19 de janeiro de 2010

Estranhas dimensões

Quem porventura tenha acompanhado meu outro blog nos últimos tempos sabe que uma de minhas últimas leituras de 2009 foi a do livro The fractal geometry of nature, do matemático francês Benoît Mandelbrot. Nessa magnífica obra, o autor defende que a teoria dos fractais, em grande parte inventada por ele próprio, é de grande importância para a compreensão da natureza, e não mera abstração de matemáticos de escrivaninha. Muito bem escrito, o livro me fez entender já nos primeiros capítulos um conceito que nunca me pareceu compreensível desde que, no segundo ou terceiro ano da faculdade, ouvi falar nele pela primeira vez. Tendo pensado em fazer um post a respeito, hesitei por um tempo, paralisado pela preguiça de fazer um desenho, o qual seria útil na explicação. Mais recentemente, porém, encontrei já pronto na internet o mesmo desenho, muito mais bem feito que qualquer coisa que eu saiba fazer no Paint, e isso me animou.

Tentarei explicar abaixo, de maneira bastante intuitiva e nada rigorosa do ponto de vista matemático, o que se quer dizer quando se fala em um objeto de número não-inteiro dimensões, e de que maneira se deve compreender isso. Todo mundo sabe que um ponto tem dimensão 0, uma curva tem dimensão 1, uma figura plana tem dimensão 2 e um sólido tem dimensão 3. Podemos também aceitar sem grandes problemas, embora sem uma visualização mental apropriada, um objeto ou um espaço com 4 ou mais dimensões, como nas maluquices dos cosmólogos e teóricos das supercordas. Porém, a mera ideia de uma dimensão não-inteira não me parecia fazer o menor sentido, e sei que muita gente tem a mesma dúvida quando ouve os estudiosos de fractais mencionando coisas desse tipo com imensa naturalidade.

Para entender isso, imaginemos um segmento de reta qualquer, com início e fim em pontos bem definidos. A fim de medir seu tamanho, precisamos comparar seu comprimento a outro definido como padrão. Pelo sistema internacional, a unidade padrão é o metro, mas isso não vem ao caso. Tomemos um padrão qualquer de comprimento L. Medir um segmento de reta significa descobrir quantos Ls cabem nele. Assim, podemos comparar diferentes segmentos e verificar qual deles é maior, e quão maior ele é.

Agora passemos a um objeto da geometria plana, como o retângulo. Não podemos usar o mesmo padrão L do parágrafo anterior para medi-lo. Um retângulo se mede pela área, não pelo comprimento. Qualquer tentativa de preencher um retângulo com segmentos de reta de comprimento L fracassará, pois seria necessário um número infinito deles. Assim como é sempre possível encontrar um número entre dois números, é sempre possível colocar uma reta entre duas retas paralelas. Ninguém pensaria, pois, em medir o comprimento de um retângulo. O retângulo se mede pela área, ou seja, pela comparação com uma unidade padrão de área. Esta pode ser, por exemplo, um quadrado de lado L, resultando numa área L2.

A medida de área, por sua vez, é inaplicável ao segmento de reta de que partimos no princípio. Por menor que seja o quadrado escolhido, nunca haverá um segmento de reta capaz de preenchê-lo completamente. Por isso é que o segmento tem dimensão 1 e o retângulo tem dimensão 2: eles só podem ser medidos por um padrão L (que, não nos esqueçamos, é o mesmo que L1) e L2, respectivamente. O valor do expoente é, pois, de importância fundamental. Se o expoente escolhido for grande demais, o resultado será sempre nulo: o comprimento de um ponto, a área de uma reta, o volume de um retângulo. Por outro lado, se for muito pequeno, o resultado será sempre infinito: a área de um cubo, o comprimento de um retângulo, o número de pontos em uma reta.

(Antes de prosseguir, convém fazer um esclarecimento importante: no dia a dia, ou nas aulas de matemática, podemos às vezes dizer coisas como "a área de um cubo". Trata-se de uma metonímia, pois na verdade nos referimos à área das faces do cubo, que são quadradas. Não é esse o sentido em que o termo está sendo empregado neste texto; quando digo "a área de um cubo", refiro-me ao cubo propriamente dito, o objeto tridimensional delimitado por suas seis faces quadradas. Considerações análogas valem para todos os outros objetos matemáticos mencionados.)

Mantendo tudo isso em mente, examinemos a figura abaixo, que encontrei no site da Vanderbilt University, e que terá a honra de ser a primeira figura que publico neste blog. Ela mostra os primeiros estágios de construção de um objeto pertencente a uma família de curvas denominadas "curvas de Koch", descritas em 1904 pelo matemático sueco Helge von Koch. No topo, temos apenas um segmento cujo comprimento é igual a 1. Para dar origem à segunda etapa, esse segmento é transformado da seguinte forma: o segmento é dividido em três partes iguais (cada uma de comprimento 1/3, portanto), a parte do meio é retirada e substituída por dois segmentos de comprimento 1/3. Agora temos 4 segmentos de idêntico comprimento, de modo que o comprimento total é 4/3. No passo seguinte, o mesmo procedimento é aplicado - em escala menor, é claro - aos quatro segmentos resultantes: cada um deles é dividido em três partes iguais de comprimento 1/9 (1/3 de 1/3), a parte do meio é retirada e substituída por dois segmentos de mesmo comprimento. Visto que cada parte da figura anterior teve seu comprimento multiplicado por 4/3, o novo comprimento total é (4/3).(4/3)=(4/3)2=16/9. O último passo mostrado na figura abaixo aplica o mesmo procedimento a cada um dos 16 segmentos resultantes do anterior, resultando em 64 segmentos, cada um com comprimento 1/27, totalizando 64/27=(4/3)3.


Imaginemos agora que esse processo fosse reaplicado infinitamente, sempre em escalas cada vez menores. O que aconteceria? Pode-se perceber que, depois de n aplicações, o comprimento total seria dado por (4/3)n. Se n tender a infinito, portanto, o comprimento também tende a infinito. Não deixemos de notar que essa figura não é ilimitada, nem por se estender indefinidamente numa dada direção, como uma reta infinita, nem por ter limites indefinidos, como uma circunferência. A curva de Koch apresentada começa e termina em pontos bem definidos; e, no entanto, seu comprimento é infinito. Por outro lado, a área continua sendo nula.

Qual é, então, o problema? Temos em mãos um objeto geométrico cuja grandeza não podemos apreender, nem pelo comprimento, nem pela área. O primeiro padrão de medida usa um expoente pequeno demais (1), e seu resultado tende ao infinito; já o segundo usa um expoente grande demais (2), e seu resultado é nulo. É natural, portanto, supor que o expoente correto a ser utilizado está em algum lugar entre os números 1 e 2. Esse expoente existe, de fato, e seu valor é aproximadamente igual a 1,2619.

Esse valor é denominado dimensão fractal ou dimensão de Hausdorff, e seu valor não necessariamente coincide com o da dimensão utilizada em topologia. A dimensão topológica está mais próxima do conceito que intuitivamente utilizamos, embora possa ser definida mais rigorosamente. Um ponto, por exemplo, tem dimensão topológica nula, assim como um conjunto qualquer de pontos desconectados. Um objeto definido por pontos conectados tem dimensão positiva. Um segmento de reta, por exemplo, pode ter suas partes desconectadas pela remoção de um ponto, e portanto sua dimensão topológica é 1. Uma figura plana não pode ser "partida" dessa forma, de modo que é necessária a remoção de um conjunto unidimensional; por isso, a figura plana tem dimensão 2. De modo geral, um objeto que pode ter quaisquer de seus pontos desconectados pela remoção de um conjunto de dimensão topológica N possui dimensão topológica N+1.

Dada essa maneira de definir as coisas, não se pode, ao menos até onde sei, falar em dimensões topológicas não-inteiras. O mesmo não ocorre, porém, com a dimensão de Hausdorff, pois os dois conceitos nem sempre se equivalem. No caso da curva de Koch discutida acima, por exemplo, a dimensão topológica é 1. Aliás, os objetos fractais distinguem-se dos demais justamente pelo fato de apresentarem essa desigualdade, na qual a dimensão topológica é sempre menor que a dimensão de Hausdorff. Os objetos não-fractais, com o qual está acostumada a vasta maioria da humanidade apenas iniciada nos rudimentos da matemática, apresentam dimensão de Hausdorff inteira e idêntica à dimensão topológica, não restando, nesse caso, qualquer mistério.

4 comentários:

Vitor disse...

Uma explicação simplesmente perfeita! Estudo os fractais meio indiretamente, mas nunca consegui compreender sequer as coisas mais bestas deles. Agora, posso dizer que saí do zero e muito,rsrs. Não tenho palavras pra te agradecer... Muito obrigado cara.

André disse...

Caro Vitor, obrigado pelo comentário. É um prazer ter um leitor como você. Fico muito feliz por ter ajudado de alguma forma. Abraços!

Risco de vapor disse...

Bom dia, André! Eu estou lendo o livro "Complexidade & Caos" de H. Moysés Nussenzveig, e nesse livro, o tema 'fractais' é um dos principais. Muito interessante... ótimo tema para postar! Consegui entender mais claramente a noção de uma figura finita, com começo e fim bem definidos, mas de comprimento infinito. Abraços!

André disse...

Caro Risco, obrigado pelo comentário. Não conheço esse livro do Moysés, mas usei sua coleção "Curso de física básica" na faculdade, e ele é um excelente autor.

Abraços, e apareça sempre que quiser.