19 de julho de 2010

O pacificador de torcidas

Li no início deste ano o livro O grande jogo: política, cultura e ideias em tempo de barbárie, uma coleção de artigos do geógrafo Demétrio Magnoli sobre os mais variados temas relacionados à política contemporânea, nacional e internacional. Um dos temas recorrentes é a relação entre o islamismo e o Ocidente. Não sou um grande entendido do assunto, mas as posições de Magnoli são suficientemente reveladoras para merecer um comentário.

A essência da questão pode ser captada num artigo chamado Declaração de guerra, na qual Magnoli tece críticas à administração Bush por sua luta contra o terrorismo. Segundo ele, o então presidente americano estaria caindo na armadilha de Osama bin Laden, cujo objetivo foi mesmo o de acirrar as animosidades entre os muçulmanos e os ocidentais. Para Magnoli, não existe inimizade intrínseca entre os dois grupos, exceto na cabeça de uns poucos extremistas, como o já mencionado terrorista, e de intelectuais simplistas como Samuel Huntington, cujo célebre livro O choque de civilizações popularizou a crença nessa mesma inimizade. Ao reagir da forma como reagiu aos ataques do 11 de setembro, Bush teria dado munição à minoritária vertente antiocidental do Islam, ajudando a transformar em realidade o equívoco do choque de civilizações.

De minha perspectiva, a crítica à ideia da "guerra ao terrorismo" parece de todo correta: sendo o terror um meio de ação, e não um inimigo bem definido, a tentativa de extirpá-lo da face da Terra está condenada de antemão ao fracasso. Mas se a administração Bush resolveu falar em "guerra ao terror" em vez de "guerra ao islamismo", deve ter sido justamente porque desejava evitar, ao menos para fins publicitários, a ideia do choque de civilizações ou da hostilidade a uma religião enquanto tal - coisa que o próprio Magnoli admite em outra parte. Creio que Olavo de Carvalho estava certo ao dizer que a correta identificação do inimigo a ser combatido teria tornado Bush vulnerável à crítica (infundada, por sinal) de crer em teorias conspiratórias. O que, no entanto, de modo algum justifica a atitude do ex-presidente do EUA, segundo meu ponto de vista.

Seja como for, há pessoas mais qualificadas para as tarefas de justificar ou condenar a América, Bush, o Islam ou Bin Laden. Não desejo esconder minha posição: tenho simpatias moderadas pela primeira, reduzidas pelo segundo, ainda menores pelo terceiro e nulas pelo último. Mas meu intento neste post é chamar a atenção para um dos pontos mais tenazmente defendidos por Magnoli em vários artigos, e sob aspectos diversos: para ele, à parte de uns poucos malucos como George W. Bush, Samuel Huntington e Osama bin Laden, não há motivo algum para imaginarmos a existência de um conflito essencial entre o Islam e o Ocidente.

No artigo Por um diálogo entre o Ocidente e o Islam, escrito em coautoria com Elaine Barbosa, Magnoli apresenta o argumento em defesa de seu ponto de vista. Consiste em listar uma porção de eminentes intelectuais e políticos muçulmanos que, desde o século XIX, tentaram abrir espaço no mundo islâmico para a ciência ocidental, o direito ocidental (em substituição à shari'a), o liberalismo político, a democracia, o laicismo e os princípios que Magnoli atribui à Reforma Protestante e ao iluminismo. Tudo isso, diz o geógrafo, deve servir como incentivo ao diálogo mencionado no título. Segundo ele, "entre árabes e muçulmanos há incontáveis interessados nesse diálogo e há uma tradição modernista que resiste ao fundamentalismo. Os obstáculos são o ruído ensurdecedor das bombas e a humilhação da ocupação."

É claro que não endosso todos os valores ocidentais mencionados por Magnoli, e não é meu objetivo decidir se é bom ou não que haja muçulmanos interessados em difundir esses valores em suas respectivas sociedades. Aliás, concordo com o autor quando ele critica a ingenuidade dos neoconservadores americanos, que pensaram ser possível, por meio da força bruta, enfiar a democracia numa cultura que não possui tradição democrática. Porém, o ponto para o qual desejo chamar a atenção é o salto lógico proposto por Magnoli: para ele, o simples fato de haver no mundo islâmico um número razoável de pessoas simpáticas ao Ocidente (seja lá o que for que isso signifique) é prova de que, em si mesmas, a religião islâmica e as culturas moldadas por ela não possuem nenhum elemento que permita considerá-las intrinsecamente antiocidentais. E se assim não parece a alguns, diz ele, só pode ser porque "o Ocidente enxerga o Islam pelas lentes do preconceito". O salto lógico a que me refiro é simples. Certamente é verdade que existem não poucos muçulmanos pró-ocidentais. Mas isso em nada ajuda quando se trata de saber o que é o islamismo em si. Talvez ele seja de fato amplo o suficiente em seus princípios fundamentais de modo a poder abrigar com igual conforto os amigos e os inimigos do Ocidente, bem como os indiferentes. Mas também pode ser que o Islam seja, por natureza, contrário aos tais "valores ocidentais"; nesse caso, os muçulmanos ocidentalistas seriam, muito simplesmente, maus muçulmanos, indivíduos mais ou menos distanciados da pureza de sua religião. Magnoli não apresenta argumento algum contra essa possibilidade.

Uma falácia semelhante está por trás da tentativa, por parte do autor, de dissociar do islamismo a militância antiocidental de grupos terroristas como a Al Qaeda. Segundo ele, "o terror de Osama bin Laden e al-Zawahiri, um fenômeno pós-moderno associado à globalização e à diáspora muçulmana, deve ser interpretado como ruptura radical com o Islam histórico". Para justificar essa afirmação, é mencionada, e de modo bem superficial, uma única divergência teológica entre o terrorista saudita e o islamismo tradicional. Além disso, Magnoli enfatiza repetidamente a forte presença de ideias e métodos ocidentais nos movimentos terroristas, como neste trecho: "As atuais organizações jihadistas configuram redes horizontais amorfas, recrutam militantes por meio da internet, utilizam as tecnologias da informação e participam, clandestinamente, da ciranda financeira globalizada". Considero um tanto fraca essa última classe de razões para negar o caráter tradicional dos movimentos terroristas islâmicos (por que é que usar a internet, por exemplo, faria de alguém um mau muçulmano?). Apesar disso, de fato existem motivos melhores para justificar essa negação e afirmar que movimentos como a Al Qaeda são, no contexto islâmico, uma espécie de heresia que, embora seja antiocidental, recebeu considerável influência de ideias ocidentais - o que não é contraditório, pois todos sabemos que o Ocidente muitas vezes se opõe a si mesmo. Mas do fato de que a heresia islâmica é antiocidental não se segue automaticamente que a ortodoxia islâmica seja pró-ocidental. No entanto, o geógrafo parece desejar que tomemos esse argumento como prova suficiente de sua tese pacifista.

Por que Magnoli procede dessa forma? Creio que ele próprio fornece indícios que permitem responder a essa pergunta. Ele cita um dos maiores estudiosos ocidentais do islamismo, o inglês Bernard Lewis, o qual disse que "a doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico". Sobre isso, o geógrafo faz o seguinte comentário: "A fórmula de Bernard Lewis, cuja carga de estupidez se expressa no mito de que há um 'pensamento islâmico', parece de pouca utilidade para entender a revolta palestina contra a ocupação israelense. [...] O corolário é que cabe ao Ocidente introduzir a doutrina da liberdade entre os primitivos muçulmanos, bombardeando suas cidades para salvar suas mentes." Vários elementos importantes devem ser notados nesse trecho. Um deles é que não sei se Lewis de fato apresentou essa constatação como argumento em favor da ocupação americana do Afeganistão e do Iraque; mas, se o fez, não há nada no trecho citado que permita inferir isso. Aliás, também não é possível saber se Lewis pretendia que sua afirmação se aplicasse ao caso particularíssimo dos palestinos. Mas mesmo que decidamos dar crédito à capacidade hermenêutica de Magnoli, não vejo motivo para fazer desse caso uma refutação à afirmação do "príncipe dos orientalistas contemporâneos" (nas palavras de Magnoli), já que a liderança do movimento palestino foi amplamente influenciada por forças políticas de inspiração ocidental, como o comunismo - coisa que ninguém descobrirá lendo os artigos de Demétrio Magnoli. Mais que tudo isso, porém, chama a atenção o fato de que esse ponto é um dos raríssimos nos quais o sempre tão sereno Magnoli parece irritado, partindo para algo próximo da grosseria. O que é que Lewis disse de tão ruim, para merecer tal reação? A resposta é dada aí mesmo pelo próprio Magnoli, para quem a "estupidez" do grande islamólogo reside em sua opinião de que existe um "pensamento islâmico". Mas por que não existiria? Tudo indica que Magnoli se revolta contra a simples hipótese de existir um Islam mais puro e outro menos puro, pois nesse caso se manteria de pé a possibilidade de que os muçulmanos pró-ocidentais se enquadrem mesmo na segunda categoria. Magnoli chega a dedicar um parágrafo inteiro a essa questão, nos seguintes termos:

"A visão predominante no Ocidente continua presa aos dogmas dos orientalistas, que interpretam o Islam como uma síntese cultural e o abordam como um universo à parte da economia, da sociologia e da política dos povos muçulmanos. Essa imagem de um 'Islam essencial' sustenta uma narrativa que, mesmo recheada de 'fatos históricos', descreve o desenvolvimento das sociedades muçulmanas como um desdobramento infinito de suas origens religiosas. O impacto da era industrial, da expansão imperial das potências europeias, das circunstâncias da Guerra Fria - nada disso interessa efetivamente aos orientalistas."

Diante de tudo o que foi exposto até aqui, parece-me que Magnoli supõe enxergar esse defeito nos tais "orientalistas" apenas porque ele próprio padece do defeito oposto: no fundo, ele não está interessado no Islam enquanto religião, e não dá muita atenção ao poder da religião enquanto sustentáculo de uma civilização, enquanto formadora da mentalidade de uma imensa parcela de seres humanos. Ele só se interessa pelos acidentes históricos ou, mais precisamente, por aquilo que o Islam, puro ou impuro, pode oferecer como apoio aos ideais políticos (ocidentais, é claro) que ele considera válidos. No caso, sua intenção é a de incentivar a aliança entre a esquerda democrática e a parcela não-terrorista do Islam (que é majoritária, obviamente) contra os verdadeiros fanáticos religiosos do mundo: a direita americana. Por trás dessa crítica mordaz à suposta superficialidade dos orientalistas reside apenas a superficialidade verdadeira, um profundo desinteresse pelo que há de mais fundamental na cultura islâmica; desinteresse que se traduz em irritação contra os que se empenham em entender justamente isso, não dando bola às pragmatices momentâneas que o homem cujo espírito é de natureza política tende a considerar a coisa mais importante do mundo.

Embora se empenhe em defendê-lo contra os "preconceitos ocidentais", Magnoli não tem nenhum respeito genuíno pelo Islam. Não é à toa que, em outra parte do livro, ele defende entusiasticamente aquelas absurdas leis europeias que proíbem as mulheres muçulmanas de vestir seus hijabs em lugares públicos. Eu, que não simpatizo com essa religião, respeito-a muito mais que ele. Um homem que busca com todas as forças entender um adversário dedica-lhe, na verdade, mais respeito que um outro que, sem ter se empenhado em conhecê-lo, apressa-se em declarar em alta voz, e pelos motivos errados, que se trata de uma ótima pessoa. Magnoli é como um sujeito que entrasse num estádio de futebol numa final de Copa do Mundo e tentasse, mui seriamente, convencer ambas as torcidas de que nenhuma delas tem, na verdade, interesses contrários aos da outra. E que os poucos que insistem em negar isso são fanáticos isolados que não devem ser levados a sério. O único resultado concreto obtido por tal pacificador seria o de ser surrado com empenho por ambas as multidões. Nisso, sem dúvida, haveria um interesse comum entre elas.

3 comentários:

Mulher na Polícia disse...

Oi André!!!

Primeiro que estou me sentindo ludibriada. Mordi a isca muito interessada na questão da “Guerra ao terror”, cuja faceta explorada aqui, como você deve imaginar, não era exatamente o que eu procurava... mas já era tarde demais para abandonar a leitura.

É muito bom ver tanta coisa nova pelos seus olhos. E eu queria tanto achar alguma coisa pra discordar... Poderia dizer que este texto está entrando em contradição com o texto anterior no que tange à sua postura diante dos valores ocidentais. E embora a minha intuição me convença disso, você é ensaboado que só. Não deixa prova concreta de nada! E só eu mesma pra me aventurar a falar de intuição com uma pessoa tão racional como você. Decarto Descartes com isso de "Penso, logo, existo". Eu sinto, logo, existo mas essa frase também não é minha é do Kundera.

Também adoraria questionar essa sua teoria de final de copa do mundo, afirmando que eu estou convencida de que ambas as torcidas não têm, na verdade, interesses contrários, porque o interesse principal é a esportividade, que quebra barreiras mundiais e promove a fraternidade universal quando une, num mesmo espaço, países inimigos. Mas depois de torcer tanto contra a Argentina já me soa muito falsa essa assertiva. Teria problemas com minha consciência (risos).

Então, já que não acho com o que discordar, talvez eu me saísse bem com uma provocação do tipo "a doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico" da mesma forma como o é ao pensamento cristão (ou melhor, com o que fizeram dele). Mas não é bem esse o assunto do post. Ficariam claras minhas tendências meramente anarquistas. Então, resta-me agradecer pelos agradáveis momentos na sua companhia, enquanto mera leitora e, com todo respeito, fã.

Um beijo!

André Luiz disse...

Excelente texto, confrade.

Ao dizer que não há contradicção essencial entre Islã e Ocidente, Magnoli -- grande especialista em história das guerras -- deixa de ser um analista, e expressa tão somente um desejo político pacifista, de diálogo, e permeado da idéia iluminista e liberal que pensa que a religião pode ser conciliada com o mundo individualista e laico moderno, bastando, pra isso, que se conforme em abandonar o terreno público.


[]s
André

André disse...

Oi, MnP!

hehehe Sinto muito por tê-la ludibriado. Juro que não foi de propósito.

Eu realmente não deixo provas assim tão facilmente. Se usasse meus talentos para o crime, tornar-me-ia o terror do CSI. hehehe

Há algum sentido em que sua intuição está correta: o Ocidente produziu muitos "valores" que não tenho o menor interesse em defender. Algumas de suas manifestações são certamente piores que qualquer coisa já vista nas sociedades tradicionais. Apesar disso, ainda acho que certos aspectos do Ocidente são superiores a tudo o mais.

Quanto à sua provocação final, considero-a discutível, mas talvez possamos mesmo conversar melhor sobre isso em outra oportunidade.

Aliás, aqui vai uma sugestão: quando quiser conversar mais detidamente sobre algum assunto, me mande um e-mail. Você pode criar uma conta só pra isso, algo como mulhernapolicia@gmail.com, sei lá. Assim será possível nos entendermos melhor sobre assuntos relacionados ao que escrevo neste blog, ou mesmo ao que não escrevo. hehe

Ter uma fã como você é uma honra. Saiba que eu e a Norma somos seus fãs também.

Abraços!