14 de maio de 2012

Prolegômenos a toda encrenca futura - parte 1

Ao discorrer sobre o poder civil e sua relação com a religião no último capítulo das Institutas, Calvino precisou lidar com a seguinte questão: visto que já existiram no mundo uma nação, um Estado e um corpo de leis constituídos pelo próprio Deus (a saber, o Israel do Antigo Testamento), e visto que o Novo Testamento (em especial a Epístola aos Hebreus) ensina o caráter provisório dos pactos anteriores, como saber o que é permanente e o que é transitório na antiga dispensação? Para responder a essa pergunta, Calvino se apossou de uma ideia já existente, segundo a qual a antiga Lei se divide em três partes: lei moral, lei cerimonial e lei civil. Essa distinção se tornou usual no meio teológico reformado, e a visão tradicional tem sido a de que apenas a lei moral continua de pé, de modo que os Estados estavam desobrigados de impor - e os governados, de seguir - os aspectos cerimoniais e civis da Lei do Antigo Testamento. No século XX, porém, alguns teólogos calvinistas passaram a advogar uma ideia a que deram o nome de "teonomia" (ou "teonomismo", que usarei como sinônimo neste texto), segundo a qual apenas a lei cerimonial foi abolida, permanecendo de pé não só a lei moral, mas também a lei civil do antigo Israel. É fácil perceber que, em decorrência disso, os teonomistas possuem uma visão diferente sobre o papel do Estado, as melhores práticas jurídicas e assuntos ligados a esses.

Vários irmãos reformados, tanto entre os favoráveis quanto entre os contrários à teonomia, talvez por perceberem que tenho algum conhecimento sobre política, já me incentivaram a escrever uma avaliação dessa ideia. Sempre me recusei a fazê-lo, e continuo me recusando, com base em um senso apropriado do tamanho de minha ignorância. Tenho razões para crer que boa parte de meus incentivadores superestima meus conhecimentos teológicos, políticos ou ambos. Por isso, convém esclarecer que não li nenhum livro que trate do assunto, exceto por alguns que o fazem de passagem, e sequer li artigos ou postagens que defendessem com razoável solidez alguma posição acerca do tema. Tudo o que sei a respeito provém de conversas informais, discussões virtuais (que apenas testemunhei em silêncio) e fragmentos colhidos em textos cujos temas principais, de algum modo mais ou menos incidental, tocaram nessa questão. É claro que isso não me impede de ter uma opinião preliminar, por assim dizer, mas me impede de dizer o que quer que seja com alguma autoridade.

Além dessa razão, que é de ordem racional, tenho outra, de ordem emocional, para não querer tomar parte em um debate sobre o tema: a constatação, levada a efeito em diversas oportunidades, de que o assunto tem um potencial enorme para gerar animosidades. Isso é bastante compreensível: se divergências políticas e teológicas já causam brigas com facilidade quando mantidas separadas, o resultado de juntar as duas coisas só pode mesmo ser explosivo. Desagrada-me especialmente o fato de que julgamentos pessoais são feitos de modo demasiado temerário por ambos os lados: os poucos teonomistas que conheço parecem estar quase sempre na defensiva, por estarem acostumados à acusação de que são legalistas frios e impiedosos, carrascos e partidários de uma inquisição calvinista. Por outro lado, os que se opõem à teonomia são muito facilmente tachados de secularistas, modernistas e rebeldes contra a Lei de Deus. Não nego que possa haver, de ambos os lados, exemplos que justifiquem essas acusações. Porém, quer falemos do ponto de vista intelectual, quer do espiritual, considero apropriado conceder ao interlocutor o benefício da dúvida, sobretudo quando o diálogo se dá entre irmãos em Cristo. Parece-me claro que isso faz parte do amor que nosso Senhor ordenou que tivéssemos uns pelos outros, e arrependo-me das vezes em que agi de modo diferente, embora nunca o tenha feito com relação a esse tema em particular.

Convém ter em mente todo esse preâmbulo a fim de entender a natureza do que vou dizer a partir daqui. Dada a ignorância confessada acima, minha consciência me impede de escrever sobre o assunto com fins polêmicos, e mais ainda com fins judiciais. Entretanto, a despeito dessa ignorância, não posso nem desejo negar que meus conhecimentos e opiniões gerais sobre teologia, política, filosofia, história, religiões comparadas e outros temas pertinentes me levam a assumir, se não uma posição, ao menos uma disposição preliminar acerca do tema. É sobre as raízes dessa disposição que pretendo discorrer aqui. O que farei a seguir não é, pois, uma discussão sobre o teonomismo, e sim apenas prolegômenos a qualquer discussão em que eu venha a me envolver futuramente sobre esse assunto. Isso é pouco, mas creio que é um passo fundamental, e ainda não vi ninguém fazendo algo parecido. É claro que não estou afirmando que ninguém o fez; não se esqueça o leitor de que sou um ignorante. Estou dizendo apenas que preferi escrever meus próprios prolegômenos antes de sair em busca dos alheios. Acho importante tomar consciência das próprias disposições antes de começar a estudar um assunto qualquer, e costumo fazer esse autoexame com certa frequência. A questão da teonomia não tem nada de especial quanto a esse ponto, exceto pelo fato de que resolvi usá-la para, pela primeira vez, tornar público e escrito o resultado do autoexame. Isso deverá me ser útil nos próximos tempos, quando eu começar a ler efetivamente sobre o assunto - o que não pretendo fazer com muito afinco, pois tenho outras prioridades. Além disso, seja para facilitar o trabalho de irmãos que porventura venham a dialogar comigo sobre o tema, seja para me orientar quanto ao que procuro, creio que é importante ter um ponto de partida bem definido e exposto.

Não quero transmitir uma falsa impressão de neutralidade. Se por teonomia entende-se a ideia de que a lei civil do antigo Israel continua tendo valor normativo hoje, eu não sou um teonomista, e guardo contra ela desconfianças algo severas. Apesar disso, considero legítimas algumas das preocupações e intuições de seus partidários, e nem sempre me parece justo o teor das críticas que se lhe fazem por aí. Portanto, estes prolegômenos não podem deixar de incluir tanto predisposições favoráveis quanto contrárias ao teonomismo. Porém, pelo fato de eu não ser um teonomista, estas últimas deverão predominar naturalmente, e por isso acho melhor começar com o que considero positivo nessa ideia.

Muito antes de ouvir falar em teonomia, eu já estava do lado de seus adeptos em sua rejeição do laicismo. Mas o que digo precisa ser entendido de modo adequado: não é que eu considere reprováveis os Estados laicos que existem; apenas não acredito na existência de tais entidades. Na verdade, falando de modo mais amplo, não creio em neutralidade humana em relação a Deus. Na esfera política, isso significa que o Estado, reconhecendo-o ou não, inevitavelmente proclama suas leis com base em alguma visão sobre Deus, o homem e a natureza. A pretensão moderna de um Estado construído sobre a suspensão do juízo acerca de um desses pontos, ou de todos eles, é apenas uma ficção fundada em uma cegueira peculiar à nossa civilização. O "Estado laico" moderno tem uma posição quanto a Deus, e ela se manifesta de modo bastante concreto em todas as instâncias. Além disso, eu defendo a ideia kuyperiana de que o Estado tem sua própria esfera de soberania, para cuja administração recebe autoridade diretamente de Deus. Daí se segue que a afirmação de que "todo o poder emana do povo", que consta no primeiro artigo de nossa Constituição, é, no fim das contas, anticristã, na medida em que enxerga no próprio homem a fonte última de sua legitimidade. Parece-me que o teonomista percebe adequadamente que um Estado que não busca estabelecer sua lei civil a partir do caráter moral de Deus, revelado em sua lei moral, está necessariamente em rebelião contra Deus, quer adote alguma modalidade de secularismo, quer adote leis oriundas de alguma outra religião.

Até onde sei, nenhum teonomista defende a validade permanente do aspecto cerimonial da antiga Lei. E nem poderia, penso eu, já que até uma leitura superficial do Novo Testamento é suficiente para refutar essa ideia. A despeito disso, no entanto, parece-me que o teonomista intui corretamente o fato de que qualquer divisão que façamos na Lei (por exemplo, entre moral, cerimonial e civil), embora possa ser útil para certos propósitos, incorre no risco de artificialidade em alguns de seus efeitos, quando não em seus princípios. A ênfase na unidade da Lei pode trazer outra categoria de riscos, mas tem também a vantagem de chamar nossa atenção para o fato de que a lei civil dada a Moisés não é arbitrária em um sentido relativista ou historicista, pois se fundamenta no caráter de Deus. Sendo assim, as preocupações da teonomia podem, se bem utilizadas, nos incitar à busca de uma compreensão mais profunda da lei civil de Israel e seus princípios subjacentes, bem como dos problemas resultantes das distorções presentes na lei civil vigente hoje em nossa sociedade.

Ainda que não se concorde com as conclusões do teonomista, as questões levantadas por ele são legítimas e chamam a uma reflexão mais séria e profunda sobre o que é permanente e o que é transitório nas disposições legais do Antigo Testamento, e sobre como podemos distinguir uma coisa da outra. Por exemplo, uma vez que se aceite a tradicional divisão tríplice da Lei, não podemos ignorar que o Novo Testamento é, no mínimo, bem menos explícito quanto à lei civil, ao passo que a cessação da aplicabilidade do sistema cerimonial é atestada ali de modo mais abundante. É importante que as razões disso sejam adequadamente compreendidas, seja para aceitar ou rejeitar a teonomia. Nesse ponto, os críticos não devem ser dogmáticos, no mau sentido do termo. Dados os pressupostos aceitos por ambos os lados, não pode haver nada de imoral em exigir, por exemplo, uma fundamentação exegética da capitulação da lei civil de Israel diante do advento de Cristo.

O elemento comum a todos esses aspectos positivos que acabo de listar é o cultivo potencialmente saudável de uma desconfiança mais profunda contra os efeitos da secularização, tanto no próprio Estado quanto na cosmovisão das pessoas em geral, e dos crentes em particular. Trata-se de um esforço consciente de refletir sobre a realidade política e jurídica à luz das Escrituras, como deve ser qualquer empreendimento levado a efeito por cristãos. Aprovo essa iniciativa e as preocupações que lhe subjazem, e acho que, conquanto a boa intenção possa ser desvirtuada, os teonomistas não deveriam, só por serem teonomistas, ser tratados como fanáticos, extremistas, ameaças à saúde pública ou qualquer coisa do gênero.

São esses os aspectos do teonomismo que me parecem positivos, ao menos de modo potencial, e acerca dos quais tenho a expectativa de que os teonomistas tragam contribuições positivas. No próximo post, darei continuidade a estes prolegômenos esboçando algumas de minhas desconfianças a respeito de seu empreendimento.

8 comentários:

Ricardo Mamedes disse...

André,

Achei as suas considerações sobre teonomia extremamente propositivas e acertadas. Há algum tempo deixei de encetar qualquer discussão sobre o tema com os teonomistas pelo seu potencial explosivo, tal como você. O seu texto reflete exatamente o meu sentimento sobre o tema, mas de uma forma que eu nunca consegui expressar. Parabéns.

Também acho difícil uma neutralidade a respeito de Deus, ainda que o Estado se denomine "laico" como ocorre no Brasil, onde vemos expostos em quase todas as salas das repartições públicas os símbolos da fé cristã, especialmente vinculados aos católicos. E eis os perigos também de um estado teocrático, que venha a privilegiar uma visão específica, ou uma cosmovisão, mesmo que cristã em sua gênese.

Concordo, porém, que ainda que não se aceite fragmentar a Lei em "cerimonial, moral e civil", dificilmente se pode afirmar que aquela lei civil de Israel deva ser imposta à sociedade de hoje, tendo em vista a sua natureza transitória, ou o seu caráter provisório. É nisto que também creio. No entanto, admitamos: é muito difícil defender estas ideias com os teonomistas apaixonados.

Excelente texto!

Ricardo.

Mulher na Polícia disse...

Parece que vai ser interessante...
embora terrorista.

Um problemômeno pra você. E aquela do "olho por olho e dente por dente" seria uma lei moral, lei cerimonial ou lei civil?

Eu também sou ignoranta (para prestigiar a presidenta) mas acho que o Bin Laden estava aplicando este inciso no caso das torres gêmeas.
: )

Beijo!

Mizael Andrade Reis disse...

Olá André.

Texto maravilhoso. Parabéns por sua análise com a qual faço coro, e, que de tão boas e consistentes podem sobrepor aos pontos negativos sobre o tema que virão a seguir. Quem sabe!

Cristo o abençoe.

Mizael

Emerson Campos Pinheiro disse...

Caro André, permita-me uma correção. Você diz que os teonomistas defendem que a lei civil do Antigo Israel continua válida da mesma forma que a lei moral. Na verdade o que os teonomistas defendem é que a lei civil de Israel terminou com o fim dessa nação, mas que ela não foi ab-rogada. O que isso quer dizer é que embora as leis civis de Israel não continuem válidas, os principios morais dessas leis continuam.

Acredito que a melhor maneira de demonstrar o que ensina a posição é deixar falar um dos seus principais defensores. Segue então as palavras de Greg L. Bahnsen:

"Olhe para o contexto literário da própria Confissão e dos Catecismos. De acordo com 20.1, a liberdade dos crentes do Novo Testamento foi alargada mediante uma liberdade da lei judicial?

De forma alguma, mas somente pela liberdade da “lei cerimonial”. Lemos em 19.3 que as leis cerimoniais foram “ab-rogadas”, mas em 19.4 que a leis judiciais simplesmente “terminaram” – devido ao término desse “corpo político” para o qual elas foram escritas.

Isso deixa aberto a questão se os princípios morais subjacentes dessas leis morais ainda são requeridos hoje. E os puritanos acreditavam inequivocadamente que eles eram requeridos, visto que são citados prontamente na exposição do Catecismo Maior sobre os pecados e deveres abrangidos nos Dez Mandamentos. Como 19.4 diz explicitamente: essa “equidade geral” se “exige” hoje.

Olhe para o contexto histórico no qual essas palavras foram escritas pelos teólogos de Westminster.

Como o próprio João Calvino, o reformador suíço Heinrich Bullinger sustentava que “a substância das leis judiciais de Deus não foram anuladas ou abolidas”. Essa era a visão comumente defendida antes e durante a convocação da Assembleia de Westminster.

Thomas Cartwright escreveu sobre a lei judicial que o magistrado deveria “manter a substância e equidade dela (como se fosse a medula)”, embora pudesse “mudar a circunstância delas à medida que os tempos, lugares e costumes dos povos exigisse”.

Thomas Pickering considerava que as bruxas deveriam ser punidas com morte “pela lei de Moisés, cuja equidade é perpétua”. Henry Barrow as via como “a verdadeira exposição e execução fiel da lei moral de Deus”, afirmando que essas “leis não foram feitas apenas para o estado judeu”. Philip Stubbs defendia o código penal de Moisés, dizendo o seguinte: “cuja lei judicial continua em vigor até o fim do mundo”.

Mizael Andrade Reis disse...

Emerson,

Suas palavras são esclarecedoras e me levam a seguinte questão:

Porventura, frente ao que você disse, não erraríamos ao interpretarmos Calvino e seu envolvimento na execução de Serveto agindo com uma atitude digna que convinha a alguém cuja mente fosse teonomista? Você defende a tese segundo a qual Calvino foi um teonomista?

Emerson Campos Pinheiro disse...

Mizael, eu li em uma carta de Calvino (não me lembro qual) que ele era contrário a uma inquisição protestante, mas que considerava o caso de Serveto algo diferente. Ele entendia que Serveto blasfemou contra Deus dizendo que a Trindade era semelhante ao Cerberus (cão do inferno) e que por isso merecia a pena de morte.

Mas note bem. Ser passível de pena de morte não significa que ele tinha que necessariamente ser morto, mas que a pena máxima era a morte. Serveto teve o devido processo legal no qual Calvino foi testemunha de acusação.

Talvez Genebra tenha errado na proporção da pena, isto é, aplicado o máximo castigo e este de uma forma bastante cruel (forma esta que gerou o protesto do próprio Calvino), mas não errou em considerar a blasfêmia contra Deus um crime.

André disse...

Ricardo, obrigado pelos elogios. Eu, na verdade, nunca discuti com nenhum teonomista, de modo que, no que me diz respeito, não tenho do que reclamar. Também não sou favorável a um Estado teocrático, se é que estamos de acordo quanto ao que isso significa. Eu disse apenas que o Estado favorece aquilo em que se baseia.

Novinha, não entendi o "terrorista". Quanto ao "problemômeno", creio que a lei de talião, que nada mais pe que o princípio da proporção, é uma lei moral, com diversas aplicações possíveis no plano da lei civil. Não tenho dúvidas de que Bin Laden pretendia estar aplicando esse princípio; o problema é que ele acabou levando olhos e dentes de gente que não tinha nada a ver com o pato... Mas foi interessante você ter citado Bin Laden. Vou citar o islamismo na continuação do post. Aguarde e verá. Não há nada de errado em ser "ignoranta", desde que você esteja sempre disposta a aprender, como boa "estudanta". :-)

Mizael, obrigado pelo elogio. Quanto à sua esperança, temo que não se concretizará. Mas você pode dar uma ajudinha, se quiser. hehe

Emerson, parece que temos aqui uma confusão terminológica. Quando falamos em "princípios morais", estamos falando da lei moral, e sobre isso não há discussão. Mas tudo o que você citou a seguir trata da "lei judicial", e os próprios exemplos mencionados deixa claro que não se tem em mente a lei moral em si, e sim suas aplicações jurídicas. E, se entramos no terreno jurídico, estamos falando, sim, da lei civil. Mas é claro que se pode (e se deve) discutir o que exatamente significa sustentar a validade dessa lei, e isso está incluído no que vou dizer no próximo post.

Abraços, e obrigado a todos!

Frank Brito disse...

Algumas considerações:

Quando falamos do fim dos aspectos cerimoniais, devemos estar certo que não estamos falando da abolição da essência daquilo que se referiam.

Não podemos entender os ritos e cerimônias da Lei como moralmente indiferentes sob o Antigo Pacto. Um exemplo pra esclarecer o que quero dizer:

"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Quando alguma pessoa pecar, e transgredir contra o SENHOR, e negar ao seu próximo o que lhe deu em guarda, ou o que deixou na sua mão, ou o roubo, ou o que reteve violentamente ao seu próximo, Ou que achou o perdido, e o negar com falso juramento, ou fizer alguma outra coisa de todas em que o homem costuma pecar; Será pois que, como pecou e tornou-se culpado, restituirá o que roubou, ou o que reteve violentamente, ou o depósito que lhe foi dado em guarda, ou o perdido que achou, Ou tudo aquilo sobre que jurou falsamente; e o restituirá no seu todo, e ainda sobre isso acrescentará o quinto; àquele de quem é o dará no dia de sua expiação. E a sua expiação trará ao SENHOR: um carneiro sem defeito do rebanho, conforme à tua estimação, para expiação da culpa trará ao sacerdote". (Levítico 6.1-6)

Aqui aprendemos que se alguém roubou, ele precisa de expiação diante de Deus. Ele precisa ser perdoado para que a justa ira de Deus não caia sobre ele. O pecador precisa de justificação. Além disso, ele tem que restituir e pagar uma indenização em cima pelo roubo.

O perdão/justificação acontecia por meio do sistema de sacrifícios. Os sacrifícios foram abolidos. Mas veja: a susbstância e verdade do que o sacrifício signifiva não pode ser abolido. O homem ainda precisa de expiação. Ele ainda precisa ser perdoado por Deus. Portanto, não podemos ignorar o fundamento moral de todas as cerimônias. A essência e a verdade delas continuam de pé.

Creio que João Calvino resumiu bem a questão:

“Mas agora que a coisa em si é dada para nós, não deve descansar por mais tempo nas sombras. De fato, a Lei não é abolida (Mateus 5.18; Efésios 2,15; Colossenses 1.14, 17); por isso temos de manter agora a substância e a verdade dela. Assim, a sombra é eliminada pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo...” (João Calvino, Comentário de Deuteronômio 5.12-14)

E a Confissão Belga também:

“Cremos que as cerimônias e figuras da Lei terminaram com a vinda de Cristo e que, assim, todas as sombras chegaram ao fim. Por isso, os cristãos não devem mais usá-las. Contudo, para nós, sua verdade e substância permanecem em Cristo Jesus, em quem têm seu cumprimento”. (Confissão Belga, Artigo 25, CRISTO É O CUMPRIMENTO DA LEI)

A Lei de Deus não pode ser anulada ou abolida porque ela reflete a santidade do próprio Deus. Os mandamentos de Deus não são arbitrários, não refletem Seu caráter e por isso "a Lei do SENHOR é perfeita". (Sl 19.7) Deus não pode abolir Sua santidade e por isso não pode abolir Sua Lei. Se a Lei de Deus pudesse ser abolida, Jesus Cristo não precisaria morrer para nos justificar de nossos pecados. Era só Deus "mudar as regras" para que o que fazemos deixasse de ser pecado e assim estaríamos perdoados. "Eu, o SENHOR, não mudo". (Malaquias 3.6) O fim das cerimônias não significam uma abolição, pois nós temos a verdade e essência delas conosco. É por isso que são tratadas como "sombras" pelos autores do NT. Pra enfatizar a continuidade da verdade e essência que não pode ser abolida sem que Deus anule Seu próprio caráter.