26 de fevereiro de 2008

As antigas famílias

Neste post darei continuidade à série de textos sobre a crítica textual da Bíblia. No primeiro texto falei sobre as causas da corrupção textual dos textos bíblicos ao longo dos séculos, e no segundo citei uma porção de exemplos. Agora vou discorrer brevemente sobre certos aspectos da história da transmissão textual: a formação das famílias de textos e a influência das mesmas. Esse tema ocupará este post e o próximo. Visto que a história do texto neotestamentário é consideravelmente diferente da do texto hebraico do Antigo Testamento, concentrarei hoje a atenção no primeiro e deixarei o segundo para depois.

As circunstâncias que envolviam a comunidade cristã do primeiro século, no seio da qual os textos do Novo Testamento foram compostos e espalhados por boa parte do Império Romano, eram bastante desfavoráveis: houve intensa perseguição judaica e romana; algumas partes foram compostas em prisões; os recursos eram escassos, e não parece ter havido, na maior parte dos casos, qualquer participação de escribas profissionais. O mesmo se pode dizer quanto às primeiras cópias, que começaram a ser trocadas ainda no primeiro século pelas igrejas portadoras dos manuscritos originais; nesse processo, os copistas quase certamente eram cristãos bem intencionados, mas amadores. Não houve uma edição oficial reunindo os textos, e muito menos uma comissão competente destinada a avaliar as variantes e produzir um texto mais correto, como era costume entre os escribas judeus, e mesmo entre os eruditos pagãos. Os originais, tecnicamente denominados "autógrafos", provavelmente se deterioraram rapidamente pelo uso constante. Nesse cenário, é facilmente compreensível que uma multidão de erros rapidamente surgisse e se propagasse. Quando, no século IV, o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império, e passaram a existir condições mais favoráveis a uma transmissão fidedigna, a diversidade dos manuscritos existentes já era enorme desde muito tempo antes. Queixas nesse sentido já eram feitas por Orígenes no início do terceiro século. E, de fato, grande parte das mais importantes variantes textuais com que lidam os especialistas de hoje surgiu antes do ano 200.

Apesar de os textos que acabaram integrando o cânon neotestamentário terem se espalhado pelo Império e para além dele, a baixa condição social da maior parte dos primeiros cristãos, bem como a própria perseguição movida contra a igreja pelas autoridades, dificultava o contato entre comunidades de regiões distantes. Assim, cada região desenvolveu sua própria tradição textual de maneira mais ou menos independente, dada a rara disponibilidade de manuscritos provenientes de outras regiões para comparação. Assim, embora os textos possuídos por duas comunidades jamais fossem idênticos entre si, eles tendiam a ser mais semelhantes aos geograficamente mais próximos do que aos mais distantes, inclusive por terem, em muitos casos, uma maior proximidade "genealógica". Ocasionalmente, é claro, a comparação entre textos diferentes tornava-se possível, e o copista produzia um texto misto. Mas esse fenômeno era relativamente raro antes do quarto século. De qualquer forma, como era de se esperar, os textos existentes acabaram se reunindo, com o passar do tempo, em torno das versões possuídas pelos mais importantes centros da igreja primitiva: Alexandria, Roma, Éfeso e Antioquia. Mas Roma logo eclipsou Éfeso, Cesaréia cresceu em importância e, mais tarde, Constantinopla surgiu e tomou a posição de destaque de Antioquia, de modo que as quatro grandes famílias de textos ligam-se, embora de maneiras diversas, a estas quatro cidades: Alexandria, Roma, Cesaréia e Constantinopla. As versões representadas por cada uma delas denominam-se, respectivamente, texto alexandrino, ocidental, cesareense e bizantino.

O estabelecimento da existência dessas famílias foi feito através de uma análise comparativa de centenas de manuscritos antigos, levando em conta sua data de composição e a região de procedência. Muitas informações relevantes também foram extraídas da literatura patrística, tanto pelo que ela permite entrever da história da igreja cristã como um todo quanto pelas citações ou alusões que fazem aos textos do Novo Testamento. Levando em conta o local e a época em que viveram os pais da igreja, as citações feitas por eles também dizem algumas coisas relevantes sobre o tipo de texto que era usado por cada um. Também é relevante o estudo das muitas traduções para outras línguas (siríaco, latim, copta e outras) feitas nos primeiros séculos da era cristã. Examinando exaustivamente todos esses dados, os especialistas em ecdótica neotestamentária puderam demonstrar a existência, por trás da enorme confusão que impera entre os manuscritos (a ponto de não existirem dois deles com textos idênticos), de uma divisão em quatro categorias principais, conforme mencionado acima. Da mesma forma, puderam também demonstrar que essas quatro famílias se vinculam geograficamente aos quatro centros já mencionados (embora nem tanto no caso de Roma, como ficará claro adiante).

Antes de passarmos à descrição de cada uma delas, deve ficar claro que nenhum dos quatro textos corresponde inteiramente ao original, e também que nenhum deles foi obtido a partir de um único manuscrito. O texto alexandrino, por exemplo foi obtido por abstração a partir das tendências predominantes dos manuscritos pertencentes a essa família, o mesmo ocorrendo com as demais famílias. E quando se deseja saber a qual família pertence um novo manuscrito, conta-se a quantidade de desvios em relação ao texto padrão de cada uma das quatro famílias. Se o número de variantes em relação a uma das famílias é significativamente menor que em relação às demais, considera-se que o manuscrito em questão pertence definidamente àquela família. Se isso não ocorre, é porque o texto analisado é resultado direto ou indireto de uma revisão, por parte de um copista, de um manuscrito de uma família com base no de outra. Dizendo isso de maneira mais simples: trata-se de uma manuscrito misto.

Alexandria era a capital intelectual do mundo mediterrâneo na época; ali surgiu o neoplatonismo, bem como alguns dos mais notáveis pensadores judeus (como Fílon) e cristãos (como Clemente e Orígenes) da Antigüidade. Sua biblioteca contava com cerca de setecentos mil volumes, e desde o século III a.C. eram realizados estudos de crítica textual a partir de manuscritos antigos, principalmente das obras de Homero. Havia nessa cidade uma numerosa comunidade judaica, e o cristianismo a atingiu muito cedo. Porém, o contato direto dos seus crentes com os apóstolos parece ter sido muito reduzido ou mesmo nulo, de modo que os cristãos alexandrinos dependiam, mais do que os outros, dos textos como fonte de informações corretas. Todos esses fatores contribuíram para fazer da família alexandrina a mais confiável de todas. A divergência de seus exemplares entre si (e portanto em relação ao texto alexandrino padrão) é consideravelmene pequena. E, em comparação com as demais famílias, o texto alexandrino normalmente apresenta versões mais breves, e não contém os floreios lingüísticos que aparecem nelas com freqüência.

Pertencem a essa família vários dos manuscritos mais relevantes para a ecdótica atual, como os papiros Chester Beatty, copiados no início do terceiro século e descobertos nos anos 30 do século passado, e que contêm trechos dos evangelhos e de Atos, grande parte das epístolas paulinas e da Epístola aos Hebreus e a porção central do Apocalipse. Inclui também os papiros Bodmer II, XIV e XV, descobertos em 1955, e que contêm a quase totalidade de Lucas e boa parte de João. Entre os pergaminhos unciais temos: o Códice Sinaítico, que contém o Novo Testamento completo, copiado na primeira metade do quarto século e descoberto em meados do século XIX; o Códice Vaticano, composto na mesma época e pertencente à Biblioteca do Vaticano desde o século XV, pelo menos, embora seu conteúdo só tenha sido publicado em 1857, e que contém o Novo Testamento quase completo; o Códice Alexandrino, composto um século depois, que também contém o Novo Testamento quase todo, e publicado na Inglaterra em 1657 (os evangelhos, porém, seguem o texto bizantino); o Códice Efraimita, copiado no século V, possuindo fragmentos de quase todos os livros neotestamentários, e publicado no século XIX. Inclui ainda três dos mais importantes manuscritos minúsculos (isto é, escritos em letras "minúsculas" ou cursivas, e quase sempre em pergaminho), designados pelos números 33, 1739 e 2053. O primeiro e mais importante data do século IX e contém todo o Novo Testamento, com exceção do Apocalipse; o último, ao contrário, contém apenas o Apocalipse, e data do século XIII; e o segundo, contendo Atos e as epístolas, foi composto no século X e descoberto em 1879. Também se basearam nessa família de textos as duas mais antigas traduções coptas, feitas nos séculos III e IV, assim como Clemente e Orígenes, embora este tenha deixado de usá-lo depois de sua migração para Cesaréia.

A importância disso tudo ficará mais clara adiante, quando será possível comparar esses dados com os dos principais manuscritos das demais famílias. Mas pode-se notar desde já que boa parte dos manuscritos alexandrinos tidos hoje como os mais importantes só se tornaram conhecidos pelos eruditos do Ocidente em tempos relativamente recentes, embora esforços de crítica textual venham desde o século XVI. Dado que, conforme já foi dito, a família alexandrina é a mais próxima do original, o que isso significa é que, a despeito das boas intenções dos tradutores e exegetas europeus mais antigos, dispomos hoje de textos mais próximos do original do que os que esses homens tiveram em mãos. No próximo post falarei sobre as outras três famílias textuais.