16 de junho de 2010

Viagens doloridas - parte 3

Este post encerra a transcrição dos trechos interessantes do livro Diário de viagem, de Albert Camus.

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Em Salvador:

"Três horas de voo, e depois veem-se surgir, sobre uma imensidão, colinas curtas cobertas de neve. Ao menos, é a impressão que me dá essa areia branca, muito frequente aqui, e cujas vagas imaculadas parecem cercar a Bahia com um deserto intacto. Do aeroporto até a cidade, seis quilômetros de estrada em ziguezague, entre as bananeiras e uma vegetação frondosa. A terra é totalmente vermelha. Bahia, onde só se veem negros, parece-me uma imensa casbah fervilhante, miserável, suja e bela. Mercados imensos, feitos de velas esburacadas e de tábuas velhas, de velhas casas baixas, caiadas de vermelho, verde-maçã, azul, etc. Almoço no porto. Grandes barcos de velas latinas, ocre e azul, descarregando cachos de bananas. Comemos pratos tão apimentados que fariam andar paralíticos. A baía que vejo também da janela do meu hotel estende-se, redonda e pura, cheia de um estranho silêncio, sob o céu cinzento, enquanto as velas paradas que nela se veem parecem aprisionadas num mar subitamente imobilizado. Prefiro essa baía à do Rio, muito espetacular para o meu gosto. Esta, pelo menos, tem uma medida e uma poesia. [...] Visita às igrejas. São as mesmas de Recife, se bem que tenham mais fama. [...] É sufocante. Mas esse barroco harmonioso repete-se muito. Finalmente, é a única coisa a ser vista neste país, e isso se vê depressa. Resta a vida verdadeira. Mas sobre esta terra imensa, que tem a tristeza dos grandes espaços, a vida é no nível do chão, e seriam necessários muitos anos para a ela integrar-se. Será que sinto vontade de passar alguns anos no Brasil? Não."

De volta ao Rio:

"A noitada termina com música brasileira, que me parece qualquer outra. Importante, contudo, é que o Brasil seja o único país de população negra que produz canções sem parar. O arremate final é um frevo, dança de Pernambuco, da qual participa a própria plateia, e que é realmente a cantoria mais desenfreada que já vi. Encantadora."

Viagem pelo interior do Rio, seguida da volta à capital:

"Weekend em casa de Cl. em Teresópolis. 150 quilômetros do Rio, nas montanhas. A estrada é bela, sobretudo entre Petrópolis e Teresópolis. De vez em quando, um ipê coberto de flores amarelas desponta numa curva, diante de um horizonte de montanhas que se sucedem até o horizonte. Compreende-se ainda aqui o que me impressionava no avião, quando sobrevoava este país. Imensas áreas virgens e solitárias junto às quais as cidades, agarradas ao litoral, são apenas pontos sem importância. A qualquer momento, este enorme continente sem estradas, todo entregue à selvageria natural, pode voltar-se e recuperar essas cidades falsamente luxuosas. O fim de semana se passa em passeios, banhos e pingue-pongue. Respiro, enfim, neste campo. E o ar, a oitocentos metros, me faz avaliar melhor o clima do Rio, realmente cansativo. Quando descemos, no domingo à noite, é sem alegria que reencontro a cidade. Aliás, sou acolhido diante da Embaixada por uma dessas cenas por demais frequentes no Rio. De novo, uma mulher estendida, sangrando, diante de um ônibus. E uma multidão que olha em silêncio, sem prestar-lhe socorro. Esse costume bárbaro me revolta. Bem mais tarde, ouço a sirene de uma ambulância. Durante todo esse tempo, deixaram morrer essa infeliz em meio aos gemidos. Em compensação, dão demonstrações de adorar crianças."

"Perseguido, na verdade, nessa gloriosa luz do Rio, pela ideia do mal que se faz aos outros a partir do instante em que se olha para eles. Durante muito tempo, fazer sofrer me foi indiferente, é preciso confessá-lo. Foi o amor que me esclareceu quanto a isso. Agora, não consigo mais suportá-lo. De certa forma, é melhor matar que fazer sofrer. O que me pareceu muito claro ontem, afinal, é que eu desejaria morrer."

Em São Paulo:

"São Paulo, e a noite cai rapidamente, enquanto os cartazes luminosos se acendem um por um, no topo dos arranha-céus espessos, enquanto das palmeiras reais que se elevam entre os edifícios chega um canto ininterrupto, vindo dos milhares de pássaros que saúdam o fim do dia, encobrindo as buzinas graves que anunciam a volta dos homens de negócio. Jantar com Oswald de Andrade, personagem notável (a desenvolver). Seu ponto de vista é que o Brasil é povoado de primitivos e que é melhor assim. A cidade de São Paulo, cidade estranha, Oran desmedida. Esqueço totalmente de anotar o que mais me sensibilizou. Foi uma transmissão de rádio de São Paulo, em que pessoas pobres vêm ao microfone para expor a necessidade em que se encontram momentaneamente. Naquela noite, um grande negro, vestido de maneira pobre e com uma menina de cinco meses no colo, a mamadeira no bolso, veio explicar, com simplicidade, que, abandonado pela mulher, procurava alguém para cuidar da criança sem tirá-la dele. [...] Cinco minutos após o fim da transmissão, o telefone toca de forma ininterrupta. Todos se oferecem ou oferecem alguma coisa. [...] E eis o desfecho: um negro grande, mais idoso, entra no escritório semidespido. Estava dormindo, e a mulher, que ouvia o programa, acordou-o e disse: 'Vá buscar a criança'."

"Andrade me expõe sua teoria: a antropofagia como visão de mundo. Diante do fracasso de Descartes e da ciência, retorno à fecundação primitiva: o matriarcado e a antropofagia. O primeiro bispo que desembarca na Bahia tendo sido comido por lá, Andrade datava sua revista como do ano 317 da deglutição do bispo Sardinha (pois o bispo chamava-se Sardinha)."

Viagem ao litoral sul paulista:

"Descontando as paradas, levamos dez horas para fazer os trezentos quilômetros que nos separam de São Paulo. [...] Exaustos, vamos ao clube. O clube é uma espécie de bistrô, no segundo andar, onde encontramos outras autoridades, que nos cobrem de atenções. Observo, mais uma vez, a refinada polidez brasileira, talvez um pouco cerimoniosa, mas que, mesmo assim, é melhor que a grosseria europeia. Sanduíche e cerveja. Mas um grandalhão desengonçado, que mal se aguenta nas pernas, tem a singular ideia de vir pedir meu passaporte. Mostro-o, e ele parece dizer-me que não está em ordem. Cansado, mando-o às favas. As autoridades, indignadas, reúnem-se numa espécie de conselho, findo o qual vêm dizer-me que vão botar esse policial (pois é um policial) na prisão e que eu tenho de escolher a forma de puni-lo. Suplico-lhes que o deixem em liberdade. Explicam-me que a honra tão grande que faço a Iguape não foi reconhecida por esse mal-educado e que é preciso uma sanção para essa falta de modos. Repito o que dissera antes. Mas querem homenagear-me dessa maneira. A coisa vai durar até a noite seguinte, quando finalmente descubro a fórmula, pedindo que me façam o favor pessoal e excepcional de poupar esse tonto. Todos surpreendem-se diante do meu cavalheirismo e dizem que tudo será feito conforme a minha vontade."

"Vi beija-flores. E, uma vez mais, durante horas e horas, olho para esta natureza monótona e estes espaços imensos; não se pode dizer que sejam belos, mas colam-se à alma de uma forma insistente. País onde as estações se confundem umas com as outras; onde a vegetação inextricável torna-se disforme; onde os sangues misturaram-se a tal ponto que a alma perdeu seus limites. Um marulhar pesado, a luz esverdeada das florestas, o verniz de poeira vermelha que cobre todas as coisas, o tempo que se derrete, a lentidão da vida rural, a excitação breve e insensata das grandes cidades - é o país da indiferença e da exaltação. Não adianta o arranha-céu; ele ainda não conseguiu vencer o espírito da floresta, a imensidão, a melancolia. São os sambas, os verdadeiros, que exprimem melhor o que quero dizer."

Em Porto Alegre:

"Em Porto Alegre, desembarco sob um frio cortante. [...] A luz é muito bela. A cidade, feia. Apesar de seus cinco rios. Essas ilhotas de civilização são frequentemente horrendas."

No Uruguai:

"À acolhida das autoridades francesas de Montevidéu falta calor. A data de minhas conferências foi mudada várias vezes. Deixaram até de reservar um quarto para mim. [...] Obrigado a confessar a mim mesmo que, pela primeira vez na vida, estou em pleno conflito psicológico. Este duro equilíbrio que a tudo resistiu desmoronou, apesar de todos os meus esforços. Dentro de mim estão as águas esverdeadas em que passam formas vagas, em que se dilui minha energia. É o inferno, de certa forma, esta depressão. Se as pessoas que me recebem aqui sentissem o esforço que faço para parecer normal, fariam ao menos o esforço de um sorriso."

Na Argentina:

"De manhã, Buenos Aires. Enorme amontoado de casas que se aproximam. [...] Volta pela cidade - de uma feiúra rara."

De volta ao Rio:

"O avião parte às onze horas. Sob um céu terno, arejado, nublado, Montevidéu exibe suas praias - cidade encantadora, em que tudo pressupõe a felicidade - e a felicidade sem espírito. [...] Às cinco horas, sobrevoamos o Rio e, na descida, sou acolhido por esse ar espesso e úmido, com consistência de algodão hidrófilo, do qual já me esquecera e que é típico do Rio. Ao mesmo tempo, os papagaios tagarelas e multicoloridos e um pavão de voz desafinada."

"Às 13h30min, Pedrosa e sua mulher vêm buscar-me para ver as pinturas dos loucos, no subúrbio, num hospital de linhas modernas e com uma sujeira antiga. O coração se confrange vendo os rostos por trás das grades das jaulas. [...] Fico apavorado ao reconhecer, num jovem médico psiquiatra do estabelecimento, o rapaz que no início me fez a pergunta mais tola que já me fizeram em toda a América do Sul. É ele quem decide o destino desses infelizes."

10 de junho de 2010

Viagens doloridas - parte 2

Neste post e no próximo darei continuidade ao anterior. Ali transcrevi trechos da viagem de Albert Camus à América do Norte. Agora, passo a transcrever trechos de seu Diário de viagem que narram a visita à América do Sul. Isso aconteceu em 1949, e a maior parte do tempo foi passada no Brasil. Essa viagem está mais bem documentada, o que resultou num volume maior de trechos interessantes; eis a razão pela qual dividi essa parte em dois posts.

Mantive os nomes de pessoas e lugares que Camus escreveu de maneira incorreta. Além disso, a única coisa que tenho a comentar é que, vistos sob a perspectiva de Camus, alguns de nossos compatriotas famosos de seis décadas atrás se revelaram ridículos ao extremo.

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No navio:

"Por duas vezes, a ideia de suicídio. Na segunda vez, sempre olhando para o mar, um terrível ardor me vem às têmporas. Acho que agora compreendo como a pessoa se mata."

"É preciso que se diga, no entanto, que bronzeado, descansado, alimentado e vestido de roupas claras, tenho todos os ares de vida. Parece-me que eu poderia agradar. Mas a quem?"

"Chegamos daqui a dois dias. De repente, a ideia de deixar este navio, este camarote estreito em que, durante longos dias, pude abrigar um coração desligado de tudo, esse mar que tanto me ajudou, me assusta um pouco. Recomeçar a viver, a falar. Seres, rostos, um papel a desempenhar, seria preciso mais coragem do que sinto em mim."

Chegando ao Rio de Janeiro:

"Às quatro da manhã, um estardalhaço no convés superior me desperta. Saio. Ainda está escuro. Mas a costa está muito próxima: serras negras e regulares, muito recortadas, mas os recortes são redondos - velhos perfis de uma das mais velhas terras do globo. Ao longe, luzes. [...] Volto para o meu camarote. Quando torno a subir, já estamos na baía, imensa, um pouco fumegante no dia que nasce, com súbitas condensações de luz, que são as ilhas. A névoa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o 'Pão de Açúcar', com quatro luzes no seu topo, e no mais alto cume das montanhas, que parecem esmagar a cidade, um imenso e lamentável Cristo luminoso. À medida que nasce a luz, vê-se melhor a cidade, espremida entre o mar e as montanhas, estendida no comprimento, interminavelmente estirada. No centro, prédios enormes. [...] Estamos no meio da baía e as montanhas, à nossa volta, fazem um círculo quase perfeito. Finalmente, uma luz mais sanguínea anuncia o raiar do sol, que surge por trás das montanhas a leste, em frente à cidade, e começa a subir, num céu pálido e fresco. A riqueza e a suntuosidade das cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu, fazem calar a todos, uma vez mais. [...] Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar."

"No automóvel, peço que não se vá a um restaurante de luxo. E o poeta emerge de seus 150 quilos e me diz, com o dedo em riste: 'Não há luxo no Brasil. Somos pobres, miseráveis', dando tapinhas afetuosos no ombro do motorista engalanado, que dirige seu enorme Chrysler. [...] Aterrissamos num restaurante perto do Mercado, onde só se come peixe, numa sala quadrada, com um pé-direito muito alto, tão brutalmente iluminada a neon que parecíamos pálidos peixes fazendo evoluções numa água irreal. O señorito quer escolher minha comida. Mas, esgotado, gostaria de uma refeição leve, e recuso tudo o que ele me oferece. Servem primeiro o poeta, que começa a comer sem esperar por nós, substituindo às vezes o garfo pelos dedos grossos e curtos. Fala de Michaux, Supervielle, Béguin, etc., e interrompe-se, vez por outra, para cuspir no prato, lá do alto, as espinhas de seu peixe. É a primeira vez que vejo fazer-se essa operação sem curvar o corpo. Aliás, com uma destreza maravilhosa, ele só não acerta o prato uma vez. [...] Essa grosseria, essa falta de modos, se expõe de forma tão natural que se torna amável. [...] O señorito aproveita para explicar as dificuldades administrativas do Figaro, que eu conheço bem, mas das quais ele nos faz peremptoriamente uma descrição absolutamente falsa. Chamfort, porém, tem razão: quando se quer ser agradável no mundo, é preciso decidir deixar que nos ensinem muitas coisas que sabemos, por pessoas que as desconhecem."

Segundo os editores, o poeta acima mencionado é Augusto Frederico Schmidt. O "señorito" não foi identificado. E o "Barleto" citado a seguir é João Batista Barreto Leite Filho, jornalista que trabalhara como correspondente na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.

"Almoço com Barleto na casa de uma romancista e tradutora brasileira. [...] Os convivas se espantam quando peço para assistir a uma partida de futebol e literalmente deliram ao descobrir que tive uma longa carreira de jogador de futebol. Encontrei, sem querer, sua paixão principal."

"Os jardins da Tijuca, a capela Meyrink, o Corcovado, a baía do Rio, visualizada cem vezes sob os aspectos mais diferentes. E as imensas praias do sul, de areia branca e ondas cor de esmeralda, que se estendem, desertas, por milhares de quilômetros até o Uruguai. A floresta tropical e seus três níveis. O Brasil é uma terra sem homens. Tudo é criado aqui às custas de esforços desmedidos. A natureza sufoca o homem. O espaço basta para criar a cultura?, indaga-me o bom professor brasileiro. É uma pergunta sem sentido. Mas estes espaços são os únicos à altura dos progressos técnicos. Quanto mais veloz o avião, menos importância têm a França, a Espanha e a Itália. Elas eram nações, ei-las províncias e, amanhã, aldeias do mundo. O futuro não está em nós, e nada podemos contra esse movimento irresistível. A Alemanha perdeu a guerra porque era nação e porque a guerra moderna exige os meios de impérios. Amanhã, serão necessários meios de continentes. E eis os dois grandes impérios partindo para a conquista de seu continente. Que fazer? A única esperança é que nasça uma nova cultura, e que a América do Sul talvez ajude a temperar a besteira mecânica. Eis o que digo, e mal, ao meu professor, enquanto deixamos escorrer a areia por entre os dedos, diante de um mar sibilante."

"Assistimos a um dos inúmeros acidentes provocados pelo trânsito inverossímil. Um pobre velho negro mal embrenhado numa avenida rutilante de luzes é colhido por um ônibus, que o lança dez metros à frente, como uma bola de tênis, contorna-o e foge. Isso se deve à estúpida lei de flagrante delito, segundo a qual o motorista teria sido levado à prisão. Portanto, ele foge, não há mais flagrante delito e não será preso. O velho negro fica lá, sem que ninguém o levante. Mas o impacto teria matado um boi. Descubro mais tarde que será colocado sobre ele um lençol branco, em que o sangue se irá espalhando, com velas acesas ao redor, e o trânsito continuará à sua volta, contornando-o, somente até que cheguem as autoridades para a reconstituição."

"Jantar na casa dos Chapass, com o poeta nacional Manuel Bandera, pequeno homem extremamente fino. Depois do jantar, Kaïmi, um negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta, vem cantar com seu violão. São as canções mais tristes e mais comoventes. O mar e o amor, a saudade da Bahia. Pouco a pouco, todos cantam e vê-se um negro, um deputado, um professor da Faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido."

Em Recife:

"Terra vermelha e coqueiros. E, em seguida, o mar e praias imensas. [...] Igrejas coloniais admiráveis, onde domina o branco, em que o estilo jesuíta é iluminado e tornado mais leve pela caiação. O interior é barroco, mas sem o peso excessivo do barroco europeu. A Capela Dourada, em especial, é admirável. Os azulejos aqui estão perfeitamente conservados. Simplesmente, como também nas pinturas, os 'maus' Judas, os soldados romanos, etc., foram desfigurados pelo povo. Todos mostram as faces corroídas e sangrentas. Admiro a cidade antiga, as casinhas vermelhas, azuis e ocre, as ruas calçadas com grandes pedras pontiagudas. [...] Positivamente, gosto de Recife. Florença dos trópicos, entre suas florestas de coqueiros, suas montanhas vermelhas, suas praias brancas."

4 de junho de 2010

Viagens doloridas - parte 1

Dada minha decisão de expor neste blog os pontos essenciais de minha viagem à Europa - exposição que eu, aliás, ainda não terminei -, nada como contrabalançá-las expondo as opiniões de um francês ilustre sobre suas viagens pelo Novo Mundo. No Natal passado, ganhei de minha noiva um pequeno livro: o Diário de viagem de Albert Camus (1913-1960), contendo as anotações que o célebre escritor francês fez ao longo de duas viagens pelo continente americano. A primeira delas foi aos Estados Unidos, tendo incluído também uma visita ao Canadá, e se deu em 1946. O diário começou a ser escrito ainda no navio, e é também num navio que ele acaba. Camus é um daqueles sujeitos em relação aos quais tenho vários e profundos desacordos, mas ele tem também uma porção de qualidades: não só é bom escritor, mas também um sujeito inteligente e sensível, e ao menos transmite a impressão de ser honesto e íntegro. Além de tudo isso, é uma daquelas almas constantemente torturadas pelo desespero de uma vida vazia. É claro que não me enquadro nessa categoria, mas pessoas assim sempre despertam minha simpatia.

No post de hoje, trascreverei os trechos de sua viagem à América do Norte que, por razões diversas, considerei os mais interessantes. O diário contém relatos de eventos presenciados e impressões sobre pessoas que conheceu. Contém também algumas reflexões baseadas nessas experiências, bem como reflexões que não parecem ter relação alguma com o que está se passando. Há trechos que aparentemente são ideias para textos que o autor pretendia escrever. Existem também relatos pungentes, embora curtos, sobre sua própria vida interior. Há um pouco de tudo isso nos trechos abaixo. O estilo de rascunho pode ser notado com facilidade. Não julgo necessário adicionar comentários. Isso não significa, naturalmente, que eu concorde com tudo o que é dito. Sobre certas coisas, aliás, eu sequer tenho alguma opinião. Meu objetivo aqui é apenas o de expor amostras de uma personalidade interessante e até brilhante, embora atormentada. Nos próximos posts trarei trechos igualmente interessantes sobre a segunda viagem de Camus.

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"Sexta-feira. Sábado. Domingo. Mesmo programa. Com o mar sempre agitado, descemos em direção ao sul e ultrapassamos os Açores. Essa sociedade em miniatura é ao mesmo tempo apaixonante e monótona. Todos se pretendem elegantes e requintados. É o lado cachorrinho amestrado. Mas alguns se abrem. O peleteiro X está no navio. Assim, ficamos sabendo que tem um magnífico jogo de porcelana, uma prataria estupenda, etc., mas que se utiliza de cópias que mandou fazer, guardando trancados os originais. Ao que me pareceu, tem também uma cópia de mulher, com a qual nunca fez outra coisa senão uma cópia de amor."

"Segunda-feira. Dia magnífico. O vento amainou. Pela primeira vez, o mar está calmo. Os passageiros surgem no convés como cogumelos depois da chuva. Respira-se bem-estar. No fim da tarde, o sol brilha magnífico. Depois do jantar, luar sobre as águas. A sra. D. e eu concordamos ao achar que a maioria das pessoas não leva a vida que gostaria de levar e que nisso há covardia."

"Atracamos na Baía de Hudson e só vamos desembarcar amanhã de manhã. Ao longe, os arranha-céus de Manhattan, sobre um fundo de bruma. Sinto o coração tranquilo e seco, como quando me vejo diante de espetáculos que não me comovem."

"Segunda-feira. Deitar muito tarde na véspera. Acordar cedo demais. Subimos o porto de Nova York. Espetáculo formidável apesar, ou até por causa, da bruma. A ordem, o poderio, a força econômica, estão lá. O coração treme diante de tanta desumanidade admirável. [...] Cansado. Minha gripe volta. E é com as pernas bambas que recebo o primeiro impacto de Nova York. À primeira vista, cidade horrenda e desumana. Mas sei que se muda de opinião. São os detalhes que me impressionam: os lixeiros de luvas, o trânsito disciplinado, sem intervenção de guardas nos cruzamentos, etc., ninguém nunca tem troco nesse país e todo mundo parece ter saído de um seriado. À noite, ao percorrer a Broadway de táxi, cansado e febril, fico literalmente atordoado pela feira luminosa. Saio de cinco anos de noite e essa orgia de luzes me dá pela primeira vez a impressão de um novo continente. [...] Tudo isso é amarelo e vermelho. Deito-me doente, tanto do coração quanto do corpo, mas sabendo perfeitamente que terei mudado de opinião em dois dias."

"Magníficas lojas de comida. De matar de indigestão toda a Europa. Admiro as mulheres na rua, o colorido dos vestidos, dos táxis - todos têm um ar de insetos com roupas de domingo, vermelhos, amarelos, verdes. Quanto às lojas de gravatas, é preciso ver para crer. Tanto mau gosto parece inimaginável. D. me garante que os americanos não gostam das ideias. É o que se diz. Mas tenho minhas dúvidas. [...] Cheiro de Nova York: um aroma de ferro e de cimento; o ferro domina. [...] L. M. me expõe sua teoria pessoal sobre os americanos. É a décima-quinta que ouço. Na esquina da Primeira Rua Leste, pequeno bistrô, em que um fonógrafo mecânico vocifera, encobrindo todas as conversas. Para conseguir cinco minutos de silêncio, é preciso colocar cinco cents."

"Uma das formas de se conhecer um país é saber como se morre nele. Aqui, tudo está previsto. 'You die and we do the rest', dizem os anúncios publicitários. [...] Sim, há um trágico americano. É o que me oprime desde que estou aqui, mas ainda não sei de que é feito. [...] No ônibus, um americano médio levanta-se diante de mim para ceder o lugar a uma velha senhora negra."

"Quinta-feira. Dia passado ditando minha conferência. À noite, um pouco de nervosismo, mas entro logo no assunto e dá certo com o público. Mas enquanto falo passam uma caixinha, cujo produto se destina às crianças francesas. O'Brien anuncia a coisa no final e um espectador levanta-se para propor que cada um faça uma nova contribuição na saída, no mesmo valor que se deu na entrada. Na saída, todos contribuem muito mais e a receita é considerável. Típico da generosidade americana. Sua hospitalidade e sua cordialidade têm o mesmo sabor, imediato e simples. O que há de melhor neles."

"Impressão de que só os negros dão a vida, a paixão e a nostalgia neste país que eles colonizaram à sua maneira."

"À tarde, com os estudantes. Não sentem o verdadeiro problema e, no entanto, sua nostalgia é evidente. Neste país em que se usa tudo para provar que a vida não é trágica, eles têm um sentimento de falta. Esse grande esforço é patético, mas é preciso rejeitar o trágico depois de tê-lo visto, e não antes."

"Alfred Stieglitz, espécie de velho Sócrates americano: 'A vida me parece cada vez mais bela à medida que envelheço: mas viver, cada vez mais difícil. Não espere nada da América. Somos um fim ou um começo? Acho que somos um fim. É um país onde não se conhece o amor.' [...] Tucci: que os relacionamentos humanos são mais fáceis aqui porque não há relacionamentos humanos. Eles ficam na superfície. Por respeito e por preguiça."

"Dois seres se amam. Mas não falam a mesma língua. Um fala duas línguas, mas uma delas de modo imperfeito. Isso basta para que se amem. Mas o que sabia falar as duas línguas morre. E suas últimas palavras são na língua natal, que o outro não consegue entender. Ele espreita, ele espreita..."

"Refazer e recriar a reflexão grega como uma revolta contra o sagrado. Mas não a revolta contra o sagrado do romântico - uma forma do sagrado em si - e sim a revolta como um retorno ao seu lugar do sagrado. A ideia do messianismo como base de todos os fanatismos. O messianismo contra o homem. A reflexão grega não é histórica. Os valores são preexistentes. Contra o existencialismo moderno."

"A prodigiosa paisagem de Quebec. Na extremidade do Cabo Diamond, diante da imensa brecha do Saint-Laurent, ar, luz e águas confundem-se em proporções infinitas. Pela primeira vez neste continente, a impressão real da beleza e da verdadeira grandeza. Parece-me que teria algo a dizer sobre Quebec e sobre esse passado de homens que vieram lutar na solidão, impulsionados por uma força maior que eles. Mas para quê? Agora, há uma quantidade de coisas nas quais estou certo de que teria 'sucesso' em termos artísticos. Mas essa palavra não faz mais sentido para mim. Até agora, fui incapaz de dizer a única coisa que gostaria de dizer, e sem dúvida não a direi nunca."

"O pai de Zaharo. Polonês. Esbofeteia um oficial aos quinze anos. Foge. Chega a Paris num dia de carnaval. Com os poucos tostões que tem, compra confete e revende. Trinta anos depois, tem uma enorme fortuna e uma família. Totalmente analfabeto, o filho faz-lhe leituras ao acaso. Lê para ele a Apologia de Sócrates. 'Você não lerá para mim nenhum outro livro', diz o pai. 'Esse diz tudo'. E depois pede sempre que lhe leiam esse livro. Detesta os juízes e a polícia."

"Terrível sentimento de abandono. Abraçaria, apesar de tudo, todos os seres do mundo, não estaria protegido contra nada."

"Julien Green se pergunta (Diário) se é possível imaginar-se um santo que escreva um romance. Naturalmente que não, porque não há romance sem revolta. Ou então é preciso imaginar um romance que acuse o mundo terrestre e o homem - um romance absolutamente sem amor. Impossível."

"Dois seres jovens e belos começaram um idílio neste navio, e logo uma espécie de círculo mau fechou-se à sua volta. Esses começos de amor! Eu os amo e aprovo do fundo do coração - até mesmo com uma espécie de gratidão pelos que preservam, neste convés, no meio do Atlântico reluzente de sol, a meio caminho de continentes loucos, as verdades da juventude e do amor. Mas por que não chamar pelo nome também essa inveja que sinto no coração e o desejo tumultuado que se apodera de mim no sentido de redescobrir o coração impaciente que eu tinha aos vinte anos? Mas conheço o remédio, vou olhar para o mar durante muito tempo. Tristeza por sentir-me ainda tão vulnerável. Daqui a 25 anos, terei 57. Portanto, 25 anos para fazer a minha obra e encontrar o que procuro. Depois, a velhice e a morte. Sei qual é o mais importante para mim. E encontro, ainda, o meio de ceder às pequenas tentações, de perder tempo em conversas vãs ou passeios estéreis. Dominei duas ou três coisas em mim. Mas como estou longe dessa superioridade de que tanto necessito!"