Na última postagem, dei início aos comentários sobre a seção Motivação moral e a autoridade da moralidade do artigo A autonomia da ética, do Dr. David Owen Brink. O objetivo da seção é demonstrar que Deus não pode ocupar nenhum papel motivacional legítimo no comportamento moralmente correto do homem. Agora darei continuidade a essa análise. Conforme demonstram as citações já feitas, Brink não questiona o fato de que o cristianismo provê uma motivação prudencial adequada para a moralidade. Além disso, ele reconhece que o secularismo não proporciona uma justificação desse tipo. Sendo assim, só resta a Brink prosseguir atacando a "justificação prudencial", e isso é o que ele faz em [12.2]:
"[...] segundo esta concepção da motivação moral, cada pessoa tem uma justificação instrumental para ser moral, nomeadamente, que ser moral é necessário e suficiente para ter uma bem-aventurada vida depois da morte. Segundo esta concepção, o comportamento moral não é bom em si, mas em virtude das suas consequências extrínsecas. Mas [...] supõe-se por vezes que quando se age moralmente por razões puramente instrumentais isto diminui o valor moral dessa acção. Deus pode escolher recompensar o altruísmo desinteressado, mas não pode ser a perspectiva desta recompensa que motiva os agentes, sem que isso ao mesmo tempo roube tais acções das mesmíssimas características que Deus quereria recompensar."
Há várias meias-verdades nesse parágrafo. Brink não problematiza o conceito de "justificação instrumental", quando deveria fazê-lo. Se eu faço o bem à minha esposa por querer o bem dela (afinal, eu a amo), isso exclui o meu desejo de tornar mais fácil que ela me ame de volta? E, caso não exclua, essa segunda motivação é imoral? Ela rouba ou diminui a virtude do bem que faço à minha esposa? Isso é a mesma coisa que fingir amá-la para obter vantagens e recompensas? Seria esse um caso de "justificação instrumental"? No meu entendimento, tudo isso é sem sentido. Brink diz absurdos justamente porque, como já expliquei, ele está preocupado demais com o Deus Juiz. Ele faria bem em se preocupar ainda mais, mas o problema é que ele está preocupadocom isso por motivos errados, puramente instrumentais.
Se Brink conseguisse por um instante pensar em Deus como um ser pessoal e entender nossa relação com Deus como uma relação pessoal, veria que suas categorias de pensamento sobre o papel motivacional de Deus para a moralidade são fundamentalmente inapropriadas. É por isso que ele cai no dilema entre benefícios extrínsecos e intrísecos da virtude, entre o uso interesseiro e o uso indiferente da moralidade. Se ele levasse isso a sério, seu casamento não duraria mais seis meses, pois ele teria de escolher entre enganar sua esposa e não se importar com ela - no primeiro caso, tratando-a segundo seus próprios interesses; no segundo, suprimindo seu desejo pelo bem dela. Mas a Bíblia resolve o dilema ao dizer: "quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (1 Coríntios 10.31). Isso não é uma caça às recompensas, e tampouco é um "altruísmo desinteressado". É um altruísmo bastante interessado, que dá glória a Deus em primeiro lugar, serve às pessoas e se beneficia com a consciência limpa das recompensas daí advindas - as quais, ao contrário do clichê que Brink repete sem pensar, não começam só depois da morte, mas também são fruto da providência de Deus e das leis divinas inscritas na estrutura da criação. O cristianismo não cabe nas categorias de pensamento do Dr. Brink.
Brink persiste, no entanto, em seu dualismo, como ao argumentar em [12.3] que, "se a virtude deve ser cultivada pelas suas próprias recompensas, esta justificação deve evitar o apelo aos benefícios extrínsecos da virtude, que são conceptualmente separáveis do facto da virtude, e apelar em vez disso para os benefícios inseparáveis da própria virtude". E conclui:
"Saber se estas concepções das recompensas intrínsecas da virtude são defensáveis é uma questão complexa. O que é importante para os nossos propósitos é que se a virtude é a sua própria recompensa, então haverá um sentido importante em que o apelo às sanções e recompensas divinas fornece uma justificação prudencial da moralidade que é simultaneamente desnecessária e indesejável."
Na nota 19, o Dr. Brink remete a um outro artigo seu para a discussão sobre as "recompensas intrínsecas da virtude", sobre as quais ele não toma partido aqui. De qualquer modo, é frustrante o fato de ele basear todo o seu argumento em uma premissa de importância fundamental que, no entanto, não é defendida no próprio texto. Pior ainda, ele sequer se posiciona claramente acerca dela. Escreve apenas um "se"; se a hipótese não for válida, ele não levantou objeção alguma; e, se for, ele não a defendeu com argumentos.
O parágrafo [12.4] expõe uma outra visão filosófica possível do tema, nos seguintes termos:
"Esta concepção da autoridade da moral tem de insistir que o facto de eu atender a uma exigência moral qualquer de outra pessoa é em si uma razão para eu agir, independentemente de {me} beneficiar com isso. Isto seria uma concepção imparcial da razão prática, reconhecendo uma razão inderivativa para beneficiar os outros. Esta concepção foi mais plenamente desenvolvida na tradição kantiana. Saber se esta concepção é defensável ou não é também uma questão complexa. O que é significativo para os nossos propósitos é que esta concepção da autoridade da moral rejeita a justificação prudencial da moralidade a que muitas tradições religiosas dão corpo."
Vê-se que isso é apenas mais do mesmo. Lamentavelmente, O autor não se posiciona sobre a vertente que expõe, e não a fundamenta com argumentos. Aqui, outra vez, ele aponta um outro artigo seu sobre o tema. Além disso, como já observei na nona parte desta série, a visão kantiana da moral só faz sentido à luz de todo o restante do sistema kantiano, que Brink certamente não abraça. Sem esses pressupostos, Brink não tem nenhuma razão para nos dizer que devemos ser imparciais, e que é por isso que a moralidade dispensa Deus. Ao contrário, parece que a imparcialidade é uma regra moral como outra qualquer, e estamos perguntando sobre as motivações dela juntamente com todo o resto. Não há aqui um argumento sequer sobre por que devemos agir de modo moralmente correto sem justificação prudencial.
Essa seção do artigo é decepcionante pela escassez de argumentos. Tenho a impressão de que Brink está se limitando a listar teses e escolas filosóficas que se oporiam ao que ele pensa ser a religião tradicional. Sendo ele, porém, bastante ignorante sobre o que está criticando - não chegando sequer a entender, por exemplo, as motivações religiosas de um cristão para agir de modo moralmente correto -, mesmo seus poucos argumentos acabam não valendo nada.
Assim, depois de muita confusão e pouco argumento, a seção é concluída em [12.5] da seguinte forma: "Quer decidamos que a virtude é a sua própria recompensa quer decidamos que nenhuma recompensa é necessária, parece que podemos justificar a conduta e o cuidado morais de maneiras que não atribuem qualquer papel que seja a Deus". Como nas seções anteriores, aqui Brink atribui ao "teísmo" um dilema que só tem sua razão de ser dentro de um esquema que desconsidera a pessoalidade de Deus.
Com isso, encerro minhas considerações sobre a seção Motivação moral e a autoridade da moralidade.
"[...] segundo esta concepção da motivação moral, cada pessoa tem uma justificação instrumental para ser moral, nomeadamente, que ser moral é necessário e suficiente para ter uma bem-aventurada vida depois da morte. Segundo esta concepção, o comportamento moral não é bom em si, mas em virtude das suas consequências extrínsecas. Mas [...] supõe-se por vezes que quando se age moralmente por razões puramente instrumentais isto diminui o valor moral dessa acção. Deus pode escolher recompensar o altruísmo desinteressado, mas não pode ser a perspectiva desta recompensa que motiva os agentes, sem que isso ao mesmo tempo roube tais acções das mesmíssimas características que Deus quereria recompensar."
Há várias meias-verdades nesse parágrafo. Brink não problematiza o conceito de "justificação instrumental", quando deveria fazê-lo. Se eu faço o bem à minha esposa por querer o bem dela (afinal, eu a amo), isso exclui o meu desejo de tornar mais fácil que ela me ame de volta? E, caso não exclua, essa segunda motivação é imoral? Ela rouba ou diminui a virtude do bem que faço à minha esposa? Isso é a mesma coisa que fingir amá-la para obter vantagens e recompensas? Seria esse um caso de "justificação instrumental"? No meu entendimento, tudo isso é sem sentido. Brink diz absurdos justamente porque, como já expliquei, ele está preocupado demais com o Deus Juiz. Ele faria bem em se preocupar ainda mais, mas o problema é que ele está preocupadocom isso por motivos errados, puramente instrumentais.
Se Brink conseguisse por um instante pensar em Deus como um ser pessoal e entender nossa relação com Deus como uma relação pessoal, veria que suas categorias de pensamento sobre o papel motivacional de Deus para a moralidade são fundamentalmente inapropriadas. É por isso que ele cai no dilema entre benefícios extrínsecos e intrísecos da virtude, entre o uso interesseiro e o uso indiferente da moralidade. Se ele levasse isso a sério, seu casamento não duraria mais seis meses, pois ele teria de escolher entre enganar sua esposa e não se importar com ela - no primeiro caso, tratando-a segundo seus próprios interesses; no segundo, suprimindo seu desejo pelo bem dela. Mas a Bíblia resolve o dilema ao dizer: "quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (1 Coríntios 10.31). Isso não é uma caça às recompensas, e tampouco é um "altruísmo desinteressado". É um altruísmo bastante interessado, que dá glória a Deus em primeiro lugar, serve às pessoas e se beneficia com a consciência limpa das recompensas daí advindas - as quais, ao contrário do clichê que Brink repete sem pensar, não começam só depois da morte, mas também são fruto da providência de Deus e das leis divinas inscritas na estrutura da criação. O cristianismo não cabe nas categorias de pensamento do Dr. Brink.
Brink persiste, no entanto, em seu dualismo, como ao argumentar em [12.3] que, "se a virtude deve ser cultivada pelas suas próprias recompensas, esta justificação deve evitar o apelo aos benefícios extrínsecos da virtude, que são conceptualmente separáveis do facto da virtude, e apelar em vez disso para os benefícios inseparáveis da própria virtude". E conclui:
"Saber se estas concepções das recompensas intrínsecas da virtude são defensáveis é uma questão complexa. O que é importante para os nossos propósitos é que se a virtude é a sua própria recompensa, então haverá um sentido importante em que o apelo às sanções e recompensas divinas fornece uma justificação prudencial da moralidade que é simultaneamente desnecessária e indesejável."
Na nota 19, o Dr. Brink remete a um outro artigo seu para a discussão sobre as "recompensas intrínsecas da virtude", sobre as quais ele não toma partido aqui. De qualquer modo, é frustrante o fato de ele basear todo o seu argumento em uma premissa de importância fundamental que, no entanto, não é defendida no próprio texto. Pior ainda, ele sequer se posiciona claramente acerca dela. Escreve apenas um "se"; se a hipótese não for válida, ele não levantou objeção alguma; e, se for, ele não a defendeu com argumentos.
O parágrafo [12.4] expõe uma outra visão filosófica possível do tema, nos seguintes termos:
"Esta concepção da autoridade da moral tem de insistir que o facto de eu atender a uma exigência moral qualquer de outra pessoa é em si uma razão para eu agir, independentemente de {me} beneficiar com isso. Isto seria uma concepção imparcial da razão prática, reconhecendo uma razão inderivativa para beneficiar os outros. Esta concepção foi mais plenamente desenvolvida na tradição kantiana. Saber se esta concepção é defensável ou não é também uma questão complexa. O que é significativo para os nossos propósitos é que esta concepção da autoridade da moral rejeita a justificação prudencial da moralidade a que muitas tradições religiosas dão corpo."
Vê-se que isso é apenas mais do mesmo. Lamentavelmente, O autor não se posiciona sobre a vertente que expõe, e não a fundamenta com argumentos. Aqui, outra vez, ele aponta um outro artigo seu sobre o tema. Além disso, como já observei na nona parte desta série, a visão kantiana da moral só faz sentido à luz de todo o restante do sistema kantiano, que Brink certamente não abraça. Sem esses pressupostos, Brink não tem nenhuma razão para nos dizer que devemos ser imparciais, e que é por isso que a moralidade dispensa Deus. Ao contrário, parece que a imparcialidade é uma regra moral como outra qualquer, e estamos perguntando sobre as motivações dela juntamente com todo o resto. Não há aqui um argumento sequer sobre por que devemos agir de modo moralmente correto sem justificação prudencial.
Essa seção do artigo é decepcionante pela escassez de argumentos. Tenho a impressão de que Brink está se limitando a listar teses e escolas filosóficas que se oporiam ao que ele pensa ser a religião tradicional. Sendo ele, porém, bastante ignorante sobre o que está criticando - não chegando sequer a entender, por exemplo, as motivações religiosas de um cristão para agir de modo moralmente correto -, mesmo seus poucos argumentos acabam não valendo nada.
Assim, depois de muita confusão e pouco argumento, a seção é concluída em [12.5] da seguinte forma: "Quer decidamos que a virtude é a sua própria recompensa quer decidamos que nenhuma recompensa é necessária, parece que podemos justificar a conduta e o cuidado morais de maneiras que não atribuem qualquer papel que seja a Deus". Como nas seções anteriores, aqui Brink atribui ao "teísmo" um dilema que só tem sua razão de ser dentro de um esquema que desconsidera a pessoalidade de Deus.
Com isso, encerro minhas considerações sobre a seção Motivação moral e a autoridade da moralidade.
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Resta do artigo apenas um parágrafo, [13.1], que vem sob o subtítulo Comentários finais. Antes de passar a ele, no entanto, quero complementar tudo o que já disse sobre o conteúdo do artigo com uma breve observação sobre algo de que ele não trata, e que me parece ser uma omissão deveras relevante. Talvez eu devesse ter dito isso em um momento anterior desta série, mas creio que não é tarde demais para dizê-lo agora. É o seguinte: em certo sentido, toda essa discussão é enganosa. Todos os esforços de Brink para colocar dificuldades à posição "teísta" com base na moralidade apenas pressupõem que o ateísmo é uma alternativa viável. Mas, se há "teísmos" com dificuldades para dar conta da objetividade moral, o ateísmo não explica sequer a simples existência de categorias morais na mente humana. Uma vez que se admita um universo feito de matéria, energia, tempo, espaço e leis físicas, não há nenhum meio pelo qual possa resultar alguma dimensão moral, mesmo que apenas ilusória. A consciência moral é impossível nesse quadro, porque a própria consciência é impossível em todos os domínios. Esse é um problema para o qual eu tinha esperança de ver alguma discussão no artigo de Brink. Mas é mais um tema sobre o qual ele parece jamais ter pensado adequadamente.
O parágrafo final resume as conclusões centrais do artigo - todas equivocadas, como já creio ter demonstrado. Talvez fosse bom eu fazer um resumo de meus argumentos, mas estou com pouco tempo para isso. Porém, nem tudo nesse parágrafo final é mera repetição. Ao exaltar mais uma vez a autonomia da ética, o Dr. Brink afirma que "é esta concepção moralizada dos deuses que afasta Sócrates do género de politeísmo sem princípios dos seus antecessores e contemporâneos". Ainda que isso seja verdade, apenas reforça minha impressão de que, em se tratando de religião, a estrutura de plausibilidade de Brink está fortemente circunscrita ao ambiente politeísta onde a filosofia nasceu. Sua tentativa de analisar o monoteísmo judaico-cristão sem perceber que precisa refinar ou reformular suas categorias de pensamento é o grande responsável, no plano teórico, pelo seu fracasso - aquilo que na terceira parte designei como um politeísmo de um deus só.
Porém, o fracasso filosófico geralmente tem motivações mais profundas, e o parágrafo final também dá mostras disso. O breve comentário sobre Sócrates transcrito acima é seguido por uma nota que diz: "Esta concepção moralizada dos deuses pode ser também responsável por Sócrates ter sido levado a tribunal, acusado de impiedade, ainda que possamos pensar que esta concepção moralizada é mais piedosa do que a sua rival sem princípios". Desconheço evidências de que seja esse o motivo da acusação feita a Sócrates, mas o que me parece mais notável é o fato de Brink se referir à sua própria concepção como "moralizada" e "mais piedosa", ao passo que a dos religiosos por ele criticados ao longo de todo o artigo é "sem princípios". Brink vê aqui uma versão milenar do duelo entre sua "autonomia da ética" e o voluntarismo que ele definiu como o vilão do artigo. Repito que não aceito essas categorias, mas é o ponto de vista de Brink que importa aqui. Se ele elogia Sócrates, é porque olha o velho filósofo grego e vê sua própria imagem refletida. Sua intenção, no fim das contas, é bastante autolaudatória; e, falando de uma perspectiva mais ampla, boa parte do esforço despendido nesse artigo, se não no restante de sua obra, consiste em provar, para os outros e para si mesmo, que ele pode ser bom sem depender de Deus para isso.
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