4 de junho de 2010

Viagens doloridas - parte 1

Dada minha decisão de expor neste blog os pontos essenciais de minha viagem à Europa - exposição que eu, aliás, ainda não terminei -, nada como contrabalançá-las expondo as opiniões de um francês ilustre sobre suas viagens pelo Novo Mundo. No Natal passado, ganhei de minha noiva um pequeno livro: o Diário de viagem de Albert Camus (1913-1960), contendo as anotações que o célebre escritor francês fez ao longo de duas viagens pelo continente americano. A primeira delas foi aos Estados Unidos, tendo incluído também uma visita ao Canadá, e se deu em 1946. O diário começou a ser escrito ainda no navio, e é também num navio que ele acaba. Camus é um daqueles sujeitos em relação aos quais tenho vários e profundos desacordos, mas ele tem também uma porção de qualidades: não só é bom escritor, mas também um sujeito inteligente e sensível, e ao menos transmite a impressão de ser honesto e íntegro. Além de tudo isso, é uma daquelas almas constantemente torturadas pelo desespero de uma vida vazia. É claro que não me enquadro nessa categoria, mas pessoas assim sempre despertam minha simpatia.

No post de hoje, trascreverei os trechos de sua viagem à América do Norte que, por razões diversas, considerei os mais interessantes. O diário contém relatos de eventos presenciados e impressões sobre pessoas que conheceu. Contém também algumas reflexões baseadas nessas experiências, bem como reflexões que não parecem ter relação alguma com o que está se passando. Há trechos que aparentemente são ideias para textos que o autor pretendia escrever. Existem também relatos pungentes, embora curtos, sobre sua própria vida interior. Há um pouco de tudo isso nos trechos abaixo. O estilo de rascunho pode ser notado com facilidade. Não julgo necessário adicionar comentários. Isso não significa, naturalmente, que eu concorde com tudo o que é dito. Sobre certas coisas, aliás, eu sequer tenho alguma opinião. Meu objetivo aqui é apenas o de expor amostras de uma personalidade interessante e até brilhante, embora atormentada. Nos próximos posts trarei trechos igualmente interessantes sobre a segunda viagem de Camus.

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"Sexta-feira. Sábado. Domingo. Mesmo programa. Com o mar sempre agitado, descemos em direção ao sul e ultrapassamos os Açores. Essa sociedade em miniatura é ao mesmo tempo apaixonante e monótona. Todos se pretendem elegantes e requintados. É o lado cachorrinho amestrado. Mas alguns se abrem. O peleteiro X está no navio. Assim, ficamos sabendo que tem um magnífico jogo de porcelana, uma prataria estupenda, etc., mas que se utiliza de cópias que mandou fazer, guardando trancados os originais. Ao que me pareceu, tem também uma cópia de mulher, com a qual nunca fez outra coisa senão uma cópia de amor."

"Segunda-feira. Dia magnífico. O vento amainou. Pela primeira vez, o mar está calmo. Os passageiros surgem no convés como cogumelos depois da chuva. Respira-se bem-estar. No fim da tarde, o sol brilha magnífico. Depois do jantar, luar sobre as águas. A sra. D. e eu concordamos ao achar que a maioria das pessoas não leva a vida que gostaria de levar e que nisso há covardia."

"Atracamos na Baía de Hudson e só vamos desembarcar amanhã de manhã. Ao longe, os arranha-céus de Manhattan, sobre um fundo de bruma. Sinto o coração tranquilo e seco, como quando me vejo diante de espetáculos que não me comovem."

"Segunda-feira. Deitar muito tarde na véspera. Acordar cedo demais. Subimos o porto de Nova York. Espetáculo formidável apesar, ou até por causa, da bruma. A ordem, o poderio, a força econômica, estão lá. O coração treme diante de tanta desumanidade admirável. [...] Cansado. Minha gripe volta. E é com as pernas bambas que recebo o primeiro impacto de Nova York. À primeira vista, cidade horrenda e desumana. Mas sei que se muda de opinião. São os detalhes que me impressionam: os lixeiros de luvas, o trânsito disciplinado, sem intervenção de guardas nos cruzamentos, etc., ninguém nunca tem troco nesse país e todo mundo parece ter saído de um seriado. À noite, ao percorrer a Broadway de táxi, cansado e febril, fico literalmente atordoado pela feira luminosa. Saio de cinco anos de noite e essa orgia de luzes me dá pela primeira vez a impressão de um novo continente. [...] Tudo isso é amarelo e vermelho. Deito-me doente, tanto do coração quanto do corpo, mas sabendo perfeitamente que terei mudado de opinião em dois dias."

"Magníficas lojas de comida. De matar de indigestão toda a Europa. Admiro as mulheres na rua, o colorido dos vestidos, dos táxis - todos têm um ar de insetos com roupas de domingo, vermelhos, amarelos, verdes. Quanto às lojas de gravatas, é preciso ver para crer. Tanto mau gosto parece inimaginável. D. me garante que os americanos não gostam das ideias. É o que se diz. Mas tenho minhas dúvidas. [...] Cheiro de Nova York: um aroma de ferro e de cimento; o ferro domina. [...] L. M. me expõe sua teoria pessoal sobre os americanos. É a décima-quinta que ouço. Na esquina da Primeira Rua Leste, pequeno bistrô, em que um fonógrafo mecânico vocifera, encobrindo todas as conversas. Para conseguir cinco minutos de silêncio, é preciso colocar cinco cents."

"Uma das formas de se conhecer um país é saber como se morre nele. Aqui, tudo está previsto. 'You die and we do the rest', dizem os anúncios publicitários. [...] Sim, há um trágico americano. É o que me oprime desde que estou aqui, mas ainda não sei de que é feito. [...] No ônibus, um americano médio levanta-se diante de mim para ceder o lugar a uma velha senhora negra."

"Quinta-feira. Dia passado ditando minha conferência. À noite, um pouco de nervosismo, mas entro logo no assunto e dá certo com o público. Mas enquanto falo passam uma caixinha, cujo produto se destina às crianças francesas. O'Brien anuncia a coisa no final e um espectador levanta-se para propor que cada um faça uma nova contribuição na saída, no mesmo valor que se deu na entrada. Na saída, todos contribuem muito mais e a receita é considerável. Típico da generosidade americana. Sua hospitalidade e sua cordialidade têm o mesmo sabor, imediato e simples. O que há de melhor neles."

"Impressão de que só os negros dão a vida, a paixão e a nostalgia neste país que eles colonizaram à sua maneira."

"À tarde, com os estudantes. Não sentem o verdadeiro problema e, no entanto, sua nostalgia é evidente. Neste país em que se usa tudo para provar que a vida não é trágica, eles têm um sentimento de falta. Esse grande esforço é patético, mas é preciso rejeitar o trágico depois de tê-lo visto, e não antes."

"Alfred Stieglitz, espécie de velho Sócrates americano: 'A vida me parece cada vez mais bela à medida que envelheço: mas viver, cada vez mais difícil. Não espere nada da América. Somos um fim ou um começo? Acho que somos um fim. É um país onde não se conhece o amor.' [...] Tucci: que os relacionamentos humanos são mais fáceis aqui porque não há relacionamentos humanos. Eles ficam na superfície. Por respeito e por preguiça."

"Dois seres se amam. Mas não falam a mesma língua. Um fala duas línguas, mas uma delas de modo imperfeito. Isso basta para que se amem. Mas o que sabia falar as duas línguas morre. E suas últimas palavras são na língua natal, que o outro não consegue entender. Ele espreita, ele espreita..."

"Refazer e recriar a reflexão grega como uma revolta contra o sagrado. Mas não a revolta contra o sagrado do romântico - uma forma do sagrado em si - e sim a revolta como um retorno ao seu lugar do sagrado. A ideia do messianismo como base de todos os fanatismos. O messianismo contra o homem. A reflexão grega não é histórica. Os valores são preexistentes. Contra o existencialismo moderno."

"A prodigiosa paisagem de Quebec. Na extremidade do Cabo Diamond, diante da imensa brecha do Saint-Laurent, ar, luz e águas confundem-se em proporções infinitas. Pela primeira vez neste continente, a impressão real da beleza e da verdadeira grandeza. Parece-me que teria algo a dizer sobre Quebec e sobre esse passado de homens que vieram lutar na solidão, impulsionados por uma força maior que eles. Mas para quê? Agora, há uma quantidade de coisas nas quais estou certo de que teria 'sucesso' em termos artísticos. Mas essa palavra não faz mais sentido para mim. Até agora, fui incapaz de dizer a única coisa que gostaria de dizer, e sem dúvida não a direi nunca."

"O pai de Zaharo. Polonês. Esbofeteia um oficial aos quinze anos. Foge. Chega a Paris num dia de carnaval. Com os poucos tostões que tem, compra confete e revende. Trinta anos depois, tem uma enorme fortuna e uma família. Totalmente analfabeto, o filho faz-lhe leituras ao acaso. Lê para ele a Apologia de Sócrates. 'Você não lerá para mim nenhum outro livro', diz o pai. 'Esse diz tudo'. E depois pede sempre que lhe leiam esse livro. Detesta os juízes e a polícia."

"Terrível sentimento de abandono. Abraçaria, apesar de tudo, todos os seres do mundo, não estaria protegido contra nada."

"Julien Green se pergunta (Diário) se é possível imaginar-se um santo que escreva um romance. Naturalmente que não, porque não há romance sem revolta. Ou então é preciso imaginar um romance que acuse o mundo terrestre e o homem - um romance absolutamente sem amor. Impossível."

"Dois seres jovens e belos começaram um idílio neste navio, e logo uma espécie de círculo mau fechou-se à sua volta. Esses começos de amor! Eu os amo e aprovo do fundo do coração - até mesmo com uma espécie de gratidão pelos que preservam, neste convés, no meio do Atlântico reluzente de sol, a meio caminho de continentes loucos, as verdades da juventude e do amor. Mas por que não chamar pelo nome também essa inveja que sinto no coração e o desejo tumultuado que se apodera de mim no sentido de redescobrir o coração impaciente que eu tinha aos vinte anos? Mas conheço o remédio, vou olhar para o mar durante muito tempo. Tristeza por sentir-me ainda tão vulnerável. Daqui a 25 anos, terei 57. Portanto, 25 anos para fazer a minha obra e encontrar o que procuro. Depois, a velhice e a morte. Sei qual é o mais importante para mim. E encontro, ainda, o meio de ceder às pequenas tentações, de perder tempo em conversas vãs ou passeios estéreis. Dominei duas ou três coisas em mim. Mas como estou longe dessa superioridade de que tanto necessito!"

4 comentários:

bee disse...

eita, andré!
li só um livrim dele (la chute -- a queda) e super faceira porque na língua original.
essa parte aqui: "Subimos o porto de Nova York. Espetáculo formidável apesar, ou até por causa, da bruma." me lembrou de um treco.
esse "até mesmo ou por causa" me levou a uma matéria que li há quatro ou cinco anos, no jornal local.
um grupo do nordeste veio em excursão à curitiba e quis fazer o famoso passeio de trem pela serra do mar.
no meio do caminho o guia da cia disse: "poxa, uma pena essa neblina atrapalhando tudo...".
ao que eles responderam: "máis óli seu moço, fique é sus-sé-ga-do purrrqui nós viemos foi pu causa dessa tal di neblina mêmu...".
huehuehueh!
gostei do livro em retalhos.
tipo um "best of".

Fernando Pasquini disse...

Olá André!

O livro deve ser muito interessante! Os trechos e as descrições me fizeram lembrar muito de uma música (e clipe) do Sting. Aliás, boa música, hehehe...

"I'm an alien
I'm a legal alien
I'm an Englishman in New York"

http://www.youtube.com/watch?v=BMXCPANHeYM

Abraços!

Jorge Fernandes Isah disse...

André,

interessante que, na adolescência, fui muito influenciado pelos existencialistas, os quais lia compulsivamente: Dostoiéviski, Sartre, Camus, Gide, Bataille e cia. Um tanto pelo apelo ao "vazio", ao "absurdo" da vida, pelo niilismo, pelo egoísmo e individualismo presente em suas obras, outro tanto pela busca do prazer no sexo. Sentia-me mais ou menos como os personagens, meio perdido no mundo, sem achar significado para a vida.

Em seguida, deparei-me com Bukowiski que incluia alguns elementos a mais no existencialismo: a embriaguez e o sexo como "alívio" para a alma, diferentemente do marxismo de outros autores beatniks [se é que pode-se considerar Bukowiski um beatniks. Ele não se achava um].

Não li mais nada de Camus desde então. Lembro-me de gostar muito do Estrangeiro e a Peste especialmente.

De todos, Dostoieviski é disparado o melhor escritor. Para mim, um dos maiores de todos os tempos. Mas o assunto aqui é Camus...

Depois da sua postagem, interessei-me em reler ao menos o Estrangeiro, para ver qual seria a minha impressão, vinte anos depois. Não sei se terei estômago para todo aquele deserto existencial. De qualquer forma, seu texto aguçou-me a memória, e o desejo de, ao menos, tentar relê-lo.

Grande abraço, meu irmão!

Cristo o abençoe!

André disse...

Oi, Bee!

Não li esse livro do Camus que você mencionou. Aliás, à parte desse livro do post, só li dele citações isoladas na internet.

Muito engraçada essa história sobre a neblina. hehehe Acho que muitos de nós teriam uma atitude parecida num país estrangeiro, diante do "mau tempo" causado por uma tempestade de neve.

Olá, Fernando!

Gostei da música do Sting. Obrigado pela recomendação. E de fato, há semelhanças quanto à letra. Parece que a troca de um Englishman por um Frenchman não fez muita diferença. hehe

Olá, Jorge!

Dos que você menciona, só li diretamente Dostoiévski e Sartre. Meu contato com a literatura não-inglesa anda meio deficiente... Dos três que li, gosto mais de Dostoiévski, mas acho que Camus ainda vale muito mais que Sartre, ao menos por sua honestidade intelectual e pessoal.

Fico feliz em saber que meu post produziu em você o desejo de reler Camus. Se constatar algo interessante após esses vinte anos, sugiro que faça um post a respeito. Nos próximos dias devo postar a continuação, com a viagem de Camus à América do Sul.

Um grande abraço a todos!