Ultimamente tenho tido pouco tempo para manter em dia todos os meus compromissos virtuais. Além deste blog, que tento atualizar tão regularmente quanto as condições me permitem, troco e-mails com uma quantidade razoável de pessoas e participo sempre que possível de debates no orkut, geralmente com gente que nunca vi na vida. Este último hábito eu venho mantendo há uns dois anos e meio e, apesar de não estar muito ativo nisso ultimamente, não posso deixar de reconhecer que é uma experiência deveras enriquecedora. Mesmo nos piores casos, isto é, quando o interlocutor é desonesto, burro ou ambas as coisas, essa atividade serve como oportunidade de conhecer melhor as pessoas (e, por extensão, a natureza humana) e tentar fazer algo por elas, além de ser um excelente exercício de paciência, embora eu deva reconhecer que às vezes esse exercício é pesado demais para mim. Mas em algumas discussões o que lucrei foi de fato muito mais que isso, pois aprendi lições importantes sobre outros aspectos da realidade, e só por isso já posso dizer que valeu a pena. Um desses debates terminou há quase um ano, e boa parte das idéias que exponho aqui hoje me ocorreram ao longo ou em decorrência dele.
O nome do tópico em que travei essa discussão é por si mesmo bastante esclarecedor: Determinismo versus livre arbítrio. Quem porventura tenha acompanhado meus textos anteriores certamente já viu referências passageiras ao determinismo feitas em termos nada lisonjeiros. O que pretendo fazer agora é apenas justificar essas menções. É bom esclarecer, porém, que há muito mais que poderia ser dito contra o determinismo, especialmente quanto a suas conseqüências práticas para a humanidade do ponto de vista moral. Algum dia pretendo voltar a esse ponto e completar minha crítica. Por enquanto limito-me a uma crítica puramente filosófica dos seus fundamentos. Mas antes de expor os argumentos, cumpre esclarecer exatamente o que entendo por "determinismo", e assim distinguir o que está em discussão do que não está. Nos debates teológicos, por exemplo, a expressão "livre arbítrio" aparece quase sempre vinculada ao tema da predestinação, por isso é bom que eu esclareça que não a emprego no sentido que adquire nesse contexto. Utilizo-a como afirmação da possibilidade de o homem fazer escolhas reais, ou seja, sem coerção externa absoluta, com todas as conseqüências que isso acarreta.
Esse é o sentido exato do conceito que pretendo abordar aqui. Mas a palavra "determinismo" tem uma outra acepção comum, de modo que convém discuti-la brevemente. Refiro-me ao determinismo em seu sentido mais absoluto, aquele que abordei no post A ciência das causas ocultas, e que abrange, por exemplo, a mecânica de Newton e a interpretação de Einstein da mecânica quântica. Naturalmente, essa concepção está incluída naquilo que pretendo combater aqui, pois se o estado do universo é determinado univocamente em função dos estados anteriores, e se o homem é parte do universo assim como todo o resto, segue-se logicamente que o homem não tem de fato liberdade alguma. Entretanto, seria um equívoco supor que a mera negação desse determinismo no estilo newtoniano implica na existência do livre arbítrio. O máximo que se pode dizer é que o formalismo quântico o torna possível sem exigir uma violação das leis físicas fundamentais. Mas se o homem for constituído de pura matéria, não há nada nele que o capacite a colocar-se acima do processo cego e aleatório da redução do pacote de onda e influenciar as ações de seu próprio corpo. Por isso o materialismo, seja ele determinista ou não no sentido laplaciano, é necessariamente determinista no sentido de que não oferece lugar algum ao livre arbítrio.
Refutar o determinismo resulta, portanto, em refutar o materialismo e, muito embora haja também filosofias deterministas que não são materialistas, como a de Spinoza, a versão materialista tem sido a mais difundida. Essa posição, entretanto, é claramente autocontraditória, pois implica em reduzir a reações químicas ocorridas no cérebro todos os fenômenos da consciência humana, incluindo-se aí nossos pensamentos e sensações de modo geral. Sendo assim, a afirmação de que os processos intelectuais da mente do homem também são meras expressões de fenômenos físicos e químicos é uma conclusão natural e coerente com o materialismo. Mas se todas as sensações são redutíveis à química, também o é a sensação de convicção de que algo é verdadeiro ou falso. A conclusão de que certa idéia é verdadeira não tem, assim, relação alguma com a verdade das coisas, sendo apenas o resultado de uma série de processos químicos inevitavelmente desencadeados no cérebro e que produzem uma determinada sensação. Ao acreditar numa afirmação qualquer, o cérebro materialista está simplesmente sendo uma vítima das circunstâncias. Portanto, visto que nossa sensação de convicção, por mais forte que seja, nada nos diz sobre a verdade de um enunciado, segue-se que não podemos coerentemente afirmar que algum enunciado é verdadeiro. Não podemos afirmar, por exemplo, que o materialismo é verdadeiro. A contradição é óbvia. Se for excluído o elemento imaterial da mente, sua capacidade de atingir a verdade através da comunhão com o Logos, resta apenas o ceticismo absoluto dos velhos sofistas, incapaz de justificar até a si próprio.
Há outras questões, porém. O materialismo, pelo visto, pode ser refutado pela análise de suas conseqüências, a qual resulta num perfeito reductio ad absurdum. Mas refutar o materialismo não é refutar o determinismo e, além do mais, existem outros problemas filosóficos com este último. O principal deles, creio eu, é a falta de consideração pela experiência humana ou, dizendo de outra forma, o apego idolátrico a uma modalidade específica dessa experiência em detrimento de todas as outras. Discuti esse problema num outro texto, Crianças mutiladas, onde expliquei a razão pela qual esse me parece ser o erro fundamental presente em toda forma de reducionismo, materialista ou não. Volto a tocar nesse assunto porque, como eu disse naquela ocasião, o determinismo é apenas um dentre os muitos destinos possíveis a que leva o modo reducionista de pensar.
Existem diversas maneiras de se obter conhecimento sobre os multiformes aspectos da realidade, entre as quais se encontram o método experimental (como nas ciências da natureza), o pensamento abstrato (como na matemática e na metafísica), a atenção ao depoimento de testemunhas (como na teologia, na história e nos julgamentos judiciais) e a experiência subjetiva (como no autoconhecimento, bem como na psicologia e na antropologia filosófica), entendida não apenas no sentido existencialista, mas incluindo, de maneira geral, a apreensão direta da realidade pela consciência individual. Quem prestar alguma atenção, por mais ínfima que seja, a este último ponto e examinar sua própria experiência perceberá imediatamente que o livre arbítrio, a liberdade de escolha, é um traço fundamental do homem, ou pelo menos assim parece. Para contornar esse fato, o determinista precisa subordinar sua experiência imediata de si mesmo a algum método de conhecimento que considera mais confiável, seja este de natureza científica ou filosófica. Fazendo isso, ele pode concluir que não há espaço para a idéia da liberdade humana nesse contexto, e então retornar à sua experiência dessa mesma liberdade para explicá-la como sendo mera ilusão derivada de suas imperfeições cognitivas ou algo do tipo. O rapaz com quem debati, por exemplo, acreditava, citando Spinoza, que nossa sensação ilusória de liberdade deve-se à nossa ignorância acerca das causas reais subjacentes às "escolhas".
Esse tipo de raciocínio é evidentemente uma inversão devida, por um lado, à incompreensão da natureza da própria reflexão filosófica e, por outro, da natureza da experiência subjetiva em discussão. Posso acrescentar ainda um terceiro problema, que é o desprezo pelos elementos conflitantes da constituição humana e da própria natureza, resultando numa dicotomia demasiado radical e no desprezo por um dos seus extremos conceituais. Nos parágrafos seguintes vou explicar melhor esses três problemas, e vou fazer isso na ordem inversa a esta em que acabo de enunciá-los.
O debate entre materialismo e idealismo no século XIX é um bom exemplo dessa opção desnecessária por um extremo em detrimento do outro. Pois enquanto os idealistas levaram a precedência da mente sobre a matéria a ponto de negar a própria objetividade da realidade exterior, ou pelo menos a nossa capacidade de conhecê-la, os materialistas julgaram que a correção desse exagero os autorizava a rejeitar como ilusão idealista qualquer constituinte não material da mente. É o que se vê, por exemplo, nas críticas de Feuerbach e Marx à filosofia de Hegel. No caso, o problema de trocar um extremo pelo seu oposto foi agravado pela ausência da percepção de que os dois extremos eram justamente isso, extremos de uma gradação contínua de posições filosóficas possíveis, e não as duas únicas existentes. Os deterministas freqüentemente cometem um erro análogo (e conceitualmente relacionado) quando supõem que a liberdade, para existir, deve ser tão irrestrita quanto apregoado pelo delírio de Sartre. Naturalmente nenhum defensor minimamente sensato do livre arbítrio jamais negou que há uma infinidade de fatores, tanto internos quanto externos ao indivíduo, que limitam severamente seu campo de possibilidades de ação. Mas seria um absurdo primário deduzir daí que esses fatores representam uma coerção total, absoluta e irremovível em todos os atos humanos. A forma lógica dessa conclusão pode ser descrita assim: "Não sou livre para decidir andar até a lua, portanto também não sou livre para decidir andar até a esquina."
O segundo erro a que me referi acima consiste na confusão entre a experiência e a reflexão sobre a mesma. É o que ocorre quando afirmo que sinto ser livre e o determinista replica que isso se deve à minha ignorância sobre as reais causas de minhas ações. Ora, a minha sensação de liberdade não tem nada de intelectual. É uma experiência de outro tipo, algo mais parecido (embora não do mesmo tipo também) com as percepções provenientes dos sentidos, é algo como um "sentido interno", por assim dizer. Muito poderia ser dito sobre a teoria psicológica implícita na concepção determinista, mas, para encurtar a conversa, apenas assinalarei que esse argumento nada mais é que uma mudança de assunto. A minha sensação de liberdade não é o resultado de uma busca intelectual frustrada pelas causas das minhas ações, e sim algo que precede toda essa racionalização. Que as duas coisas são absolutamente diferentes é algo fácil de perceber mediante a constatação de que há no mundo muitos eventos cujas causas eu desconheço completamente, sem que isso gere em mim alguma sensação de tê-los provocado.
Mas o maior problema de todos, o mais fundamental, é mesmo a excessiva abstração, pela qual os escolásticos são famosos até hoje (e não totalmente sem razão, embora as abstrações dos modernos sejam geralmente mais freqüentes e mais estúpidas, se bem que menos profundas). A filosofia deve ser algo que parte da experiência humana em toda a sua complexidade e mesmo em toda a sua confusão, e então prossegue na tentativa de explicar essa experiência abarcando-a em sua totalidade, e não jogando fora temerariamente parte dela como sendo ilusória. Para ter o direito de acreditar em minha própria experiência mais básica sobre mim mesmo eu não preciso da autorização de um comitê de cientistas ou filósofos. Se a ciência e a filosofia desses senhores contradizem aquilo que conheço diretamente em mim mesmo, tanto pior para elas. Por que eu deveria substituir minha experiência concreta por algo tão abstrato quanto a doutrina materialista ou a lei da "causalidade irrestrita", que não experimento nem em sonhos? Isso seria demasiado parecido com o expediente de rejeitar os fatos porque contradizem nossas teorias prediletas, ou mesmo porque simplesmente se colocam fora do domínio delas.
Um comentário:
Caro André,
Esperando haver compreendido bem o seu brilhante texto, diríamos de nossa parte o seguinte:
Talvez pudéssemos afirmar que o materialismo é a desesperada tentativa da mente orgulhosa em interpretar a vida, distanciada do seu mais profundo e poderoso sentimento: o sentimento da existência de Deus. Haveremos de convir que este sentimento não é aprendido; existe no coração humano e simplesmente independe do tempo e do espaço.
O materialismo é um beco sem saida. Vocé o diz muito bem em seu texto. Muito claro e bem colocado e suas palavras nos ensinam muito a respeito.
Negar a existência do sentimento natural de Deus, fatalmente induz à negação do Espírito e, a negação do Espírito e de Deus, efeito do orgulho intelectual, conduz a mente
à aberração do materialismo.
Talvez, se observarmos com algum cuidado, haveremos de concluir que o homem possui simultanecamente limitações inevitáveis na esfera física e liberdade ilimitada no pensamento. O olho humano, por exemplo, é uma estrutura limitada a um campo específico de percepções da realidade física. Ainda que o homem amplie a instrumentação tecnológica para a investigação desta mesma realidade, o sensório não conseguirá perceber a gama ilimitada de vibrações da matéria.
Mas no pensamento o homem goza de uma liberdade ilimitada. E o livre-abítrio é absoluto no tocante às escolhas morais que venha fazer durante toda a sua existência.
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