Em março deste ano, publiquei um
post intitulado Covardia e decência, no qual analisei, já com alguns meses de atraso, o artigo
em que Richard Dawkins explicou as razões de sua recusa ao debate com o
filósofo e teólogo cristão William Lane Craig. Naquele texto, mencionei que as
desculpas esfarrapadas de Dawkins suscitaram o protesto de alguns não-teístas,
especialmente do filósofo Daniel Came, que também é professor em Oxford e
escreveu contra ele o artigo Richard Dawkins's refusal to debate iscynical and anti-intellectualist
[A recusa de Richard Dawkins a debater é cínica e anti-intelectualista].
(A propósito, afirmei no post que Came é agnóstico, mas, nesta
breve e interessante correspondência com Dawkins, ele próprio se definiu como
ateu.) Na ocasião, prometi: “Pretendo,
aliás, traduzir seu breve texto e publicá-lo neste blog qualquer hora dessas,
se até lá não encontrar uma tradução já feita em algum canto da internet
lusófona”. Pensei nisso em
especial por causa dos meus amigos que não leem em inglês e que poderiam se
interessar pelo assunto. Na semana passada, fiz uma busca para ver se, de março
para cá, alguém se animara a empreender essa tradução. Como não encontrei, aqui
estou para cumprir minha promessa. O texto segue abaixo, mas creio que convém
fazer alguns comentários preliminares.
O debate entre Bertrand Russell e
o padre Frederick Copleston mencionado por Came se encontra transcrito neste endereço.
Considero-o apenas moderadamente interessante, mas sem dúvida Came tem razão
quando o aponta como modelo de civilidade e respeito mútuo. Da mesma forma, não
tenho em alta conta a filosofia de Russell (nem seu caráter, em vista dos fatos
levantados por Paul Johnson no ótimo livro Os
intelectuais, do qual transcrevi trechos no post Uma dúzia de tiranos), mas, quando penso que o ateísmo e o agnosticismo já
tiveram entre seus expoentes pessoas como ele e Anthony Flew, é impossível não
perceber que o neoateísmo de Dawkins e Hitchens representa uma notável decadência
intelectual em relação ao ateísmo clássico. Aliás, lembro que C. S. Lewis já
denunciava (creio que no Surpreendido
pela alegria, mas não tenho certeza) essa decadência em sua época, na
década de 50, ao comparar os autores ateus de então com os de sua juventude, no
tempo em que ele próprio ainda era ateu.
É claro que não devemos idealizar
os ateus de outrora, nem nutrir expectativas demasiado elevadas quanto à
qualidade de suas razões. Digo isso porque eu mesmo já cometi o erro de
superestimar os escritores ateus em geral, mas tenho em minha defesa o fato de
que, nessa época, eu ainda não os havia lido. Contudo, o fato é que Marx,
Nietzsche e Sartre, por mais fracos que fossem, eram gigantes intelectuais em
comparação com o biólogo de Oxford que hoje possui o título de maior apologista
do ateísmo, para constrangimento dos melhores representantes dessa classe. Came
é um desses, e o texto abaixo mostra que ele não só percebe essa decadência em
alguma medida, mas também se ressente do fato de que alguém tão mal preparado
receba tamanha publicidade. Embora eu hoje já não sinta um autêntico respeito
intelectual por nenhuma forma de ateísmo, não posso deixar de ver como boa
notícia o fato de ainda haver por aí alguns ateus mais sérios e capazes que o
biólogo inglês.
Não posso encerrar estas palavras
introdutórias sem mencionar que tenho uma razão a mais para simpatizar com o
protesto de Came: é que, a despeito de nossas diferenças, vejo-me em uma
situação algo semelhante à dele. Assim como ele não considera Dawkins um bom
representante do ateísmo, também não considero Craig portador de uma cosmovisão
profundamente cristã. É claro que isso não me impede de nutrir certa admiração
por Craig enquanto cristão, filósofo, escritor e debatedor, admiração da qual
não se vê análogo nas menções de Came a Dawkins. Uma explanação adequada de
minhas ressalvas às posições de Craig terá de ficar para outra ocasião. Basta
dizer, por ora, que o exemplo das crianças cananeias, conquanto tenha sido
usado por Dawkins apenas como estratégia de fuga, fala de modo bastante eloquente
sobre um dos problemas fundamentais que tenho em mente: não cabe muito bem na
teologia de Craig a ideia bíblica de um Deus soberano, santo e corretamente
irado com a depravação do coração humano, seja ele de que idade for. Parece
que, na visão dele, as crianças são tão inocentes que Deus ficaria em dívida
para com elas se, ao tirar-lhes a vida, não lhes desse algo melhor em troca.
Falei contra essa visão contaminada pelo humanismo por ocasião
da morte do meu bebê, e continuo falando agora. Ou melhor, falarei depois. Já escrevi
demais por hoje, e agora passo a palavra a Daniel Came.
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A recusa de Richard Dawkins ao
debate é cínica e anti-intelectualista
Richard Dawkins não está sozinho em sua recusa de debater com William
Lane Craig. O vice-presidente da Associação Humanista Britânica (BHA), A. C.
Grayling, também se recusou terminantemente a debater com Craig, declarando que
seria melhor debater “a existência de fadas e ninfas aquáticas”.
Dado que não há muita argumentação séria no arsenal dialético dos neoateístas,
talvez devesse chegar sem causar surpresa a notícia de que Dawkins e Grayling
não estão exatamente fazendo fila para entrar em um fórum público com um teísta
intelectualmente rigoroso com Craig a fim de ter suas visões dissecadas e a
inadequação de seus argumentos exposta.
Ironicamente, não há nada substancialmente novo sobre os neoateístas
também. A despeito de seu tom autocongratulatório, Deus, um delírio não contém nenhum argumento original em
favor do ateísmo. Resumindo o que ele chama de “o argumento central de meu
livro”, Dawkins insiste que, mesmo sem
uma explicação inteiramente convincente para o ajuste fino da física, as
explicações “relativamente fracas”
que temos no presente são claramente melhores que “a autodestrutiva [...]
hipótese de um designer inteligente”.
Dawkins sustenta que não estamos justificados em inferir um designer
como a melhor explicação da aparência de design no universo porque então um
novo problema vem à tona: quem projetou o designer? Esse argumento é velho como
as montanhas e patentemente inválido, como qualquer calouro universitário
razoavelmente competente poderia assinalar. Para uma explicação ser
bem-sucedida, não precisamos de uma explicação da explicação. Poder-se ia dizer
igualmente que a evolução por seleção natural não explica nada porque não ajuda
a explicar por que há organismos vivos no mundo, em primeiro lugar; ou que o
big bang não consegue explicar a radiação cósmica de fundo porque o próprio big
bang é inexplicável.
O que há de novo é a postura depreciativa diante dos que creem na
religião e a fúria da polêmica. O neoateísmo está certamente muito longe do
modelo de interlocução civilizada entre o “veteroateísta” Bertrand Russell e o padre
Copleston, que aconteceu e foi transmitido pela Rádio BBC em 1948. Os neoateístas
poderiam aprender muito com as inclinações de Russell, cuja abordagem, mais
poderosa em todos os aspectos, era respeitosa e, ao mesmo tempo, um modelo de
precisão filosófica.
Em seu último discurso retórico indigno, Dawkins afirmou que não
dividiria uma tribuna com Craig porque este é “um apologista do genocício”. Dawkins está se referindo à defesa feita
por Craig da ordem de Deus em Deuteronômio 20.15-17 para aniquilar os cananeus.
Aqui está a passagem ofensiva de Craig:
“[Se] a graça de Deus é estendida
aos que morrem na infância ou como crianças pequenas, a morte das crianças
[cananeias] foi, na verdade, sua salvação. Nós estamos tão comprometidos com
uma perspectiva terrena e naturalista que esquecemos que aqueles que morrem
ficam felizes em trocar esta terra pela incomparável alegria do paraíso.
Portanto, Deus não faz nenhum mal a essas crianças ao tirar sua vidas.”
Não me inclino a defender a política de infanticídio do Deus do Antigo
Testamento. Mas, em matéria de lógica, Craig está provavelmente correto: se um
bem infinito é possibilitado por um mal finito, então pode ser dito de modo
razoável que o mal foi compensado. Porém, tenho dúvidas de que o próprio Craig
seria guiado pela lógica nessa questão e empreenderia um infanticídio. Ou seja,
eu duvido que ele desejaria que fosse adotado como princípio moral que nós
deveríamos massacrar crianças porque assim elas receberiam salvação imediata.
Mas, seja o que for que se faça com a visão de Craig sobre o assunto,
isso é irrelevante para a questão da existência ou inexistência de Deus. É
muito óbvio, então, que Dawkins está oportunisticamente usando essas
observações como uma cortina de fumaça para ocultar as razões reais de sua
recusa ao debate com Craig – a qual tem uma história que antecede em muito os
comentários de Craig sobre os cananeus.
Como um cético, eu tendo a concordar com a conclusão de Dawkins sobre a
falsidade do teísmo, mas as táticas empregadas por ele e pelos outros neoateístas,
segundo me parece, são fundamentalmente ignóbeis e potencialmente nocivas à
vida intelectual pública. Pois há algo cínico, ameaçadoramente paternalista e
anti-intelectualista em seu modus operandi, com sua premissa implícita de que atirar insultos é um modo efetivo
de influenciar as crenças das pessoas sobre religião. A presunção está em supor
que seu amplo público de leitores não-acadêmicos não se importa em, ou é
incapaz de, pensar sobre as coisas; que a paixão prevalece sobre a razão. Ao
contrário, as atitudes das pessoas diante da crença religiosa podem e devem ser
moldadas pela razão, não pela cólera e pela invectiva. Ao ignorar isso, os neoateístas
procuram substituir uma forma de irracionalidade por outra.
Um comentário:
Seu blog é muito bom ( pluralidade de assuntos ) e você escreve muito bem, seus textos fluem, mesmo em assuntos que podem ser extremamente entediantes ou demasiado elevado para compreensão de um leigo no assunto ( no caso eu ). Melhor ainda é que você não se parece com um desses petulantes teólogos liberais ( pelo menos os que já li me parecem ser ).
Parabéns pelo ótimo espaço e por compartilha suas idéias.
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