23 de junho de 2007

Autocrítica literária

Pretendo escrever algum dia uma breve análise das minhas próprias habilidades e inabilidades intelectuais, no sentido mais amplo possível do termo, com base no que pude aprender sobre mim mesmo através do contato com cérebros diferentes. Mas é notável - e, por enquanto, suficiente - a minha quase total falta de criatividade, especialmente no sentido artístico dessa palavra. Minha mente é racional e analítica demais, e tenho a impressão de que só sou capaz de aprender por imitação e pela análise consciente de diferentes modelos. Em vista disso tudo, tenho um pendor natural para a prosa dissertativa em detrimento da narrativa (a poesia, então, está totalmente fora de questão - acho que uma das minhas maiores frustrações na vida é a minha absoluta incapacidade de escrever poemas, por mais horríveis que sejam).

Faz algum tempo que percebi isso, e fiz uma tentativa de encarar esse fantasma e escrever um conto. Mesmo assim, não pude deixar de seguir conscientemente alguns modelos. O objetivo era aprender a escrever narrativas que tivessem um mínimo de nexo, e de fato não fui além desse mínimo. O resultado foi um conto que chamei de Em busca de respostas: uma história escrita às pressas e muito mal revisada, sem pé nem cabeça, com mudanças súbitas de ambiente, personagens totalmente doidos, piadas satíricas improvisadas e freqüentemente idiotas, conexões mal explicadas e algo surreais. Nada surpreendente, já que tomei como modelos justamente a estrutura narrativa e o substrato psicológico dos sonhos mais esquisitos que já tive. Pelo menos não foi de todo em vão: meus poucos amigos que leram o conto garantiram que deram boas risadas, e eu cumpri meu objetivo principal, que era o de aprender a dar asas à imaginação, numa espécie de brainstorming narrativo, propositalmente inconseqüente. Embora hoje eu veja que algo de minhas idéias (inclusive algumas que então eram apenas incipientes) poderia ser inferido a partir do texto, não havia em minha mente qualquer propósito de transmitir alguma mensagem. Essa total falta de sentido na história é, na verdade, tão evidente que nem o protagonista do conto pôde deixar de percebê-la.

Depois de ter expurgado dessa forma a minha repulsa não intencional pelo gênero narrativo (isto é, no que diz respeito aos meus próprios textos, pois nunca tive objeção alguma aos dos outros), decidi me voltar para coisas mais sérias e sensatas, e foi nesse espírito que escrevi meu segundo conto, intitulado Memórias de um moribundo. O efeito que obtive foi exatamente o oposto do conto anterior. Pois este foi um conto cheio de sofrimento, melancolia, incerteza e até uma certa dose de brutalidade. Talvez alguém pudesse pensar que as crises do personagem principal fossem um reflexo das minhas próprias. Mas isso está muito longe da verdade. Dois leitores do meu conto sugeriram que havia nele uma influência de Tolkien, e nisso não estavam errados, pois ele foi de fato o modelo que adotei enquanto escrevia esse conto. Mas meus amigos estavam pensando primordialmente na riqueza descritiva do texto, pela qual eu não sinto ter qualquer mérito, já que extraí todos os dados necessários à caracterização do ambiente de um livro que nenhum dos meus amigos leu. O que eu tentei imitar no filólogo de Oxford foi, na verdade, algo muito diverso. Foram duas coisas, na verdade. Uma delas é aquilo que ele denominava "eucatástrofe", isto é, a boa catástrofe, aquela dose de dor, de insegurança, de ausência de sentido aparente que é fundamental para que as histórias, ou pelo menos as histórias sérias, tenham algum valor mais profundo. Os contos de fada, as lendas populares, os mitos e mesmo a própria literatura não teriam o valor que têm sem esse elemento psicológico que é parte essencial da constituição e da situação dos seres humanos neste mundo.

Essa influência, sem dúvida, recebi de Tolkien, mas trata-se de uma influência meramente intelectual ou, pra ser mais exato, uma questão de filosofia literária. Mas houve outra influência, mais propriamente metodológica, por assim dizer. Recebi-a ao ler o Athrabeth, um belíssimo diálogo entre uma mulher (Andreth) e um elfo (Finrod), ocorrido ainda na Primeira Era do Sol (portanto mais de seis milênios antes da aventura narrada em O Senhor dos Anéis). Os dois sábios discutiram sobre coisas como a natureza da morte, as diferentes maneiras de enxergar o mundo, os mais profundos recessos da psicologia humana (e élfica) e o fim último da existência. Até onde sei, é o texto mais profundamente filosófico e mais nitidamente cristão que Tolkien já escreveu em conexão com seu universo fictício. Porém, embora meu segundo conto também envolvesse (ou tentasse envolver) grandes questões filosóficas e psicológicas, e também tivesse um fundo cristão evidente, o que aprendi do Athrabeth para utilizar ali foi outra coisa. Pois, embora seja impossível que alguém escreva sobre tais dúvidas e dilemas sem jamais tê-los atravessado, aqui eles não indicam inquietações interiores em seu autor, mas ilustram seu caminho interior rumo a uma solução já atingida e tida como plenamente satisfatória. Tolkien faz isso, no entanto, de um modo manifestamente artístico, o que o distingue de textos puramente dissertativos como os da dialética medieval, e mesmo dos diálogos de Platão. Pois aqui o dilema envolve todo o ser, e não apenas o intelecto (o que ilustra bem a sábia distinção feita por Gabriel Marcel entre um autêntico "mistério" e um mero "problema"), e o autor reconstitui a vivência do mesmo por meio de caminhos totalmente diversos na vida de personagens que atravessaram experiências profundamente diferentes das suas próprias.

Não sei se obtive sucesso nessa minha imitação, mas logo percebi que a própria natureza do método utilizado impede que a apresentação do problema e de sua solução adquira a forma de uma exposição rigorosamente argumentativa. Tudo o que se pode fazer nesse caso é fornecer um vislumbre, um esboço do caminho a ser percorrido. E o sucesso da transmissão da mensagem está condicionado ao grau em que as experiências do leitor correspondem às dos personagens (e, por implicação, às do autor), bem como à sua capacidade de perceber isso fazendo abstração das particularidades acidentais de cada um dos casos. Tentei minimizar esse risco de incompreensão colocando em pauta problemas que me parecem ser inerentes à própria natureza humana e, portanto, presentes na vida interior de cada homem individual. Da mesma forma, sugeri soluções de aplicabilidade não menos universal, embora, naturalmente, não sejam de minha autoria. Lembrem-se, eu sou apenas um imitador.

O resultado foi até satisfatório, mas a descrição do drama do protagonista tornou o texto demasiado pesado e subjetivo, pra não dizer sério e (dependendo do estado de espírito do leitor) até um pouco deprimente, num contraste marcante com o primeiro conto. Aventurei-me então a escrever um terceiro, numa tentativa de reunir o humor inventivo, satírico e absurdo do primeiro à serenidade e ao esforço de transmitir algo valioso que se encontram no segundo. Esse conto eu chamei de Dois filósofos e uma girafa. O exemplo que resolvi seguir não poderia ser mais adequado, pois ele reflete ao mesmo tempo a profundidade literária e intelectual de Tolkien e os inocentes desvarios da mente adormecida. Refiro-me a G. K. Chesterton. No caso, a imitação foi total: foi esse mesmo escritor inglês quem me ensinou, no primeiro capítulo de um de seus livros dissertativos, o Ortodoxia, a parte principal da lição que tentei transmitir, e até algumas das metáforas que utilizei inspiraram-se nesse mesmo capítulo. Paralelamente a isso, extraí de uma ficção policial intitulada O homem que foi Quinta-feira, do mesmo autor, a idéia de apresentar conceitos filosóficos muito sérios por meio de uma narrativa propositalmente absurda ou, melhor dizendo, governada por leis próprias que não são difíceis de intuir, mas que conflitam nitidamente com os da vida real, de modo que a história seria imensuravelmente ridícula caso se desenrolasse de fato no nosso mundo.

O desafio nessa coisa toda é justamente levar o absurdo tão longe quanto possível, ou seja, desenvolver todas as conseqüências naturais e sensatas que decorrem desse absurdo fundamental sobre o qual se baseia toda a história, tratando-o o tempo todo como se fosse a coisa mais normal, respeitável e corriqueira do universo. Aclamado por muitos como o "mestre do paradoxo", mesmo pelo estilo de suas dissertações, Chesterton não tinha a mínima dificuldade em aprontar esse tipo de coisa. Não acho que eu tenha sido muito bem-sucedido na tentativa de imitá-lo, pois no fim das contas a narrativa acabou ficando estática demais, como naquela interessante peça de T. S. Eliot cujos eventos objetivos podem ser narrados em duas ou três frases (refiro-me a Murder in the cathedral). Mas não direi que o esforço foi em vão. Embora o leitor do conto possa não se beneficiar disso, eu mesmo aprendi muito com ele.

Já que estou chegando ao final do post, vou encerrar com um breve comentário sobre os finais dos contos. O que há em comum entre os três é que de nenhum se pode dizer que teve um final feliz. O final do primeiro pode até ser engraçado, e o do segundo pode, talvez, ser animador para alguns leitores, apesar de ser trágico; no terceiro, até onde posso ver, nada de bom pode ser visto, e até o seu caráter ridículo contribui para acentuar a sensação de completa ruína (ou pelo menos essa era a minha intenção). Não sei explicar devidamente a causa dessa estranha coincidência. Talvez seja mesmo mais fácil identificar erros do que propor caminhos saudáveis. Seja como for, não deixa de ser interessante o fato de que tantos finais tristes possam ter brotado de uma mente tão genuinamente feliz quanto a minha. Talvez um dia eu venha a me conhecer o suficiente para compreender a razão disso.

2 comentários:

Anônimo disse...

Com certeza André!
Grande abraço.

Anônimo disse...

Oi, achei teu blog pelo google tá bem interessante gostei desse post. Quando der dá uma passada pelo meu blog, é sobre camisetas personalizadas, mostra passo a passo como criar uma camiseta personalizada bem maneira. Até mais.