2 de maio de 2012

O terceiro doce

Nesta manhã de feriado, enquanto dou início a este texto, faz menos de duas horas que recebemos do veterinário a notícia da morte do Chocolate, nosso terceiro gato. Na sexta-feira às 23h, quando chegamos em casa depois de uma viagem de férias que durou dezoito dias, nós o encontramos bastante debilitado. Isso já acontecera antes: em outubro, depois de uma viagem bem mais curta, ele quase morreu, e só voltou para casa depois de uma semana de intensos (e excelentes) cuidados clínicos. Demorou, mas foi se recuperando. Devido a esse histórico, a despeito do cansaço da viagem, nós o levamos imediatamente à mesma clínica, cujo veterinário decidiu interná-lo depois de um breve exame. Desta vez, apesar das precauções que havíamos tomado, e de o gato ter sido muito bem tratado por um amigo nosso, as coisas tomaram outro rumo, e ele não reagiu bem ao tratamento veterinário. É desnecessário dizer que estamos tristes, e que sentiremos muita falta do nosso terceiro doce. Mas não escrevo agora para lamentar, e sim, pelo contrário, para fazer justiça às muitas alegrias que Deus nos deu através dele.

Tudo começou em um sábado de outubro de 2009, quando a Norma e eu ainda éramos apenas namorados. Na época, cantávamos no coral de nossa igreja, em São Carlos, e fomos até lá para um ensaio. Saímos no fim da tarde, pretendendo tomar um sorvete ali perto. Cinquenta metros depois, mudamos de ideia e demos meia-volta em direção ao ponto de ônibus. Foi nesse momento que surgiu na nossa frente aquele siamês marrom e bege, ainda não totalmente crescido. A Norma abaixou para conversar com ele, e o bichano imediatamente correu na direção dela, pulou em seu colo e não saiu mais. Percebi imediatamente que havíamos adotado mais um gato (uso o plural porque, embora obviamente não morássemos juntos, eu sabia desde há muito que iríamos nos casar).

Poucas semanas depois, quando já havíamos nos apaixonado pelo gato, ele desapareceu do apartamento da Norma, apesar das telas nas janelas e de todo o cuidado tomado com a porta. Depois de muito procurar e conjecturar, encontramos um defeito na tela da sala que não havia sido notado antes - nem, felizmente, pelos outros dois gatos. O Chocolate fugiu numa madrugada chuvosa, e sua ausência só foi notada na manhã seguinte. Seguiram-se momentos de aflição, preocupação e empenho; a Norma elaborou dezenas de cartazes e eu os distribuí pelos estabelecimentos comerciais da vizinhança, recebendo o apoio condoído de alguns comerciantes e o desinteresse ou mesmo insensibilidade de outros (que felizmente foram poucos). Gastei também incontáveis horas - algumas vezes com a Norma, outras sozinho - perambulando pela vizinhança em busca dele, especialmente à noite, quando os gatos são mais ativos. Por causa dessa experiência, hoje entendo melhor o drama daquele pastor da parábola da ovelha perdida. Também por causa dela, passei a conhecer todos os siameses da região, quase tive problemas com a polícia (os moradores daquele bairro pacato se assustaram com minhas perambulações na madrugada) e pude constatar que, à noite, de fato, todos os gatos são pardos. Mas nada disso deu resultado, ou pelo menos assim parecia.

Pedi a Norma em casamento na noite de 28 de novembro daquele ano. Quando fui deixá-la em casa, o porteiro nos contou que uma mulher estivera por ali dizendo que achara o Chocolate; ela deixara um número de telefone. Ligamos na manhã seguinte, e a mulher estava a apenas três quarteirões dali. Corremos até lá, e era ele mesmo, vivo e saudável. A casa era um salão de beleza que nunca víramos antes, e algumas clientes que haviam visto os cartazes o reconheceram quando ele apareceu. Levamos o gato embora, muito gratos e pra lá de felizes com o presente de noivado que Deus nos deu. Ele estivera desaparecido por três semanas, e tinha apenas alguns pelos claros no rosto, resultado do sol; mas nunca perdi a oportunidade de dizer que ele havia ido ao salão de beleza para fazer luzes.

De volta ao lar e muito bem tratado, o Chocolate terminou de crescer, engordou e deixou de ser o gato mais quieto e dócil do mundo para se tornar um autêntico pestinha. Na verdade, ele não tinha limites: se empolgava com as brincadeiras a ponto de não perceber que suas mordidas e patadas podiam machucar os outros. E, ao menos em alguns momentos, havia nele certa dose de raiva, como se ele temesse não poder confiar completamente em nós. Foram necessários vários meses de amor e disciplina para que isso desaparecesse, mas nosso esforço se mostrou bastante compensador: o Chocolate se tornou um gato não só razoavelmente obediente, mas também sensível e carinhoso, que se esparramava completamente quando chegava sua hora de receber carinho; e aquela raiva simplesmente sumiu com o tempo.

O Chocolate era um bicho cheio de disposição como nunca vi antes. Em contraste com a gorda lentidão do Mel e o hilário mau humor do Chantilly, ele tinha uma energia e uma alegria inabaláveis. Nada o perturbava. Quando ninguém podia brincar com ele, quando os outros dois o rejeitavam (na verdade, ele nunca chegou a ser aceito pelos gatos mais velhos), quando foi castrado e teve de passar semanas usando aquele cone ridículo e incômodo no pescoço, lá estava ele correndo, saltitando e miando alegremente pela casa, inventando algo com que se divertir. Ele aprendeu do Chantilly a arte de perseguir sombras nas paredes, reviveu o hábito do Mel de pegar nosso pé enfiando as patas pelo vão entre a cama e o chão, e inventou a técnica de nos chamar para brincar fazendo emboscadas no corredor, escondendo-se para nos "atacar" quando passávamos. Também inesquecíveis são seu hábito de "mamar" em qualquer roupa que estivéssemos usando e de demonstrar carinho esfregando a cabeça em nosso pé - na verdade, praticamente lustrando o sapato com a cabeça -, em vez de apenas esfregar o corpo na nossa canela, como os outros gatos fazem.

Depois que a Norma e eu nos casamos, os gatos foram conosco para Salvador, onde creio que ele viveu a parte mais feliz de sua vida, alcançando o auge tanto do carinho quanto da sapequice. Foi ali que, num período especialmente difícil para nós, ele geralmente me fazia companhia enquanto eu estudava as papeladas do trabalho e tentava cuidar da Norma e do nosso bebê. A foto abaixo foi tirada pela Norma em uma das ocasiões em que o cansaço prevaleceu e eu dormi abraçado aos papéis. Nada explica de modo mais eloquente a solidariedade felina que recebi nesse período.


Apenas dois meses depois de nossa mudança para o Ceará, o Chocolate teve a crise a que me referi no início do post. Por isso, e talvez em parte também pelo amadurecimento natural, uma parcela de sua energia se foi para sempre, embora ele nunca tenha deixado de ser um gato alegre. Ele passou a interagir menos com os outros dois, e passamos a lhe dedicar mais atenção, dando-lhe inclusive um momento de exclusividade todas as noites. Ele apreendeu o novo padrão bem depressa, e passou a vir pontualmente à nossa cama - ou ao banheiro, enquanto escovávamos os dentes - para cobrar sua sessão de carinho, que sempre terminava contra a sua vontade e, às vezes, sob intensos protestos.

A descrição dessa rotina é necessária para que se entenda o que vou contar agora sobre a última vez em que fizemos isso. Na noite do dia 8, domingo de Páscoa, véspera de nossa viagem, fui subitamente acometido de uma febre que chegou aos 39,3ºC. Fiquei deitado e imóvel, mas sem conseguir dormir, enquanto a Norma arrumava sozinha nossas malas. Em algum momento, ela notou que o Chocolate se postara à porta do quarto e a fitava com um olhar claramente interrogativo, em vez de simplesmente vir correndo e pular sobre a cama, como geralmente fazia. Decidimos deixá-lo vir até mim, e a Norma o colocou ao meu lado. Para nossa surpresa, ele não tentou "mamar", como de costume, e sim apenas me cheirou um pouco e se aninhou sobre o meu peito, fazendo uma companhia agradável e imóvel até que chegou a hora de dormir e a Norma o colocou para fora. Pela primeira e última vez, ele não protestou. Não queria de modo algum ser inconveniente.

Apesar da febre, não pude deixar de ficar emocionado com aquilo, e louvei ao Senhor por ele. Nunca me esquecerei do amor e da sensibilidade que ele teve para comigo naquela noite. Mas aquele momento foi, como agora sei, apenas uma despedida à altura dos dois anos e meio que ele passou conosco. Sou grato a Deus por essa pequenina parte de sua criação que cruzou nosso caminho e veio parar em nossa casa. Não sei o que lhe reserva o futuro em um sentido mais objetivo, mas o Chocolate foi muito amado enquanto esteve conosco e permanecerá para sempre como lembrança viva e concreta do amor de Deus por nossa família.

6 comentários:

Jorge Fernandes Isah disse...

André,
gosto demais de gatos, especialmente siameses. Eles são, ao menos os que tive, de um de companheirismo e carinho difíceis de encontrar. Estão sempre dispostos a nos reconfortar e, não importa a situação, independente do nosso humor, querem estar sempre por perto.

Os machos são mais carinhosos que as fêmeas; elas chegam a ser meio arredias em dados momentos, e também são mais desconfiadas. Percebem quando devem manter a distância...

Sua história me comoveu porque muito do que você passou foi também a minha experiência com os bichanos. E reconhecer que eles também fazem parte do favor de Deus para conosco, dá-nos um sentimento ainda maior de gratidão, pois sendo ele o criador e dono de tudo, em sua bondade, dispõe-nas para o nosso gozo e alegria.

Grande e maravilhoso Senhor!

Abraços.

André disse...

Caro Jorge, muito obrigado por seu comentário. Já havíamos conversado antes sobre gatos, em especial sobre siameses. Deus foi, de fato, muito bom em nos dar esse bichinho.

Abraços, e até logo!

Bárbara disse...

Oi Dé e Norma

Tô emocionada com o post, mas tô agradecida à Deus por vcs terem a oportunidade de ter o chocolate com vcs por esse tempo...e de ter aprendido coisas boas...e agora ele partiu deixando boas lembranças...nenhum gato é igual...gostei da parte do texto que vc diferencia os três...é bem assim mesmo...e ele é único e inesquecível no coração de vcs...um beijo enorme...já com saudade e espero que vcs fiquem bem...Bárbara

Anônimo disse...

André e Norma faço idéia do que estejam sentindo no momento. Já perdi 2 anjinhos. O Bolinha, gato branco grande e gordo que encontrei na garagem de casa todo ferido e o adotei, ficamos juntos 4 meses entre idas e vindas do veterinário, sua recuperação foi difícil, passou o primeiro mês no veterinário, eu indo todos os dias visitá-lo, sendo que o primeiro verterinário queria sacrificá-lo, mas não desiste e levei a outro. Infelizmente o Bolinha estava com uma infecção generalizada devido seu estado inicial, mas nunca me esquecerei da sua inteligência e força de vontade. O outro era o Sabão um gatão amarelo e com carinha de criança que foi doado por uma amiga, pois os antigos donos não poderiam mais ficar com ele, tão fofo, tão sapeca, tão protetor da sua irmãzinha Toto um tigrada meiga, tão amigo do seu irmão Nego todo pretinho e claro sapeca como era irritava dia e noite a Duquesa tigrada também... Da noite para o dia adoeceu e morreu... Hoje estou novamente com 4 gatinhos, pois fui abençoada com a vinda do Dudu um gatinho especial macho e tricolor. Sinto muito pela perda do Chocolate e que cuidem sempre com todo este carinho que demonstram do Mel e Chantilly.

Elaine disse...

Chorei, tamanha sensibilidade e amor. Aprendi a amar e respeitar os gatos. Seres sensiveis, delicados, observadores, inteligentes e mal compreendidos por algumas pessoas. Que Deus console o coração de vocês. Só os amantes das criaturas de Deus podem gozar desse presente que é a companhia dos animais.

André disse...

Bá, Anônimo e Elaine, muito obrigado pelas palavras. É bom ter a solidariedade de outros amantes de gatos por aqui. Abraços!