26 de abril de 2011

Desamparo e entrega - parte 2

Terminei a primeira parte deste texto trazendo à atenção do leitor uma questão que precisa ser respondida: por que as Escrituras, os apóstolos e o próprio Cristo apresentam sua morte e ressurreição como parte essencial de sua missão entre os homens, predeterminada pelo Pai? A pergunta de Cristo na cruz quanto à causa de seu abandono é, dentre outras coisas, a do justo que sofre a injustiça nas mãos dos perversos, e é por isso mesmo que as palavras do salmo 22 se ajustaram tão bem àquela ocasião. Devemos agora prosseguir buscando o que é ensinado na Bíblia sobre o motivo subjacente a uma aparentemente tão grande inconsistência.

O Antigo Testamento, mais uma vez, oferece o substrato necessário à compreensão da vida de Jesus. Este disse aos discípulos, em Lucas 22.37, que sua morte iminente era o cumprimento de outra passagem profética: "Pois vos digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito: 'Ele foi contado com os malfeitores'. Porque o que a mim se refere está sendo cumprido." A passagem citada encontra-se em Isaías 53.12, o versículo final de um trecho que começa em 52.13 e descreve os sofrimentos de um personagem identificado como "o servo" do Senhor. Cristo afirmou, portanto, que essa é mais uma referência profética a ele mesmo. O texto de Isaías afirma também a pureza de Cristo, que "foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca" (53.7) e "nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca" (53.9). O texto descreve ainda, com brilho comparável ao dos salmos já citados, os sofrimentos de Cristo: "seu aspecto estava mui desfigurado, mais que o de outro qualquer" (52.14); "nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido" (53.4); "Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso" (53.3). Além disso, o texto menciona várias vezes, de modo muito explícito, a realidade da morte de Cristo: "como cordeiro foi levado ao matadouro" (53.7); "foi cortado da terra dos viventes" (53.8); "designaram-lhe sepultura com os perversos, mas com o rico esteve na sua morte" (53.9); "derramou a sua alma na morte" (53.12). Mas a passagem não deixa de mencionar a posterior exaltação de Cristo, que já foi exposta no post anterior: "será exaltado e elevado e será mui sublime" (52.13); "causará admiração às nações, e os reis fecharão a boca por causa dele" (52.13); "verá sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do Senhor prosperará nas suas mãos" (53.10); "Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito" (53.11); "Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com os poderosos repartirá ele o despojo" (53.12). Devidamente analisada, essa passagem deixa clara a ressurreição de Cristo e a honra que recebeu do Pai após ter passado por sua morte humilhante, exatamente como está explicitado nas passagens já citadas do Novo Testamento. E o texto vai além, declarando precisamente aquilo que constitui a motivação principal desta postagem. Logo depois de asseverar a perfeita justiça de Cristo, Isaías afirma: "Todavia, ao Senhor agradou moê-lo" (53.10). É muito impressionante a maneira pela qual essa curta passagem profética sintetiza tudo o que foi dito até aqui.

Mas não citei todos esses trechos de Isaías 52 e 53 apenas para mostrar isso. O texto, na verdade, vai além, e revela, mais de uma vez, a motivação subjacente a tudo o que é descrito: "Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si" (53.4); "Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados" (53.5); "o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos" (53.6); "por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido" (53.8); ele deu "a sua alma como oferta pelo pecado" (53.10); ele "justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si" (53.11); ele "levou sobre si os pecados de muitos" (53.12). A clareza e a abundância dessas afirmações são inequívocas: Cristo sofreu a punição por pecados que não eram os dele.

A teologia cristã deu a isso o nome de "expiação vicária", e aponta para ela como o meio pelo qual somos reconciliados com Deus. O próprio Cristo, mais uma vez, declarou que esse era o objetivo de sua missão: "Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Marcos 10.45). Como mostrei no meu velho texto Agnus Dei, a mesma ideia está claramente implicada na simples declaração de João Batista ao se encontrar com Jesus pela primeira vez: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (João 1.28), pois a função do cordeiro na lei cerimonial judaica era precisamente a de ser morto em lugar do pecador, prefigurando assim a então futura obra do Salvador. Paulo se apropriou desse paralelo ao dizer que "Cristo, nosso cordeiro pascal, foi imolado" (1 Coríntios 5.7), e expressou o mesmo conteúdo ao declarar que "nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho" (Romanos 5.10). Também o fez João em sua epístola, ao aplicar a Cristo um termo técnico do ritual judaico, a propiciação: "Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados" (1 João 4.10). Mas quem mais aprofundou as implicações dessa analogia foi o autor da Epístola aos Hebreus, especialmente ao discorrer sobre o ofício sacerdotal de Cristo em contraste com o dos antigos sacerdotes (9.11-15): "Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção. Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os santificam quanto à purificação da carne, muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo! Por isso mesmo, ele é o mediador da nova aliança, a fim de que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia sob a primeira aliança, recebam a promessa da eterna herança aqueles que têm sido chamados."


Não há espaço suficiente para citar todas as passagens bíblicas relevantes, mas são profundas e estupendas as implicações dessa revelação. Paulo nos diz que "há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos" (1 Timóteo 2.5); essa mediação significa que "aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus" (Colossenses 1.19-20). Mas, se é por meio da morte de Cristo que somos reconciliados com Deus, seguem-se duas coisas. A primeira é que é pela fé em Cristo e sua obra na cruz que somos salvos. Isso é asseverado diversas vezes no Novo Testamento, como na corajosa resposta de Pedro e João ao Sinédrio, tal como se encontra em Atos 4.12: "abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos"; ou nas exposições feitas por João em seu evangelho: "a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome" (1.12); "Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. [...] Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus." (3.17-18,36)

A segunda implicação é que, se é pela obra de Cristo que somos reconciliados com Deus, então não é por nossas próprias "obras mortas", como é dito no trecho supracitado de Hebreus. Convém que, ao entrar na presença de Deus, deixemos de lado todos os nossos pretensos méritos e confiemos nos méritos de Cristo, que nos são oferecidos gratuitamente. É o que nos diz Paulo de diversas maneiras, como na famosa sentença de Efésios 2.8,9: "pela graça sois salvos, mediante a fé; e isso não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie". O mesmo tema é aprofundado na Epístola aos Romanos, a mais bela exposição da graça de Deus já escrita. Em Romanos 3.19-26, por exemplo, Paulo explica o objetivo da lei, bem como da obra de Cristo, e diz quem será objeto da misericórdia do Senhor: "Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os que creem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus." Ser justificado significa ser declarado justo no tribunal de Deus, e recebemos esse privilégio ao depositar fé em Cristo. E é por isso que Isaías, pouco depois de profetizar o sofrimento vicário de Cristo, proclama o maravilhoso convite da graça: "Ah! Todos vós, os que tendes sede, vinde às águas; e vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite" (Isaías 55.1).

Estou bem ciente de que essa mensagem não soa bem aos ouvidos modernos. Na verdade, também não soava bem aos ouvidos antigos. A convicção universal da sabedoria humana sempre foi a de que nossos méritos, de alguma forma, são de importância decisiva na determinação da opinião de Deus sobre nós, e nunca fez sentido algum que Deus decidisse punir uma pessoa pelos erros de outra. Mas o evangelho sempre foi loucura aos olhos do mundo, como declara a apóstolo Paulo em 1 Coríntios 1.22-24: "Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem sinais, quanto os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios." A cruz de Cristo escandaliza o mundo desde os primórdios, e é por isso mesmo que a mensagem do evangelho tem eficácia salvadora para aqueles que creem. João viu diante do trono de Deus uma "grande multidão" composta pelos que "lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro" (Apocalipse 7.9,14). Enquanto este mundo existir, seus sábios se queixarão de que não é possível alvejar as próprias roupas lavando-as em sangue. Mas nós, que fomos batizados na morte de Cristo (Romanos 6.3), conhecemos o poder que esse sangue possui, e é por isso que não podemos deixar de pregar o escândalo e a loucura que vêm de Deus: que Cristo, embora não tivesse pecado, foi abandonado pelo Pai na cruz porque estava carregando o peso dos pecados de outros, ou seja, os nossos. Uma doutrina que não causa escândalo não pode salvar o mundo. Não sejamos como os judeus que se obstinaram na descrença, e de quem Paulo disse em Romanos 10.2-4: "eles têm zelo por Deus, porém não com entendimento. Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê." Ponhamos de lado nossa justiça e sujeitemo-nos à que vem de Deus. Nesta época de Páscoa, Deus permita que se apliquem a nós as palavras finais da Epístola aos Hebreus: "Ora, o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a Jesus, nosso Senhor, o grande Pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna aliança, vos aperfeiçoe em todo o bem, para cumprirdes a sua vontade, operando em vós o que é agradável diante dele, por Jesus Cristo, a quem seja a glória para todo o sempre. Amém!"

3 comentários:

Mulher na Polícia disse...

Andrézinho...

É loucura sim... juridicamente falando, inclusive... A gloriosa Constituição Federal por exemplo diz que a pena não pode passar da pessoa do condenado. Digamos que seria uma verdadeira aberração jurídica para o direito brasileiro se eu me propusesse a cumprir pena no teu lugar.

Já para o direito civil (por que estávamos na área do direito público) soa um tanto quanto imoral essa história de ter um "bode expiatório" pra pagar todas as suas dívidas. Então, os cristãos são todos péssimos devedores, porque sempre quem paga a dívida é o Fiador.

Mas você tem razão mesmo, porque Jesus perdoou aquele ladrão que estava sendo crucificado na mesma hora que ele... Agora, não há cristão neste mundo que não fica indignado quando O STF concede um Habeas Corpus para o safado, vagabundo, ladrão responder ao processo criminal em liberdade. Que coisa!

Mas voltando ao direito penal. Quando alguém cita a "Teoria Retributiva da Pena" que num parco resumo significa "bateu, levou"... o pessoal alega que é um sistema bíblico já que "olho por olho e dente por dente" é um preceito retirado da Lei de Moisés, o mesmo que escreveu os dez mandamentos, né? Então a pena de morte também é bíblica, porque se você mata é justo que morra: "vida por vida". Mas não só a pena de morte (exceto nos crimes de guerra) e penas cruéis como a crucificação são loucura para o Direito Penal "civilizado".

Mas uma coisa que eu acho interessante sobre a Bíblia é que todo mundo jura que a entende, não obstante a disparidade das opiniões retiradas dela mesma...

Você me entende?

Um beijo pra você!

André disse...

Olá, Novinha!

Entendo perfeitamente, e espero que você entenda também minha demora em responder. hehe

Você tem razão: cristão algum apoiaria a ideia de o Estado sair por aí seguindo o precedente que Deus estabeleceu no caso de seu Filho. Isso porque o Estado não é o legislador do universo, e sim mero sublegislador, pois também está sujeito à lei de Deus. E Deus não delgou a ninguém mais o poder de fazer recair sobre uma pessoa os pecados de outra. Só o fez nesse caso e, veja só, em prejuízo próprio.

Quanto à pena de morte, sou obrigado a discordar do direito penal "civilizado" e defendê-la, em pelo menos alguns casos de assassinato. Esse direito - aliás, dever - faz parte das atribuições que Deus deu ao Estado, e a ninguém mais. Mas, falando em sentido mais amplo, a lei de talião foi em si mesma uma medida civilizadora, pois o costume dos antigos era justamtente o de retribuir de maneira absurdamente desproporcional. Vemos no Gênesis pessoas matando uma cidade inteira como punição pelos erros de apenas um de seus habitantes, ou um homem matando outro porque este havia pisado no pé daquele.

Quanto a serem os cristãos maus devedores, é verdade, mas apenas meia verdade. Pois, dito dessa forma, fica parecendo que os não cristãos são bons devedores. Na verdade, a boa nova pregada pela igreja ao mundo significa apenas isto: aquela dívida infinita que nenhum de nós podia pagar já está paga, desde que aceitemos o fiador. A questão, portanto, é esta: se vamos aceitar o presente ou recusá-lo como um favor desnecessário (ou mesmo ofensivo) e continuar tentando, em vão, pagá-la nós mesmos.

Sua observação sobre a Bíblia, de que "todo mundo jura que a entende, não obstante a disparidade das opiniões retiradas dela mesma", é deveras pertinente. Mas o fato é que muitos a ignoram o suficiente para retirar suas opiniões de outras fontes e não perceber isso. E há, é claro, pontos difíceis sobre os quais podem exisgir (e existem) divergências entre os que de fato a conhecem. Mas eu não diria que essa parcela do problema é a mais importante. De qualquer modo, eu nunca me recusei a examinar interpretações alternativas, e de fato já mudei de ideia algumas vezes. A quem quiser saber o que a Bíblia de fato diz, penso que a única opção é esta: estudá-la e pedir a iluminação de Deus para ver quem tem razão.

Obrigado pelo comentário. Um beijão!

André Luiz... disse...

Olá André,


Na primeira parte da postagem disseste que "Essas diferenças de narrativas, assim como todas as outras que podem ser encontradas nos quatro evangelhos, podem ser explicadas em função dos diferentes públicos, circunstâncias, prioridades, ênfases e estilos pessoais de cada evangelista".

Já ouviste falar sobre o 'evangelho tetramorfo', por meio do qual os Padres da Igreja defendiam que cada um dos evangelistas falava de Cristo sob um dos aspectos do Verbo encarnado presenciados na visão de Ezequiel e na de São João Teólogo, a saber, o Touro, o Homem, a Águia e o Leão? Talvez ajude, d'alguma forma, a elucidar a questão.

Ou não! rs...



[]s
André