25 de dezembro de 2010

Lições de uma noite

Ontem à noite, minha esposa e eu fizemos nosso culto doméstico habitual, mas com tema natalino. Em vez do estudo da Primeira Epístola aos Coríntios que vínhamos empreendendo, lemos o sermão A encarnação e o nascimento de Cristo, pregado por Charles Haddon Spurgeon na manhã do domingo anterior ao Natal de 1855, na New Park Street Chapel, em Londres. Spurgeon foi pastor batista, teólogo calvinista e grande expositor das Escrituras. Ele é chamado às vezes de "o último dos puritanos", e tinha apenas 21 anos quando proferiu a mensagem em questão. O texto bíblico escolhido por Spurgeon há 155 anos foi um único versículo extraído, não das narrativas dos evangelhos sobre o nascimento de Cristo, mas de uma profecia veterotestamentária, a de Miqueias 5.2: "E tu, Belém-Efrata, pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade". Fomos muito abençoados por essa mensagem, de modo que decidi fazer este post para ressaltar quatro pontos que se me afiguraram particularmente interessantes.

1.
O primeiro ponto é sobre a própria legitimidade da observância do Natal, questão algo controversa entre os reformados, com alguns tomando a data como especial e sua celebração como inatacável, enquanto outros consideram-na apenas uma maldita superstição pagã alojada no seio da cristandade. O apóstolo Paulo nos deu um princípio importante a partir da questão do alimento: "Um crê que de tudo pode comer, mas o débil come legumes; quem come não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu". E Paulo notou que a questão da observância dos dias está no mesmo patamar: "Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come para o Senhor não come e dá graças a Deus." É triste ver os que celebram o Natal desprezando os que não o celebram, e estes julgando aqueles. Deveríamos todos prestar mais atenção ao texto de Romanos 14 acerca das coisas que não são essenciais. Spurgeon nos ajuda a atribuir o valor correto ao evento, sem exagero em nenhum sentido:

"Não há nenhuma probabilidade de que nosso Salvador Jesus Cristo tenha nascido nesse dia, e a observância dele é puramente de origem papal - sem dúvida os que são católicos têm o direito de reivindicá-lo - mas não posso entender como os protestantes consistentes podem tê-lo de alguma maneira como sagrado. No entanto, eu desejaria que houvesse dez ou doze dias de Natal ao ano, porque há suficiente trabalho no mundo e um pouco mais de descanso não faria mal ao povo trabalhador. O dia de Natal é de fato uma benção para nós, particularmente porque nos congrega em redor da lareira [do aparelho de ar condicionado, para nós que moramos em Salvador] de nossas casas e nos reunimos uma vez mais com nossos amigos. No entanto, ainda que não sigamos os passos de outras pessoas, não vejo dano algum em pensarmos na encarnação e no nascimento do Senhor Jesus. [...] Os antigos puritanos faziam ostentação do trabalho no dia de Natal, só para mostrar que protestavam contra a observância desse dia. Mas nós cremos que protestavam tão radicalmente que desejamos, como descendentes seus, aproveitar o bem acidental conferido a esse dia e deixar que os supersticiosos prossigam com suas superstições."


2.
Spurgeon extrai uma importante mensagem do significado hebraico dos nomes da cidade: Belém e Efrata. Belém pode significar "casa do pão" ou "casa da guerra", ao passo que Efrata significa "fecundidade" ou "abundância". Diz o pregador: "Jesus é que nos faz fecundos. 'Quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto' (João 15.5) Gloriosa Belém Efrata! Bem nomeada! Fértil casa de pão - a casa de abundante provisão para o povo de Deus!" Contudo, me impressionou ainda mais a exposição dos significados de Belém, em especial a alusão à esterilididade da Lei (assunto caro ao apóstolo Paulo) e à nossa incapacidade de suportar a glória de Deus, simbolizadas pelos montes Sinai e Tabor.

"Cristo não devia nascer na 'casa do pão'? Ele é o pão de seu povo, é dEle que este recebe seu alimento. Como nossos pais comeram o maná no deserto, assim nós vivemos de Cristo aqui embaixo. Famintos frente ao mundo, não podemos alimentar-nos de suas sombras. Suas cascas podem agradar ao gosto suíno do mundo, pois eles são porcos, mas nós precisamos de algo mais substancial, e nesse pão do céu, feito do corpo ferido de nosso Senhor Jesus, e cozido no forno de Suas agonias, encontramos um bendito alimento. Não existe alimento como Jesus para a alma desesperada ou para o mais forte dos santos. O mais humilde da família de Deus vá a Belém por seu pão; e o homem mais forte, que come sólidos alimentos, vá a Belém por eles. Casa do Pão! De onde poderia vir nosso alimento senão de ti? Temos provado o Sinai, mas em seus picos afiados não crescem frutos, e suas alturas espinhosas não produzem trigo que possa alimentar-nos. Fomos ao próprio Tabor, onde Cristo foi transfigurado, e, no entanto, ali não fomos capazes de comer Sua carne e beber Seu sangue. Porém tu, Belém, casa de pão, foste corretamente nomeada; pois em ti se deu ao homem pela primeira vez o pão da vida. E também és chamada 'a casa da guerra', porque Cristo é para os homens 'casa do pão' ou, do contrário, 'casa da guerra'. Enquanto Ele é alimento para o justo, faz guerra ao ímpio, segundo Sua própria palavra:
'Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa.' ( Mateus10.34-36) Pecador, se não conheces Belém como 'a casa do pão', então ela será para ti uma 'casa de guerra'. Se nunca bebes o doce mel dos lábios de Jesus, se não és como a abelha que sorve do delicioso e doce licor da Rosa de Sarom, então dessa mesma boca sairá uma espada de dois gumes contra ti [alusão a Apocalipse 19.11-21] - e essa mesma boca da qual os justos retiram seu pão será para ti a boca da destruição e a causa de teu mal. Jesus de Belém, casa de pão e casa de guerra, nós confiamos que Te conhecemos como nosso pão."

3.
O pregador extraiu uma maravilhosa lição da alusão bíblica às saídas do Messias "desde os dias da eternidade". Trata-se da própria soberania do Deus Trino, manifesta em seu decreto eterno, que deve ser fonte de abundante consolação e segurança para os crentes: eleição e perseverança.

"Ele saiu por Seu povo, como seu representante diante do trono, ainda antes que esse povo fosse gerado no mundo. Foi desde a eternidade que Seus poderosos dedos tomaram a pena, e a caneta das eras, e escreveram Seu próprio nome, o nome do eterno Filho de Deus. Foi desde a eternidade que firmou com Seu Pai o pacto pelo qual pagaria sangue por sangue, ferida por ferida, sofrimento por sofrimento, agonia por agonia e morte por morte em favor de Seu povo. Foi desde a eternidade que Ele entregou a Si mesmo, sem murmurar uma palavra, que desde Sua cabeça até a planta dos Seus pés suaria sangue, que seria cuspido, traspassado, traído, partido em dois, sofreria a dor da morte e as agonias da cruz. Suas saídas como nossa garantia foram desde a eternidade. Faça uma pausa, alma, e assombre-se! Você teve saídas na pessoa de Jesus desde a eternidade. Não foi apenas quando nasceu nesse mundo que Cristo a amou; Seus deleites estavam com os filhos dos homens desde antes que houvesse filhos dos homens. Ele frequentemente pensava neles; de eternidade a eternidade Ele tinha posto neles Seu afeto. Como, então, ó crente, Ele esteve envolvido em sua salvação desde muito tempo atrás e não vai alcançá-la? Desde a eternidade Ele saiu para salvar-me e vai me perder agora? Como? Tem-me em Sua mão, como Sua joia preciosa, e deixará que resvale por entre Seus preciosos dedos? Elegeu-me antes que as montanhas fossem erigidas, antes que os canais das profundezas fossem esculpidos, e agora me perderá? Impossível! [...] Estou seguro de que não me amaria durante tanto tempo para logo depois deixar de fazê-lo. Se tivesse a intenção de se cansar de mim, já o teria feito há muito. Se não tivesse me amado com um amor tão profundo como o inferno e tão inexprimível como a tumba, se não tivesse dado todo o Seu coração, estou seguro de que já teria me abandonado há muito! Ele sabia o que eu seria e teve muito tempo para considerar isso; mas sou Seu eleito, e isso é definitivo. E, embora eu seja indigno, não me é dado resmungar, se Ele está contente comigo."


4.
Na conclusão da pregação, depois de ter citado exemplos das "saídas" de Cristo na história de Israel, quando esteve presente em forma visível a Abraão, Jacó, Josué e os amigos de Daniel, Spurgeon fala sobre a presença de Cristo nos corações dos crentes, em especial dos que, como nós, passam por momentos difíceis.

"Há certos lugares especiais nos quais devemos entrar para encontrar o Senhor. Devemos estar em grandes problemas, como Jacó; devemos estar em meio a grandes trabalhos, como Josué; devemos ter uma grande fé intercessória, como Abraão; devemos estar firmes no desempenho de um dever, como Sadraque, Mesaque e Abedenego. Do contrário, não conheceremos Aquele
'cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade'. Ou, se O conhecermos, não seremos capazes de 'compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade' (Efésios 3.18). Doce Senhor Jesus! Tu, cujas saídas foram desde o início, desde os dias da eternidade, Tu que, todavia, não abandonaste Tuas saídas, sai hoje para animar o desmaiado, para ajudar o cansado, para sarar nossas feridas, para consolar nossas aflições! Sai, suplicamos-Te, para conquistar os pecadores, para subjugar corações endurecidos, para romper as portas de ferro de seus pecados e fazê-las em pedaços! Ó Jesus, sai e, ao saíres, vem a mim! [...] Pobre pecador! Cristo não tem deixado de sair. E quando sai, lembra-te, Ele vai a Belém. [...] Ele virá à tua velha e pobre casa; virá ao teu pobre coração infeliz; virá, ainda que estejas na pobreza, e coberto de farrapos; ainda que estejas desamparado, atormentado e aflito. Ele virá, pois Suas saídas têm sido desde o princípio, desde os dias da eternidade. Confia Nele, confia Nele, confia Nele; e Ele sairá e habitará em teu coração por toda a eternidade."

Glória a Jesus Cristo, pois Ele já veio e está conosco!

Feliz Natal a todos!

7 comentários:

Casal 20 disse...

Querido André, ótimo post.

Exposição sábia e clara acerca da postura devida diante dos posicionamentos em relação ao Natal.

Spurgeon é um presente dado por Deus para a Igreja.

Realmente, é impressionante como o Natal está entranhado na nossa cultura, tanto protestante como fora. Foram muitos, mas muitos mesmos, os posts sobre o tema entre os evangélicos.

Creio no fator tempo também. É um tempo. Nós precisamos disso: tempo. Ou melhor, a marcação do tempo (à luz de Eclesiastes, que ensina que há tempo para tudo). O rito é forte. O Natal talvez hoje se explique mais pelo rito do que por qualquer significado que se poderia ter para a imensa população que o comemora com ou sem Cristo.

André, abraços sempre afetuosos em você e na Norma. Sei que a amizade de vocês é um aprendizado constante para nós.

Estamos orando sempre por vocês.

Feliz Natal, queridos.

@shbel disse...

Oi André... sei que sou suspeito pra falar mas estou orgulhoso desta exposição... "André, o pacificador!"
Soli Deo Gloria!

abraços do Digão

André disse...

Casal 20, muito obrigado pelo comentário. Suas orações são preciosas para nós, e sua amizade nos enriquece. Quanto ao Natal, suas observações são corretas, e cabe a nós aproveitar com gratidão a Deus o que a data nos oferece de bom.

Digão, não sei se estou pacificando ou alfinetando, mas de qualquer forma a intenção é boa. hehe

Abraços, e feliz 2011 para todos vocês!

Mulher na Polícia disse...

Caro André...

Tô aqui agoniada sem notícias de vocês! Será que vou ter que impetrar um habeas data???

Beijos aos três.

Mulher na Polícia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mulher na Polícia disse...

Obrigada André, por ter informado.

Muita tristeza.

Manda um beijo pra ela, tá?

: (

André Luiz... disse...

Olá!


"Não há nenhuma probabilidade de que nosso Salvador Jesus Cristo tenha nascido nesse dia, e a observância dele é puramente de origem papal - sem dúvida os que são católicos têm o direito de reivindicá-lo - mas não posso entender como os protestantes consistentes podem tê-lo de alguma maneira como sagrado."

Mas por que Spurgeon afirma com tanta convicção que não há probabilidade de Nosso Senhor ter nascido na data assignalada? E como assim 'de origem papal'? Se fosse de origem papal, porque então nós, ortodoxos, tão contrários ao papismo, a comemoramos na mesma data?




[]s
André