23 de abril de 2011

Desamparo e entrega - parte 1

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" (Mateus 27.46 e Marcos 15.34)

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!" (Lucas 23.46)

Nunca tive a oportunidade de assistir a um "sermão das sete palavras", que pertence à tradição de celebração da Páscoa em algumas igrejas e consiste em uma meditação sobre as sete frases que um ou mais dos quatro evangelhos declaram ter sido ditas por Cristo enquanto estava na cruz. No entanto, farei nesta postagem um despretensioso comentário a duas delas, as que transcrevi acima. Empreendo essa tarefa inspirado por um muito querido colega de trabalho, que outro dia me trouxe uma questão sobre uma aparente contradição entre elas, já que a primeira pressupõe um distanciamento e abandono do Filho pelo Pai, enquanto a segunda parece indicar o oposto, ou seja, proximidade e confiança. Visto que não conseguimos arrumar tempo para conversar mais detidamente sobre o assunto, e sendo a data adequada para uma postagem neste blog sobre a cruz de Cristo, decidi unir as duas coisas e fazer um post sobre esse tema, já que desde 2007, quando escrevi o texto Agnus Dei, não publico nada referente à Páscoa neste espaço. Além disso, pode ser que a questão pareça interessante a alguns dos meus eventuais leitores.

Devo começar dizendo que não vejo dificuldade no que diz respeito a uma inconsistência dos relatos, como se a presença de uma das frases em Mateus e Marcos e da outra em Lucas devesse nos obrigar a escolher apenas uma delas como autêntica. Sem duvida há, nas quatro narrativas evangélicas das circunstâncias da morte de Cristo, diferenças de detalhes que são de difícil conciliação. Contudo, o caso em questão não é um desses: a harmonização que buscamos entre as duas orações de Cristo é de ordem lógica e teológica, não impondo problemas de ordem histórica ou documentária. Essas diferenças de narrativas, assim como todas as outras que podem ser encontradas nos quatro evangelhos, podem ser explicadas em função dos diferentes públicos, circunstâncias, prioridades, ênfases e estilos pessoais de cada evangelista. Olhemos, pois, as coisas por esse ponto de vista e vejamos o que podemos descobrir.

Antes de tudo, deve-se notar que ambas as curtas orações de Cristo na cruz são citações do Livro dos Salmos. A primeira corresponde às palavras iniciais do salmo 22, enquanto a segunda se encontra no versículo 5 do salmo 31. Uma comparação entre os dois salmos, portanto, pode fornecer o substrato necessário à compreensão da questão. Eles apresentam entre si considerável grau de semelhança: ambos foram escritos por Davi e tratam dos sofrimentos injustamente impostos sobre ele pelos maus, bem como da esperança de livramento da parte de Deus, que, sendo absolutamente justo, não permitirá a queda de seus servos, e tampouco concederá impunidade aos perversos. Contudo, há entre os dois salmos uma diferença de ênfase, e uma simples contagem de versículos basta, se não para demonstrar essa diferença, ao menos para indicá-la: dos 31 versículos do salmo 22, os primeiros 18 (cerca de 60% do total) são dedicados à veemente descrição das agonias do justo oprimido. No salmo 31, ao contrário, apenas cinco dos 24 versículos são dedicados a isso, a saber, os versículos 9 a 13, constituindo cerca de 20% da extensão total do salmo. O salmo 22 enfatiza o sofrimento, embora sem deixar de anunciar a redenção; o salmo 31 inverte a ênfase, reconhecendo, contudo, as duas realidades.

Parece-me que a compreensão disso é relevante ao entendimento do que tinham em mente não só os evangelistas, mas também - o que é, sem dúvida, muito mais importante - o próprio Cristo. Ele toma os dois salmos como referências proféticas a si próprio. No caso do salmo 22, também o fizeram João e o autor da Epístola aos Hebreus. (Comparem-se o versículo 18 com João 19.24, o 15 com João 19.28 e o 22 com Hebreus 2.12.) No caso do salmo 31, não conheço outra referência neotestamentária que o associe explicitamente a Cristo, mas aqui o Senhor claramente se apropria das palavras de Davi, demonstrando confiança na justa consideração que receberia depois da morte, que estava para acontecer. Na segunda metade do versículo citado, Davi disse: "tu me remiste, Senhor, Deus da verdade". Com o sepultamento, chegou ao fim o estado de humilhação de Cristo, ao qual se seguiu o estado de exaltação. O apóstolo Paulo descreveu isso muito bem em Filipenses 2.7-11, onde explicou que, ao se encarnar, Cristo "a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai."

A exaltação de Cristo pelo Pai foi também profetizada nos salmos, em especial no versículo inicial do salmo 110: "Disse o Senhor ao meu Senhor: assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés". Que esse salmo se refere a Cristo é afirmado pelo autor da Epístola aos Hebreus em 5.6, citando o quarto versículo do salmo, e o próprio Cristo pressupõe a mesma coisa em seu argumento contra os escribas, tal como se encontra em Lucas 20.41-44. Porém, a posição de honra que Deus Pai conferiu a Cristo após sua morte, como é sugerido por Davi no salmo 110 e detalhado por Paulo na Epístola aos Filipenses, não se limita à ressurreição em corpo glorificado, mas implica também em poder e adoração. Por isso o autor de Hebreus, já nos versículos iniciais (1.3-4) de sua epístola, não só afirma que Cristo, "depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas", repetindo a declaração de Davi, mas acrescenta: "tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles", confirmando o ensino de Paulo nesse trecho e no restante do capítulo. Também por isso o apóstolo João, no Livro do Apocalipse, refere-se a Cristo como "o Soberano dos reis da terra" (1.5) e conta que o próprio Cristo glorificado declarou: "estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do inferno" (1.18). Aliás, Cristo havia afirmado a mesma coisa ainda antes de sua ascensão aos céus: "Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra" (Mateus 28.18).

Constatar nas Escrituras a doutrina da exaltação de Cristo após sua morte é, pois, importante para que se compreenda o sentido de suas palavras na cruz, e de que modo se cumprem também na vida de Cristo os versículos dos salmos 22 e 31, que falam sobre a a remissão do Messias. Mas isso não é tudo, evidentemente. Pois, como se pode ver acima, Paulo afirmou que Cristo foi exaltado pelo Pai em virtude de sua perfeita obediência aos desígnios deste. Há referências semelhantes em outras partes da Bíblia, especialmente no evangelho de João, que dá especial ênfase ao ministério de Cristo como ato de obediência ao Pai. Um bom exemplo está no que Jesus declarou em João 6.38: "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou". Porém, não devemos pensar que a obediência de Cristo ao Pai se restringe à conduta moral, à prática do bem e coisas semelhantes. Ao contrário, a missão do Filho no mundo incluía coisas muito mais específicas e concretas. Lucas dá especial destaque a isso, registrando declarações de Jesus sobre esse tema em diversos pontos de seu evangelho. Em 17.25, por exemplo, Cristo diz sobre si mesmo: "Mas importa que primeiro ele padeça muitas coisas e seja rejeitado por esta geração". Mais detalhes são dados em 9.22: "É necessário que o Filho do Homem sofra muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas; seja morto e, no terceiro dia, ressuscite"; e, novamente, antes de sua última viagem a Jerusalém: "Eis que subimos para Jerusalém, e vai cumprir-se ali tudo quanto está escrito por intermédio dos profetas, no tocante ao Filho do Homem; pois será ele entregue aos gentios, escarnecido, ultrajado e cuspido; e, depois de o açoitarem, tirar-lhe-ão a vida; mas, ao terceiro dia ressuscitará" (18.31-33). Após a ascensão de Cristo, os apóstolos passaram a pregar a mesma doutrina, e Lucas não deixou de enfatizá-la em sua outra obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. Pedro, em seu famoso discurso por ocasião do Pentecostes, declarou (2.22-24): "Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis; sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos; ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela." E a igreja reunida repetiu a mesma declaração em 4.27-28: "porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram".

Podemos ver, portanto, que o ensino dos evangelhos, bem como de outras partes do Novo Testamento (e, a julgar pelas profecias, de toda a Bíblia) é que Cristo foi enviado ao mundo não apenas para ensinar e dar um bom exemplo, mas também para sofrer, morrer de maneira dolorosa e humilhante, e depois ressuscitar dentre os mortos. Cristo afirmou que isso era parte de sua missão, e é dito também que o Pai predeterminou tudo, inclusive as ações dos homens ímpios da época, judeus e gentios. Resta, portanto, entender por que tudo isso era necessário, ou seja, por que o sofrimento e a morte de Cristo eram parte essencial de sua missão e por que se tornaram parte essencial da pregação do evangelho. Afinal, Cristo é apresentado como moralmente perfeito, sem pecado algum: segundo seus discípulos, ele "não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca" (1 Pedro 2.22), e foi "tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado" (Hebreus 4.15). Isso está em harmonia com o que o próprio Cristo declarou aos judeus, negando ter pecado e desafiando seus inimigos a apresentarem prova em contrário: "Quem de vós me convence de pecado?" (João 8.46). E Deus Pai, cuja ira "se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens" (Romanos 1.18), declarou em alta voz acerca de Jesus: "Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo" (Mateus 3.17). Então com que objetivo esse mesmo Pai preordenou a morte de seu Filho amado e perfeito? Nesta primeira postagem, dediquei mais atenção ao ato de Cristo de entregar seu espírito nas mãos do Pai. Na próxima, aprofundarei as considerações sobre o ato do Pai de abandonar seu Filho à morte, e veremos que a pergunta do meu caro colega conduz diretamente ao coração da mensagem da cruz.

3 comentários:

Edson Camargo disse...

BRAVO!
Brilhante, como sempre.
Abraço fraterno, André,
Edson

Leonardo Bruno Galdino disse...

André,

faço minhas as palavras do Edson: bravo! Exegeticamente falando, gostei do seu apelo aos Salmos e sua análise, ainda que esta tenha sido breve - breve sim, mas suficiente.

Parabéns!

Abraços!

tania cassiano disse...

André,
Muito bom!
Vou ler a parte 2, pois sempre me perguntam sobre a aparente lamentação de Jesus e fico reticente, sem saber de fato o que responder e seu post foi bem oportuno.
Abs.