6 de novembro de 2010

O direito ao mistério - parte 3

Demonstrei no primeiro post desta série que o pensamento de W. Gary Crampton no que diz respeito às potencialidades da mente humana para a compreensão dos assuntos divinos não encontra apoio entre os puritanos que redigiram a Confissão de Fé de Westminster, ao contrário do que pensa o próprio. E terminei a segunda postagem mostrando que esse fato bastaria para lançar por terra sua acusação de que declarações do mesmo teor feitas por eminentes teólogos calvinistas conservadores do século XX se devem à influência da neo-ortodoxia. Mas, antes de passar ao próximo ponto, não devo perder a oportunidade de fazer um trabalho um pouco melhor e mostrar o que tinha a dizer a respeito o próprio João Calvino, um sujeito cujas opiniões, por motivos óbvios, devem ser levadas em conta quando o assunto é o calvinismo. Seja notado que a primeira sentença do trecho a seguir, extraído do comentário sobre a Epístola aos Romanos composto pelo reformador, se parece muito com aquelas declarações de teólogos reformados do século XX que Crampton cita no início de seu artigo: "Toda verdade proclamada referente a Cristo é completamente paradoxal pelo prisma do juízo humano. Entretanto, o nosso dever é prosseguir em nossa rota. Cristo não deve ser suprimido só porque para muitos ele não passa de pedra de ofensa e rocha de escândalo. Ao mesmo tempo que Ele prova ser destruição para os ímpios, em contrapartida Ele será sempre ressurreição para os fiéis." O trecho seguinte, retirado das Institutas, esclarece qual deve ser, na opinião de Calvino, a correta atitude diante de mistérios como o da predestinação, explicando também que a razão disso reside na limitação da mente humana:

"A primeira coisa é que se lembrem de que, quando querem saber os segredos da predestinação, penetram no santuário da sabedoria divina, no qual todo aquele que entra com ousadia não encontra como satisfazer sua curiosidade e mete-se num labirinto do qual não pode sair. Porque não é justo que, daquilo em que o Senhor desejou que fosse oculto em si e acessível somente ao entendimento divino, o homem se meta a falar sem temor algum, nem que revolva e esquadrinhe desde a eternidade mesma a majestade e grandeza da sabedoria divina, que Ele quis que adorássemos, e não que a compreendêssemos, a fim de ser para nós dessa maneira admirável. [...] Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria imensa de Deus, que em Seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas coisas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorância, e a avidez de conhecimento, uma espécie de loucura."

A essência do pensamento de Calvino em questões como o valor da lógica humana para os assuntos divinos e a ausência de paradoxos nas Escrituras foi muito bem resumida por Edward Dowey Jr. em The Knowledge of God in Calvin's Theology: "Calvino, pois, estava plenamente convencido de que havia alto grau de claridade e compreensibilidade nos temas individuais da Bíblia, mas estava, também, tão submisso ante o mistério divino a ponto de preferir criar uma teologia contendo muitas inconsistências de lógica, ao invés de optar por um todo racionalmente coerente. [...] Claridade de temas individuais, incompreensibilidade de suas interrelações - essa é a marca registrada da teologia de Calvino."

Espero que esteja claro que não transcrevo essas citações por julgar inadmissível que um calvinista discorde de Calvino. Eu mesmo discordo de vez em quando. Tudo o que pretendo mostrar aqui é que as declarações a respeito dos paradoxos lógicos nas Escrituras, que tanto escandalizam Crampton e os que pensam como ele, não devem nada à neo-ortodoxia, nem a nenhuma outra corrente moderna, e sim estão de acordo com o mais puro espírito do calvinismo, conforme manifestado desde seus primórdios. Quem quiser discordar de Calvino tem todo o direito de fazê-lo, desde que não atribua à própria posição um acordo com a tradição reformada que não existe.

Uma vez constatado que esse acordo não existe, resta comentar sob outros pontos de vista o desacordo que existe. Até aqui demonstrei a falsidade histórica das reivindicações de Crampton, mas há outros aspectos sob os quais seu posicionamento pode ser criticado. Um deles se encontra na última sentença do artigo, onde é dito que "qualquer tropeço nessa área conduzirá (no mínimo) a uma queda no absurdo neo-ortodoxo". Ele se refere, naturalmente, à admissão da existência de paradoxos lógicos na Bíblia. Mas, já que estamos falando de paradoxos lógicos, convém observar que essa declaração é negada por outra feita pelo próprio Crampton em outra parte do artigo. Depois de afirmar que essa admissão equivale a "sustentar, pelo menos implicitamente, uma visão muito baixa da infalível Palavra de Deus", ele se apressa em acrescentar: "Esse declaração não deve de forma alguma ser entendida como uma difamação contra o Dr. Palmer, o Dr. Packer e o Dr. Van Til, todos os quais sustentam uma visão elevada da inspiração bíblica". Se isso é verdade, só pode ser porque esses senhores não caíram no "absurdo neo-ortodoxo", que, como afirma o autor adiante, é o mínimo que pode acontecer a alguém disposto a admitir o que eles admitem. Essa contradição pode parecer de pouca importância, mas é na verdade um indício de um fenômeno muito relevante: entre os que atribuem uma importância excessiva à razão, não é nada raro constatar que a qualidade de seu raciocínio e a precisão de suas declarações não são exatamente o que seria de se esperar.

Na verdade, há uma falha lógica muito mais séria em toda a estrutura do artigo, a qual já foi indicada acima, mas convém explicitá-la e desenvolvê-la agora. Ela se encontra, uma vez mais, na própria associação entre a teologia neo-ortodoxa e a teologia conservadora dos antagonistas de Crampton acima citados. Como vimos, nenhum esforço foi feito no sentido de estabelecer uma relação de parentesco histórico entre as duas correntes. O autor espera nos convencer da influência daquela sobre esta apenas pela enumeração de semelhanças de conteúdo. Trata-se, sem dúvida, de um procedimento insuficiente. Mas Crampton vai além: visto que se dirige a calvinistas conservadores (que, como tais, são naturalmente antipáticos à neo-ortodoxia), está certo de que qualquer semelhança apontada será entendida como sintoma de que algo não vai bem em certos segmentos do mundo teológico reformado. Nisso reside o valor retórico de tudo quanto é dito no artigo acerca da neo-ortodoxia. Contudo, há razões pelas quais esse valor retórico não possui um valor lógico equivalente.

Antes que essas razões sejam expostas, é necessário compreender que estamos falando apenas do lado ofensivo do artigo, ou seja, o lado que ataca a posição do oponente, e não do que defende a legitimidade de sua própria posição. É importante, contudo, que prestemos alguma atenção ao que é dito num sentido mais positivo e propositivo. A essência da tese de Crampton, que é agostiniana e que ele parece ter assimilado via Clark, é que "a lógica é um atributo do próprio Deus", uma ideia que ele abstrai de versículos bíblicos que associam Deus e Cristo à verdade, à sabedoria e ao conhecimento, além de recorrer pela terceira vez à malfadada tentativa de provar seu argumento por meio de 1 Coríntios 14.22 (o versículo sobre o "Deus de confusão", que ele cita três vezes ao todo, sempre no mesmo sentido equivocado). Contudo, nenhum desses textos fala explicitamente da razão, e muito menos da lógica. É natural esperar que o componente racional e lógico esteja incluído na verdade, sabedoria e conhecimento divinos, mas esses versículos não são de nenhuma ajuda quando a questão é saber se a lógica humana pode apreender integralmente os pensamentos divinos e as verdades espirituais mais profundas, ou mesmo se o aspecto lógico e racional está em primeiro plano na sabedoria divina e no conhecimento que podemos obter de Deus. Parece-me que a resposta é forçosamente negativa, pois considero essa ideia uma influência deletéria da filosofia grega sobre o pensamento cristão. E, aos que gostam de salientar que Cristo é o Logos, respondo que não nego que haja alguma semelhança com o conceito grego, mas considero convincente a tese exposta por F. F. Bruce em seu comentário ao Evangelho segundo João, de acordo com a qual o uso do termo grego naquela obra pode ser explicado inteiramente dentro do ambiente judaico, não sendo necessário supor que João reconhecesse (ou mesmo conhecesse) o conceito dos filósofos gregos ou fosse por eles influenciado. Seja como for, o fundamento proposto por Crampton para sua tese é absolutamente insuficiente.

Devo esclarecer que, embora eu não me oponha à ideia de que a coerência lógica seja um atributo divino, nem por isso concordo com Crampton quanto às consequências que ele extrai, quer da asseveração, quer da negação dessa tese. O que se vê aqui é o mesmo que já apontei no post anterior, a saber, a incapacidade de sequer conceber posições intermediárias. É o caso do comentário do autor sobre a discussão gerada por Isaías 55.3-9: que significa a declaração bíblica de que os pensamentos de Deus são mais altos que os nossos? Crampton critica a tese de que a passagem afirma uma total diferença entre a mente divina e a humana, e pensa com isso firmar como inevitável sua posição de que "a diferença entre os pensamentos de Deus e os pensamentos do homem é de grau, não de tipo". Mas por que seriam essas as únicas alternativas disponíveis? Por que os pensamentos de Deus não poderiam ter algo em comum com os nossos - o suficiente para tornar válidos muitos destes últimos - e ao mesmo tempo transcendê-los infinitamente em qualidade, e não apenas em grau?

Em suma, Crampton busca estabelecer sua posição como óbvia a partir da crítica de uma mera caricatura da posição alternativa. Some-se a isso a imensa superficialidade de sua exegese, e o resultado é uma absoluta insuficiência argumentativa na justificação de suas teses. Uma vez constatado esse fato, abre-se a possibilidade de que os elementos centrais de seu pensamento padeçam do mesmo defeito que ele supõe enxergar em seus antagonistas: a influência de alguma corrente de ideias que pouco ou nada tem de autenticamente cristã e bíblica. Explorarei melhor esse ponto no próximo post, que deverá também ser o último desta série.

4 comentários:

ROGÉRIO B. FERREIRA disse...

Tá aí um Blog para quem tem tempo e gosta de textos longos.
Qualquer dia volto aqui com mais calma...

Osmar Neves disse...

Oi André!

Em primeiro lugar, receba os meus cumprimentos pelo seu casamento com a Norma. Que Deus os abençoe e que vocês sejam muito felizes na presença do Senhor!
Gostaria de agradecer a elaboração desses textos sobre a questão do mistério. Eu tenho uma grande simpatia pela abordagem lógica do Gordon Clark e do Vincent Cheung mas nem sempre me sentia à vontade com algumas declarações do Crampton. Parecia-me que faltava a ele, em alguns momentos, um pouco mais de sutileza e conhecimento histórico para abordar algumas questões (em política, por exemplo, eu discordo da defesa dele em favor da construção de uma república teocrática). E o seu texto veio corroborar a minha impressão. Mas confesso que nem sempre concordo com a CFW por ela se omitir sobre alguns temas e alegar a existência do mistério. Creio que a lógica seja sim um atributo da Deidade (influenciado por Gordon Clark), uma característica constitutiva do seu Ser (se é que se pode dizer isso sobre Deus - e aqui vejo a limitação da linguagem para expressar e compreender algo sobre Deus, ou seja, teríamos aqui um mistério). Influenciado por Clark e Cheung, também acredito que não existem contradições na realidade, o que há, na minha modesta opinião, é ausência de informação exaustiva. Mas parte desse problema pode ser resolvido com deduções lógicas das informações existentes e é aqui que não me conformo com o acanhamento de alguns teólogos. E também considero pertinente a pergunta do Cheung sobre contradições: como é que se sabe se ela é aparente ou real? Bem, essa é a minha posição: o mistério existe, Deus é lógico, contradições não existem e a lógica deveria ser utilizada para suprir parte da informação ausente por meio de deduções válidas das proposições reveladas. Um abraço irmão (tentarei, na medida do possível, acompanhar o seu blog também - respeito e aprecio a inteligência e a cultura de vocês dois).

André disse...

Caro Osmar, obrigado pelos cumprimentos. Quanto ao conteúdo de seu comentário, eu concordo com você em grande medida, embora não em tudo. Mas peço sua compreensão por não responder devidamente. É que esta série terá uma continuação, que pretendo postar em breve (provavelmente hoje ou amanhã), e nela eu ia mesmo abordar questões relacionadas ao que você disse. Acredito que ali minha posição ficará mais clara. Depois disso, acredito que poderemos conversar com mais propriedade.

De qualquer forma, sinta-se à vontade para aparecer por aqui sempre que quiser, para comentar sobre esse tema ou qualquer outro.

Um grande abraço!

Casal 20 disse...

André, estou lendo os textos e tem sido uma experiência maravilhosa! Gostaria de destacar: "Por que os pensamentos de Deus não poderiam ter algo em comum com os nossos - o suficiente para tornar válidos muitos destes últimos - e ao mesmo tempo transcendê-los infinitamente em qualidade, e não apenas em grau?" - desde a leitura do Crampton fiquei com essa mesma ideia na cabeça.

Já li alguma coisa do Clark e do Cheung, mas do Van Til li apenas críticas a ele.

Sigo lendo.

Abraços sempre afetuosos.

Fábio.