17 de outubro de 2007

Memórias litorâneas

Sinto que hoje preciso quebrar um pouco a rotina deste blog, tão afeita a dissertações filosóficas, teológicas e literárias, dentre outras, para produzir um texto algo mais narrativo. Para ser mais exato, pretendo contar algo da viagem que fiz na semana passada a João Pessoa. Chesterton disse certa vez que "um homem bem pode ser menos convencido de uma filosofia por quatro livros do que por um livro, uma batalha, uma paisagem e um velho amigo". Embora essa viagem que fiz não tenha me convencido de filosofia alguma, não deixa de ser verdade que experiências mais concretas como essa contribuem significativamente para o enriquecimento pessoal, mesmo em se tratando de sujeitos altamente teóricos para os quais o aprendizado através dos livros é sempre mais fácil, como é o meu caso. Além disso, o simples fato de ter sido a primeira vez, em toda a minha vida, que saí do estado de São Paulo já basta para explicar em parte o motivo pelo qual essa viagem foi tão marcante, bem como o fato de eu desejar falar sobre ela enquanto as memórias estão frescas em minha mente.

O caráter excepcional dessa coisa toda começou ainda muito antes que eu pusesse os pés em algum lugar mais distante do meu local de nascimento, pois eu também nunca havia andado de avião. O vôo de ida foi noturno, de modo que não deu para ver nada de lá de cima. Ainda assim, achei a experiência muito boa. A decolagem é melhor que o pouso, e para mim o melhor momento foi quando senti que estávamos saindo do chão. De resto, fiquei com a impressão de estar num ônibus enorme que, embora andasse por uma estrada um pouco esburacada (sim, pois as ocasionais trepidações me faziam pensar se não havia de fato buracos no céu), tinha a inegável vantagem de contar com moças servindo lanchinhos, sucos e refrigerantes. Como meus companheiros de viagem resolveram cochilar, passei as quatro horas do vôo entretido com os sudokus da revistinha que me forneceram. A volta foi bem mais complicada e cansativa: com o vôo cancelado por problemas no avião, ficamos seis horas no aeroporto esperando que resolvessem o que fazer conosco. Mas pelo menos foi graças a isso que decolamos na tarde subseqüente à madrugada em que deveríamos ter decolado, de modo que pude ter uma vista inesquecivelmente bela do mundo lá embaixo.

Do evento que motivou a nossa viagem, o Encontro Nacional de Química Analítica, não tenho muito que falar. Apresentei um painel sobre um tema em que trabalhei na Embrapa no semestre passado, a diferenciação de variedades de citros usando espectroscopia de fluorescência, que suscitou o interesse de quatro pessoas. Não tive, porém, a mesma sorte que elas, pois nos meus passeios por entre os painéis não encontrei um único que me interessasse. Química já não é um assunto dos meus preferidos, e não cheguei sequer a entender parte dos títulos que li. Creio que os únicos trabalhos que poderiam me ser úteis eram os de quimiometria, mas infelizmente não pude vê-los porque todos os painéis dessa área foram apresentados no mesmo horário em que eu apresentei o meu.

Houve outros pequenos infortúnios. A caipirinha de lá não é muito boa; em compensação, tomei sucos de frutas das quais nunca havia ouvido falar, dentre as quais destaco a mangaba. Choveu no coquetel de abertura do congresso, molhando todos os salgadinhos, que se encontravam expostos sobre as mesas ao ar livre; pelo menos eu já havia comido bastante quando isso aconteceu. Quando meu amigo Metralha e eu fomos ao ponto mais oriental do continente, o Farol do Cabo Branco, para ver o sol nascer, também o tempo nublado nos frustrou, embora a paisagem tenha, ainda assim, feito valer a pena a caminhada de uma hora. E choveu também quando fomos ver o pôr-do-sol na margem do Rio Paraíba (a Praia do Jacaré) ao som do Bolero de Ravel. Não vimos o sol declinar, mas garanto que foi, pelo menos, o crepúsculo mais belo que já ouvi.

O clima de João Pessoa é, aliás, surpreendente por si mesmo, e merece descrição mais detalhada. O calor é intenso, e o sol queima mesmo em tempo nublado; que o digam minhas canelas, onde esqueci de passar o protetor solar em um dos passeios pela praia. A sensação de calor é, porém, significativamente atenuada pelos ventos fortes e constantes que parecem jamais cessar. Houve chuva em todos os dias, várias vezes por dia, embora só uma das chuvas que vi tenha persistido por uma hora. E a combinação de uma longitude significativamente menor com um fuso horário idêntico ao de Brasília produz um fenômeno que me surpreendeu, a despeito de sua obviedade: nesta época do ano o sol nasce lá pelas quatro e meia da manhã e se põe antes das cinco e meia da tarde. A fim de ver o sol nascer, precisei acordar às três e pouco da madrugada. Por falar nisso, cabe observar que, mesmo nessas caminhadas noturnas, não vi nem ouvi falar de qualquer sinal de assaltos, prostituição e outras coisas que é de se esperar que existam em lugares assim, especialmente numa cidade com seiscentos mil habitantes. E as praias são limpas.

Não fiz novos amigos no local, e minhas companhias (muito agradáveis, aliás) foram mesmo os colegas de trabalho que foram comigo até lá: o Metralha, a Vivian, a Ana Flávia e a Lucimar. Apesar disso, não pude deixar de apreciar profundamente o povo da cidade, por sua charmosa simplicidade e sua extraordinária amabilidade. Se houvesse encontrado essa recepção apenas por parte dos funcionários do hotel poderia até achar normal, pois eles são pagos para isso (embora não por mim, no caso, pois minha bolsa jamais me permitiria pagar um hotel como aquele, para não falar nas passagens de avião). Aliás, não pude deixar de ficar um tanto encabulado ao ser subitamente jogado nesse ambiente com dezenas de pessoas prontas a me servir nos mais mínimos detalhes, como se eu fosse alguém importante. Mas o fato é que encontrei uma atitude parecida entre o povo da cidade, desde os vendedores das lojinhas e garçons dos quiosques até os taxistas e as pessoas que estavam na praia, com destaque especial para os motoristas, que não hesitavam em parar à menor sugestão de que pretendíamos cruzar a faixa de segurança. Quem está acostumado com o trânsito em São Paulo, mesmo no interior, pode facilmente imaginar o tamanho da minha surpresa diante desses acontecimentos, que se repetiram durante toda a semana sem causar qualquer declínio na minha estupefação. Também chamou a minha atenção a ausência total de descendentes de orientais entre os habitantes da cidade: todos os que vi por lá eram de longe, a começar pela minha amiga Vivi; assim como o sotaque característico, nitidamente nordestino sem deixar de ser completamente inteligível (ou quase). Não nos era possível esquecer que estávamos no nordeste. A não ser em uma ocasião em que, andando na praia em direção ao sul, escutei um funk, ao invés do forró que imperava absoluto; por um momento me ocorreu que talvez eu tivesse distraidamente caminhado um pouco demais e ido parar nas praias do Rio de Janeiro.

Mas não posso encerrar este post sem falar da coisa mais grandiosa e óbvia que vi por aquelas bandas: o mar. Para alguns talvez seja difícil entender minha empolgação com esse fato, e confesso que eu mesmo não esperava sentir isso. Mas é compreensível se for levado em consideração que, antes dessa viagem, eu havia visto o mar uma única vez, há sete anos, quando permaneci duas ou três horas numa praia do litoral norte paulista, que não se compara às de João Pessoa. Desta vez, porém, tive tempo de sobra para sentir a água batendo nas minhas pernas, ver a areia indo e vindo, observar os bichinhos estranhos na areia e, acima de tudo, ouvir o som constante e eternamente repetitivo daquela bela e monstruosa massa de água. Há algo no som da água e no seu aspecto, nesses ambientes naturais, que traz uma estranha espécie de tranqüilidade, ao mesmo tempo em que estimula igualmente a razão, a imaginação e a emoção. Não sei explicar; só sei que ali é um excelente lugar para pensar na vida e elevar a alma até Deus. Contemplando em silêncio aquela areia e aquela água que enchiam meus sentidos, não pude deixar de dizer, intimamente embevecido: "Obrigado, Senhor, por ter feito o mar".

Pode-se, talvez, levantar objeções a esses meus sentimentos religiosos enquanto tais ou à importância espiritual dos mesmos, mas permanece o fato psicológico de que a proximidade do oceano trouxe um efeito enormemente benéfico (eu poderia dizer "terapêutico") sobre a minha mente. É bem possível e até provável que esse efeito seja, no fim das contas, puramente orgânico. De qualquer forma, penso que essa experiência não é só minha, não só porque pessoas que conheço já relataram sensações parecidas, mas também porque naquele momento não pude deixar de me lembrar que Tolkien parece ter falado dessa mesma coisa ao seu próprio modo, literário e mitológico, no Ainulindalë, o conto da criação de Arda. É dito que quando Ilúvatar, o Todo-poderoso, mostrou à multidão dos Ainur (seres celestiais criados por ele) uma visão do mundo vindouro, inspirada nos temas da música que eles próprios haviam acabado de entoar, a reação deles foi de perplexidade, por entenderem, pela primeira vez, que a Música tinha outro propósito além de sua própria beleza. E prossegue:

"Já os outros Ainur contemplaram essa habitação instalada nos vastos espaços do Universo, que os elfos chamam de Arda, a Terra; e seus corações se alegraram com a luz, e seus olhos, enxergando muitas cores, se encheram de contentamento; porém, o bramido do oceano lhes trouxe muita inquietação. E observaram os ventos e o ar, e as matérias das quais Arda era feita: de ferro, pedra, prata, ouro e muitas substâncias. Mas de todas era a água a que mais enalteciam. E dizem os eldar que na água ainda vive o eco da Música dos Ainur mais do que em qualquer outra substância existente na Terra; e muitos dos Filhos de Ilúvatar escutam, ainda insaciados, as vozes do Oceano, sem contudo saber por que o fazem."

2 comentários:

Fernando Pasquini disse...

Este sentimento de tranqüilidade é muito comum à nós cristãos, e para mim é como uma tomada de consciência da realidade que nos cerca. A rotina e a correria do mundo moderno muitas vezes nos fazem esquecer que estamos num mundo criado por um Deus que nos ama. Mas é quando vemos o mar, ouvimos uma música bonita ou até mesmo nos impressionamos com o simples fato de abrirmos os olhos após uma boa noite de sono percebemos que a Sua Mão está em todos os lugares. Não seria um simples impulso de emoção, uma vez que vem acompanhado de razão. É realmente o Espírito Santo de Deus revelado na natureza, que nos faz parar para pensar e refletir sobre o mundo. Isto é algo que os orientais não percebem - ao tentarem atingir o "nirvana", esquecem tudo o que os fizera chegar até ali e penetram no mundo vazio das suas mentes. O fato é que toda a razão e a revelação de Deus está presente no lado exterior, e não no interior.

Vi disse...

Andoreee!

Extraordinário este post! Nota 10!
Relendo as suas belas palavras consegui relembrar alguns momentos que passei lá, a começar pelas caminhadas..pelas refeições..
Espero que vc tenha guardado boas lembranças. E digo mais: como é bela essa natureza.

B-jos
Vivi