estava errado em subestimar a profundidade das motivações pecaminosas de meu coração e, em decorrência disso, superestimar os pretextos e subterfúgios "racionais" da alma pervertida. Lendo as bobagens proferidas pelo Fascista, é com gratidão que rememoro mais um pecado debelado pela graça divina. Mas também é com um pesar proporcional que constato sua presença em outra pessoa. Vejo ali os mesmos pecados que um dia me acometeram, a saber, o que descrevi acima e seus corolários. Um deles consiste em julgar que certas pessoas, porque pessoalmente não veem sentido em certas dúvidas, são incapazes de se colocar mentalmente no lugar de quem as possui. Na mente do Fascista só existem dois tipos de pessoas: as inteligentes e sensatas como ele, sempre corajosamente abertas aos questionamentos, e as obtusas e fanáticas, que jamais ousam questionar as verdades passivamente recebidas. É-lhe simplesmente inimaginável a possibilidade de que alguém possa ter passado pelas mais profundas dúvidas e depois tê-las superado a ponto de poder hoje olhá-las com o desprezo que sempre mereceram. Ele vê apenas esse desprezo e, sem conhecer a história precedente (pois não pediu para ouvi-la), julga estar diante de um espécime pertencente a uma categoria inferior de seres humanos.

Em outras palavras, tudo se passa como se o intelecto do que duvida fosse muito superior ao do que crê. Uma vez mais, porém, minha observação pessoal e o testemunho das Escrituras demonstram que a realidade costuma ser o contrário disso: o incrédulo é que é incapaz de entender o crente. É claro que existem pessoas com e sem vocação intelectual em todos os grupos religiosos. Mas estou falando especialmente das pessoas que têm essa vocação - ou que, pelo menos, julgam tê-la. O próprio Fascista, a despeito de todas as suas lições não solicitadas sobre como lidar com as contradições, deu provas abundantes de sua incapacidade de entender uma mente teologicamente conservadora. É por isso mesmo que, onde quer que olhasse, julgava encontrar evidências de fanatismo e estreiteza mental. Todo o seu discurso é uma apologia de seu pecado predileto: ele se apega às suas dúvidas como troféus, vendo-as mais como soluções que como problemas e, acima de tudo, temendo que, ao despojar-se delas, não reste nada de que se gabar. Deus lhe conceda que de fato não reste nada quando isso acontecer.

6 comentários:

Oliveira Jr disse...

Olá André! Lendo seu post, lembrei-me de quando participava de uma lista de discussão musical no Yahoo. Depois de avisá-los que estávamos caindo numa cilada teológica falsamente libertária, fui contraditado veementemente por um pseudo-intelectual. Por volta do meio da conversa, já tensa, perguntei-lhe o que ele via de errado no mundo e o que deveria ser feito para melhorá-lo. A resposta foi pronta: "Precisamos desmontar a estrutura da sociedade e refazê-la de outra forma!".
Para fechar o assunto antes de me despedir da lista, perguntei-lhe se tinha alguma idéia melhor que Deus, pois a estrutura da sociedade também fora criada por Ele. A resposta veio pronta: o pecado a tornou injusta. Bem, acho que alguém precisa avisar Deus que isso aconteceu, pois só nossos iluminados 'irmãos' sabem disso. Enfim, temos mais um Rousseau ativo no planeta Brasil...
Essa turma de esquerdistas é de lascar: não pensa e odeia quem faz isso.
Abração fraterno!

DG Jem disse...

http://prefacioaopensamento.blogspot.com/2010/05/um-lindo-rotulo-esquerdista-embalagem.html

http://prefacioaopensamento.blogspot.com/2010/05/uma-nova-talvez-rota-anti-esquerdista.html

Os dois links são de duas postagens no meu blog referentes a tentativas de harmonizar a teologia cristã com fundamentos materialistas aplicados nos movimentos de esquerda.
Um deles propoe o que eu chamo de "uma nova rota anti-esquerdista", relacionando a posição anti-esquerdista com a tomada sensata da premissa científica concernente a descrição da relidade pelas vias teóricas-experimentais - ou seja, a tentativa de um fundamento epistemológico pra esse posicionamento.

Bela postagem andré, parabens cara.

Anônimo disse...

André,

Post interessante e também muito bem escrito, como sempre. Só tenho que questionar algo que você não considerou na fala do Fascista, mas que pode ser inferida dela, embora não sei se ele tivesse consciência disso.

Uma coisa é Deus tomar a vida de uma pessoa. Outra coisa é Deus mandar que outra pessoa faça isso. Claro que Deus é, in fine, a causa primeira da morte dos assassinados. Porém, refiro-me a situações como a narrada em Dt 7:1-4, onde Deus ordena a Israel que mate todo o povo cananita.

Aí saímos do campo das relações entre Deus e os homens e entramos no campo das relações dos homens entre si, o que torna a questão mais complexa. Mesmo assim, creio que uma boa resposta iria na linha dessa que o pastor John Piper dá nesse vídeo:

http://www.youtube.com/watch?v=z9peC09psOE

Abraços,

Rodrigo

André disse...

Olá, meus caros!

Apesar da demora, estou escrevendo para responder-lhes.

Caro Euclides, achei interessante sua narrativa. De fato não é muito diferente do que estamos acostumados a ver todo dia. Muito triste...

Caro Diego, eu já havia lido esses dois posts, assim como todos os outros do seu blog. hehe Talvez consigamos conversar mais sobre esse assunto (e outros) qualquer hora dessas.

Caro Rodrigo, obrigado pela indicação do vídeo. Concordo com as considerações dele. Acrescento que até o próprio Piper foi além da questão proposta ao discorrer não só sobre o que Deus tem direito de fazer, mas também sobre o que ele faz hoje em comparação com o que fazia em Israel. Quanto a mim, creio que Deus ainda delega o poder de tirar vidas em certas situações, não à Igreja, e sim ao Estado. Antecipei a objeção - ou melhor, apenas demonstrei ter consciência dela - no post, em meu comentário parentético "ou delegar a outro o direito de tirá-la".

Mas me diga uma coisa. COnheço vários Rodrigos; seria você um deles? Fiquei curioso para saber com quem estou falando.

Abraços a todos!

Juliana Portella disse...

André,

Parabéns. Gostei muito do post. Além de revelar verdades espirituais profundas, ele me entreteu bastante também dada a forma como você escreve!

Gostei muito do seu senso de humor refinado em: "O segundo exemplo, porém, não pode ser atribuído à ignorância, restando como explicação apenas a obtusidade da inteligência" e também ao escrever: "o Fascista tratou de levar às últimas consequências a divinização de Marx (ou, caso se prefira assim, a difamação de Deus) atribuindo a ambos o mesmo direito de encerrar vidas humanas".

Que Deus continue humilhando nossos corações em Sua presença.

André disse...

Oi,Juliana!

Muito obrigado! Fico feliz que tenha gostado. Abraços, e volte sempre!

André.