2 de outubro de 2007

O Verbo que não se fez carne

Nesta semana resolvi reler um interessante livro que adquiri há mais de dois anos e que fala sobre a ecdótica ou crítica textual (isto é, a ciência que procura reconstituir fidedignamente a forma original de um texto antigo a partir das cópias posteriores que chegaram até nós) do Novo Testamento e algumas questões correlacionadas. Não será esse o assunto de hoje, embora seja um tema muito interessante e eu pretenda discorrer sobre ele futuramente. Mas acredito que foi em parte por causa dessa releitura que eu me lembrei de uma discussão que tive há mais de dois anos sobre a identidade de Jesus Cristo e a natureza de sua mensagem, discussão que rapidamente desviou-se, como é natural, rumo a considerações mais epistemológicas, ou seja, questões sobre a confiabilidade histórica dos evangelhos e a maneira mais justa de interpretá-los. Meu interlocutor era um ótimo sujeito e tinha grande interesse em história, bem como fortes simpatias pelo budismo, sobre o qual, aliás, ensinou-me uma porção de coisas.

Dentre os vários aspectos do problema abordados por nós, entretanto, desejo discutir apenas um, que julgo de particular importância por ser recorrente em muitas discussões modernas sobre o Jesus histórico. Antes de começarmos a discutir se os relatos bíblicos sobre Jesus são fidedignos ou não, cabe perguntar se os autores de tais relatos pretendiam, para início de conversa, que suas composições fossem descrições historicamente exatas de Cristo. Essa é a questão; e, segundo o sujeito que mencionei, bem como muitos outros, a resposta é negativa. Analogamente ao que ocorre no budismo, as narrativas cristãs sobre seu Mestre seriam destinadas apenas a ilustrar didaticamente os princípios da doutrina, não sendo necessário ou mesmo relevante discutir a historicidade das mesmas. Muitos têm chegado a uma conclusão semelhante por muitos caminhos diferentes. Em qualquer caso, é uma posição da qual eu discordo. E, a fim de explicar as razões desse desacordo, ofereço sucintamente as considerações seguintes, que sem dúvida não esgotam o tema, de modo que devo voltar a dissertar sobre isso num post futuro.

Provavelmente a maior parte da força real ou imaginária dessa teoria reside no pressuposto de que não pode (ou não deve) haver dependência alguma entre fatos e valores. Ou, dizendo mais precisamente, uma doutrina religiosa deveria consistir de nada mais que um punhado de afirmações sobre a natureza última da realidade e de um punhado de princípios morais (talvez até fosse melhor que o primeiro punhado fosse dispensado). O rapaz que mencionei percebeu e explicitou esse ponto, na esperança de que eu visse nisso a prova de não sei quais qualidades superiores do budismo em contraste com o cristianismo histórico que eu professo. Creio que ele se decepcionou quando eu não me mostrei muito impressionado com sua tentativa algo velada de desqualificar qualquer outra forma de religião como inferior ou impura, como uma tentativa algo primitiva ou antropomórfica de confundir dois níveis inteiramente distintos da realidade. Mas, embora essa seja uma idéia muito moderna e possa ser irresistivelmente adornada por uma linguagem de sabedoria oriental (ou talvez justamente por isso), de fato não me impressionou, parecendo-me antes um mero disfarce destinado a encobrir a admissão de pressupostos totalmente gratuitos. Afinal, talvez a realidade última seja pessoal. E talvez Deus realmente não tenha se contentado em meramente criar e sustentar o mundo, mas tenha preferido intervir na sua história de maneira mais direta. E talvez, nesse ato, ele tenha feito alguma coisa tão importante que isso faça toda a diferença na hora de elaborar um sistema religioso, uma doutrina filosófica ou mesmo um código de conduta moral. Todas essas (ou pelo menos as duas últimas) são possibilidades reais que são, no entanto, prontamente desprezadas por uma abstração filosófica como essa com que estamos lidando. Desconfio que não seria justo dizer que essa é uma idéia genuinamente oriental; de qualquer forma, minha ignorância não me permite discorrer sobre isso. Mas não há dúvida de que é uma idéia completamente moderna. Combina muito bem com aquela mania kantiana da contraposição entre fé e razão, ou mesmo com aquele singular acordo de paz proposto pelo paleontólogo darwinista Stephen Jay Gould, pelo qual seus antagonistas religiosos abririam mão da pretensão aos fatos e, em troca, poderiam ficar com tudo o que restasse.

Num ambiente assim, é natural que qualquer sugestão de uma religião que pretenda legitimar-se com base em fatos históricos seja logo recebida com denúncias antifundamentalistas, diante de sua semelhança demasiado óbvia com o famigerado criacionismo, ou mesmo com as velhas superstições politeístas sobre deuses que a todo momento se metiam nos assuntos humanos. Um religioso moderno e bem informado deveria saber que não pode crer em semelhantes bobagens, e que um Deus que insiste em fazer alguma coisa, não se contentando com o mero direito à existência que os bondosos pensadores modernos tão generosamente lhe concedem, não é uma divindade digna da sua adoração. Quem quer que chegue a essa conclusão acabará percebendo, mais cedo ou mais tarde, que está indo contra toda a tradição do cristianismo. Mas o sujeito jamais extrairá daí a conclusão, mesmo hipotética, de que está indo contra as palavras (e atos) do próprio fundador da religião cristã. Pois a popularidade de Jesus, mesmo fora dos meios autenticamente cristãos, é impressionantemente alta. Eis a razão pela qual a quase totalidade dos que inventaram novas bobagens ou reformularam bobagens antigas sobre religião nos últimos duzentos anos quiseram certificar-se de que estavam apenas revigorando as incompreendidas (ou mesmo inexpressas) intenções de Jesus. É natural, portanto, que o sujeito atribua a ele também a sua própria concepção modernista sobre a natureza da relação entre os princípios supratemporais da doutrina cristã e sua manifestação histórica na vida do fundador da mesma, e a partir daí passe a considerar absurda a mera possibilidade de que Jesus ou seus discípulos pudessem ter uma opinião diferente. Uma vez estabelecida dessa forma a absoluta impossibilidade da coexistência entre doutrinas e fatos, segue-se automaticamente que, se alguém alega estar comunicando uma doutrina, não pode ter ao mesmo tempo a pretensão de transmitir fatos históricos. Se alguém escreve um livro contendo sermões, parábolas, milagres e dados biográficos de Jesus, devemos concluir disso que só os sermões e parábolas importam. O resto é mera ilustração da doutrina expressa nesses sermões e nessas parábolas, e não pode ter a pretensão de descrever o que Jesus realmente fez e o que lhe sucedeu. Mesmo que tenha ocorrido de fato, só é importante na medida em que ilustra os princípios gerais da doutrina. A vida de Jesus não é, portanto, nada mais que uma gigantesca parábola de sua pregação, e não se distingue, sob qualquer aspecto relevante, das parábolas que ele mesmo inventou.

Quem pensa dessa forma não parece dar importância ao fato de que o conteúdo dessa doutrina é justamente a afirmação enfática daquelas hipóteses que mencionei acima: que Deus é pessoal, que age no mundo e que isso faz alguma diferença. Eu poderia acrescentar que o ponto culminante dessa ação encontra-se justamente na vida de Jesus, e é por isso mesmo que seus discípulos se empenharam em descrever como isso se deu, transpondo ao papiro fatos que eles presenciaram e consideraram da maior importância para a posteridade. E não apenas isso, mas também afirmaram insistentemente o caráter histórico daquilo que narraram. Mesmo um exame superficial do Novo Testamento demonstra esse tipo de preocupação histórica por todos os lados. João enfatizou em diversas ocasiões a realidade daquilo que ele testemunhou: "Aquele que isto viu testificou, sendo verdadeiro o seu testemunho"; "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória [...]"; "O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam [...]". Pedro fez uma asseveração semelhante, como que sabendo que alguém pusera em dúvida o caráter factual do Evangelho: "Porque não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo segundo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade [...]". Paulo não teve medo de levar às últimas conseqüências a negação de um importante evento narrado pelos discípulos: "Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a vossa fé". Ele próprio, um pouco antes, havia listado os testemunhos dos irmãos e reunido a eles o seu próprio, ciente de que a realidade da coisa toda era de importância indiscutível: "Que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas, e, depois, aos doze. Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez [...]. Depois, foi visto por Tiago, mais tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim." E Lucas, mais interessado em história do que qualquer outro escritor neotestamentário (como se nota em passagens como esta: "No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, Herodes, tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe, tetrarca da região de Ituréia e Traconites, e Lisânias, tetrarca de Abilene, sendo sumos sacerdotes Anás e Caifás [...]"), deixou muito claro o propósito de seu próprio evangelho: "Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído."

Não creio que os escritores citados pudessem ser mais claros quanto à sua própria intenção biográfica e ao caráter histórico das narrativas que compuseram sobre a vida de Jesus. Uma vez que tenhamos deixado de lado certos pressupostos filosóficos profundamente arraigados para permitir que os textos falem por si mesmos, não pode haver dúvida sobre qual é o resultado. Essa dicotomia absoluta entre fatos e doutrinas que descrevi há pouco claramente não fazia parte da maneira de pensar dos primeiros cristãos, e tampouco se coaduna com a mensagem cuja transmissão eles consideraram mais importante que a segurança de suas próprias vidas.

2 comentários:

Daniel Nérso disse...

Não fique assustado heheh, não li o post.

Mas tem um desafio pra vc no meu blog, no post "Minhas 7 coisas"

Abraços rapaz!

Vi disse...

Andoreee!
Extraordinário este post! Nota 10!
Relendo as suas belas palavras consegui relembrar alguns momentos que passei lá, a começar pelas caminhadas..pelas refeições..
Espero que vc tenha guardado boas lembranças. E digo mais: como é bela essa natureza.
B-jos
Vivi