Em diversas oportunidades, quase sempre conversas informais com amigos, afirmei - talvez não exatamente com essas palavras - que o dilema entre causalidade e casualidade é típico do materialismo. Esse dilema brota de uma tensão entre o racionalismo e o irracionalismo: metafisicamente, ao primeiro estão ligadas ideias como o determinismo, leis ou "causalidade irrestrita" (expressão cunhada por Einstein, se bem me lembro), ao passo que ao segundo se relaciona a ideia de aleatoriedade, caos ou acaso. Na época, eu ainda não havia lido de Cornelius Van Til algo mais que citações isoladas, e portanto não sabia que ele já havia trabalhado com as categorias de "racionalismo" e "irracionalismo", mostrando que são duas faces da apostasia humana não totalmente opostas entre si, apesar do que sugerem os termos. Em outras palavras, essas duas categorias não são completamente dissociáveis, o que significa que na cosmovisão de um incrédulo sempre encontraremos elementos de ambas. Eu nunca havia pensado nesses termos, mas já faz tempo que percebi que o cristão precisa transcender essas categorias a fim de fazer justiça à revelação bíblica. Por conseguinte, percebi também que racionalismo e irracionalismo são farinha do mesmo saco (como afirmei aqui em conversa com Alan Myatt), de modo que o cristão que toma partido entre eles, ou que toma um dos dois como "mal menor" em um sentido absoluto, possui uma cosmovisão contaminada em algum grau pelo materialismo.
Acabo de falar em transcender as categorias de racionalismo e irracionalismo, causalidade e casualidade, determinismo e aleatoriedade, leis e caos. Mas eu nunca tinha feito uma tentativa séria de explicar como e por que devemos fazê-lo, e como é uma cosmovisão que não o faz. Vários meses atrás, porém, fiz uma exposição mais extensa dessa ideia à Norma, minha amada esposa, durante um almoço na praça de alimentação de um shopping center. Não por acaso, na ocasião estávamos lendo juntos a Apologética cristã de Van Til, em uma de nossas quase intermináveis leituras conjuntas. Nesse dia, como frequentemente acontece, a leitura avançou bem pouco, mas rendeu uma longa e proveitosa conversa. Expus à Norma minha visão de que o ateísmo é fundamentalmente uma recusa da personalidade (ou pessoalidade, caso se prefira). Ocorreu que a Norma julgou esse tese suficientemente interessante para tomar notas na folha em branco do final do livro enquanto eu falava. Outro dia achei essas notas enquanto mexia nos nossos livros, e isso me incentivou a elaborar essa percepção em um texto - que é, de longe, o modo pelo qual expresso melhor minhas ideias. Portanto, o que farei na presente série, em três postagens, é uma exposição sobre os motivos pelos quais considero válido e proveitoso encarar o ateísmo como um modo de recusa da personalidade, e que isso tem implicações relevantes para a apologética.
Sobre esta exposição, convém fazer desde já dois esclarecimentos. O primeiro é que não farei aqui nenhuma distinção entre "materialismo" e "ateísmo", que tomo como sinônimos no texto a seguir. E tudo o que direi se aplica também ao agnosticismo, ao ceticismo e a todas as demais vertentes aparentadas que porventura existam. Há contextos em que traçar distinções entre essas variantes é necessário e útil, mas isso é de todo dispensável para os propósitos da presente exposição. E o segundo esclarecimento é que este texto não é muito mais que um rascunho, e ao redigi-lo estou bem menos preocupado com a forma e a sequência das ideias do que costumo estar ao escrever. Escrevi o texto mais para mim mesmo que para os outros, e não estou, no momento, em condições de desdobrá-lo devidamente. Só me resta, portanto, esperar que, apesar disso, o resultado seja claro o suficiente e contar com a benevolência dos leitores.
Vale a pena dizer que a percepção que exponho neste texto foi não só endossada, mas também generalizada por um dos últimos livros que li: Apologetics to the Glory of God [Apologética para a glória de Deus], de John Frame. Nessa obra, o autor desenvolve, dentre outras coisas, uma linha apologética baseada na ideia do Deus bíblico como "personalidade absoluta", o que inclui a percepção de que só a cosmovisão bíblica e outras por ela influenciadas concebem a realidade última como pessoal. Por conseguinte, a recusa da personalidade seria a marca fundamental não somente do materialismo, mas também de cosmovisões de caráter pagão ou oriental. Dessa forma, Frame argumenta que defender a "personalidade absoluta" implica na defesa do cristianismo bíblico. Eu considero essa tese válida e pertinente, mas carente de maiores desenvolvimentos, que não foram feitos no livro, e que eu mesmo não me julgo qualificado para fazer. Por ora, então, limito-me a registrar esse interessantíssimo endosso de Frame, implícito em uma exposição cuja perspicácia é muito superior à minha, e recolho-me à tarefa muito mais modesta de explicar aquilo que conheço bem, a saber, a recusa da personalidade no ateísmo. Retroativamente, o que estou fazendo é apenas desenvolver a tese de Frame aplicando-a a um caso mais restrito. Mas, diante do exposto, creio que é mais justo dizer que, quanto à questão do racionalismo e do irracionalismo, a eventual incoerência da cosmovisão de um cristão é uma concessão, não tanto especificamente ao materialismo, como eu dizia antes, e sim, talvez, ao que há em comum entre todas as formas de apostasia.
Cabe esclarecer também que, quando falo no ateísmo enquanto recusa da personalidade, não estou me referindo apenas às consequências supostamente científicas do dogma materialista. A psicologia do século XX de fato testemunhou a negação da consciência pelo behaviorismo, e goza de certa popularidade a filosofia da mente de Daniel Dennett. Na verdade, todos ao menos já ouvimos falar no costumeiro reducionismo que busca explicar nossos estados mentais e emocionais em termos de reações químicas no sistema nervoso, e depois alardeia essa bobagem patentemente autocontraditória como um grande progresso das luzes da ciência contra o obscurantismo religioso. C. S. Lewis escreveu brilhantemente sobre isso há mais de meio século, num ensaio do qual ofereci um resumo nesta postagem, e não pretendo fazer acréscimos nessa linha. No entanto, tenho uma razão importante para mencionar que o materialismo, se levado às últimas consequências, implica na negação da personalidade dos seres humanos, inclusive do indivíduo ateu que nega pessoalmente sua própria personalidade: é que, como em qualquer reductio ad absurdum, trata-se de um corolário que surge apenas como sintoma de um erro mais profundo e já presente desde o começo. O erro, no caso, consiste justamente no fato de o materialista considerar que a realidade é impessoal em última instância, sendo composta de energia existente no tempo e no espaço, governada por leis impessoais. De um arché impessoal não poderia resultar senão a inexistência real da personalidade. Mas aqui pretendo dar menos atenção às consequências finais e mais ao erro primordial.
O racionalismo e o irracionalismo estão ligados a uma preferência ou conforto em relação a um de dois modos pelos quais os fatos e eventos se nos apresentam: a presença ou a ausência de regularidade. As regularidades trazem como implicação a manifestação de padrões, a existência de nexos causais, cuja compreensão e generalização resultam no estabelecimento de leis que definem e descrevem a ocorrência de tais fatos e eventos. O racionalista não-cristão - e o cristão, na medida em que sua cosmovisão é incoerente - tende a se sentir confortável com a ideia de uma regularidade irrestrita que se sobrepõe a todos os fatos do universo, por mais dfícil que seja, na prática, discernir as leis e encaixar todos os fatos conhecidos em uma teoria unificada. Dessa aplicação irrestrita de um nexo causal inquebrantável decorre o determinismo. Embora eu esteja usando aqui o termo "racionalismo" em sentido consideravelmente amplo, o melhor exemplo dessa atitude que me ocorre vem de um racionalista no sentido estrito, Baruch Spinoza, cuja crença no determinismo decorria da confiança dogmática de que as eventuais ausências de regularidade observadas no mundo são apenas aparentes e decorrem unicamente de nossa ignorância quanto às causas que as produzem.
Já o irracionalista não-cristão - e o cristão, na medida em que sua cosmovisão é incoerente - tende a se sentir confortável com a ideia oposta. Trata-se de um espírito muito diferente do primeiro, sujeito a outros ídolos e tentações. Uma regularidade inescapável lhe parece demasiado sufocante, e seu coração exulta com a ideia da imprevisibilidade, do acaso, da transgressão de todas as regras, de um lugar autêntico para o absolutamente novo e original. Ele prefere o caos ao cosmos, e tende a dispensar as regularidades como irrelevantes, como exageros, ou mesmo como invencionices de uma mente ou cultura racionalista em demasia; ele vê no acaso a realidade fundamental. Decorre daí a simpatia pelo relativismo que é natural em ambientes culturais (ou subculturais) que aderem a tais valores. Creio que Paul Feyerabend, o célebre anarquista epistemológico do século XX, cai bem como exemplo típico do modo de ser irracionalista.
Acredito, como Van Til, que esses dois modos de ser são apenas dois polos de uma mesma estrutura de pensamento: pode-se preferir o racionalismo ou o irracionalismo, e nesse caso um dos dois polos dominará a cosmovisão do incrédulo, ainda que nunca de modo a excluir o outro polo. Pode-se também, embora isso seja um tanto difícil, alcançar um meio-termo, no qual ambos coexistem sem que nenhum prevaleça efetivamente sobre o outro. Com isso, ao menos se faz alguma justiça ao fato de que o mundo apresenta tanto regularidades quanto não-regularidades. Nesse caso, todavia, o melhor que se pode obter, aproveitando uma metáfora que Lewis usou em outro contexto, é algo semelhante a uma mistura entre óleo e água. O materialismo não tem nada melhor a oferecer em termos de explicação última. Pode-se notar isso, por exemplo, nas discussões dos físicos e filósofos materialistas sobre as implicações ontológicas da mecânica quântica, cuja teoria é inerentemente probabilística: há quem, com Spinoza, defenda um determinismo absoluto por trás do indeterminismo aparente, e há quem, com Hume, leve as aparências a sério a ponto de restringir o alcance da causalidade e permitir que ao menos alguns dos eventos do universo físico sejam inerentemente aleatórios em um sentido absoluto. Dentro da cosmovisão materialista, acaso e determinismo são as duas únicas soluções disponíveis, e são ambas impessoais; por isso mesmo, nenhuma resolve o problema.
Tudo muda radicalmente, e de várias formas, quando passamos a encarar o mundo como resultado do desígnio de um Deus pessoal, como o cristianismo nos ensina a fazer. Pois a vida e os desígnios de uma pessoa não se reduzem às duas categorias precedentes: há regularidade sem que haja determinismo, e há também quebra da regularidade sem que haja aleatoriedade. Há no modo de ser pessoal um elemento que escapa a tais reducionismos, e ao qual dou o nome de "liberdade". Esta se opõe tanto ao determinismo da cadeia causal de eventos quanto ao acaso cego dos fatos que surgem de lugar nenhum; não se confunde com o mecanicismo dos materialistas, nem com o fatalismo dos pagãos, e tampouco com o livre-arbítrio dos sinergistas ou a libertinagem ontológica dos existencialistas. Ao ouvir falar nessa liberdade, o racionalista me acusará de apelar ao acaso, e o irracionalista dirá que recorro ao determinismo. Mas estarão ambos errados: a personalidade não é compatível com uma simples aleatoriedade nas escolhas, e tampouco se encaixa como simples elo adicional em uma cadeia de eventos causalmente determinados de antemão. E, na verdade, acrescentar o adjetivo "pessoal" a um ou outro, falando em "determinismo pessoal" ou "acaso pessoal", é apenas um subterfúgio verbal que não ajuda a torná-los menos impessoais.
Acabo de falar em transcender as categorias de racionalismo e irracionalismo, causalidade e casualidade, determinismo e aleatoriedade, leis e caos. Mas eu nunca tinha feito uma tentativa séria de explicar como e por que devemos fazê-lo, e como é uma cosmovisão que não o faz. Vários meses atrás, porém, fiz uma exposição mais extensa dessa ideia à Norma, minha amada esposa, durante um almoço na praça de alimentação de um shopping center. Não por acaso, na ocasião estávamos lendo juntos a Apologética cristã de Van Til, em uma de nossas quase intermináveis leituras conjuntas. Nesse dia, como frequentemente acontece, a leitura avançou bem pouco, mas rendeu uma longa e proveitosa conversa. Expus à Norma minha visão de que o ateísmo é fundamentalmente uma recusa da personalidade (ou pessoalidade, caso se prefira). Ocorreu que a Norma julgou esse tese suficientemente interessante para tomar notas na folha em branco do final do livro enquanto eu falava. Outro dia achei essas notas enquanto mexia nos nossos livros, e isso me incentivou a elaborar essa percepção em um texto - que é, de longe, o modo pelo qual expresso melhor minhas ideias. Portanto, o que farei na presente série, em três postagens, é uma exposição sobre os motivos pelos quais considero válido e proveitoso encarar o ateísmo como um modo de recusa da personalidade, e que isso tem implicações relevantes para a apologética.
Sobre esta exposição, convém fazer desde já dois esclarecimentos. O primeiro é que não farei aqui nenhuma distinção entre "materialismo" e "ateísmo", que tomo como sinônimos no texto a seguir. E tudo o que direi se aplica também ao agnosticismo, ao ceticismo e a todas as demais vertentes aparentadas que porventura existam. Há contextos em que traçar distinções entre essas variantes é necessário e útil, mas isso é de todo dispensável para os propósitos da presente exposição. E o segundo esclarecimento é que este texto não é muito mais que um rascunho, e ao redigi-lo estou bem menos preocupado com a forma e a sequência das ideias do que costumo estar ao escrever. Escrevi o texto mais para mim mesmo que para os outros, e não estou, no momento, em condições de desdobrá-lo devidamente. Só me resta, portanto, esperar que, apesar disso, o resultado seja claro o suficiente e contar com a benevolência dos leitores.
Vale a pena dizer que a percepção que exponho neste texto foi não só endossada, mas também generalizada por um dos últimos livros que li: Apologetics to the Glory of God [Apologética para a glória de Deus], de John Frame. Nessa obra, o autor desenvolve, dentre outras coisas, uma linha apologética baseada na ideia do Deus bíblico como "personalidade absoluta", o que inclui a percepção de que só a cosmovisão bíblica e outras por ela influenciadas concebem a realidade última como pessoal. Por conseguinte, a recusa da personalidade seria a marca fundamental não somente do materialismo, mas também de cosmovisões de caráter pagão ou oriental. Dessa forma, Frame argumenta que defender a "personalidade absoluta" implica na defesa do cristianismo bíblico. Eu considero essa tese válida e pertinente, mas carente de maiores desenvolvimentos, que não foram feitos no livro, e que eu mesmo não me julgo qualificado para fazer. Por ora, então, limito-me a registrar esse interessantíssimo endosso de Frame, implícito em uma exposição cuja perspicácia é muito superior à minha, e recolho-me à tarefa muito mais modesta de explicar aquilo que conheço bem, a saber, a recusa da personalidade no ateísmo. Retroativamente, o que estou fazendo é apenas desenvolver a tese de Frame aplicando-a a um caso mais restrito. Mas, diante do exposto, creio que é mais justo dizer que, quanto à questão do racionalismo e do irracionalismo, a eventual incoerência da cosmovisão de um cristão é uma concessão, não tanto especificamente ao materialismo, como eu dizia antes, e sim, talvez, ao que há em comum entre todas as formas de apostasia.
Cabe esclarecer também que, quando falo no ateísmo enquanto recusa da personalidade, não estou me referindo apenas às consequências supostamente científicas do dogma materialista. A psicologia do século XX de fato testemunhou a negação da consciência pelo behaviorismo, e goza de certa popularidade a filosofia da mente de Daniel Dennett. Na verdade, todos ao menos já ouvimos falar no costumeiro reducionismo que busca explicar nossos estados mentais e emocionais em termos de reações químicas no sistema nervoso, e depois alardeia essa bobagem patentemente autocontraditória como um grande progresso das luzes da ciência contra o obscurantismo religioso. C. S. Lewis escreveu brilhantemente sobre isso há mais de meio século, num ensaio do qual ofereci um resumo nesta postagem, e não pretendo fazer acréscimos nessa linha. No entanto, tenho uma razão importante para mencionar que o materialismo, se levado às últimas consequências, implica na negação da personalidade dos seres humanos, inclusive do indivíduo ateu que nega pessoalmente sua própria personalidade: é que, como em qualquer reductio ad absurdum, trata-se de um corolário que surge apenas como sintoma de um erro mais profundo e já presente desde o começo. O erro, no caso, consiste justamente no fato de o materialista considerar que a realidade é impessoal em última instância, sendo composta de energia existente no tempo e no espaço, governada por leis impessoais. De um arché impessoal não poderia resultar senão a inexistência real da personalidade. Mas aqui pretendo dar menos atenção às consequências finais e mais ao erro primordial.
O racionalismo e o irracionalismo estão ligados a uma preferência ou conforto em relação a um de dois modos pelos quais os fatos e eventos se nos apresentam: a presença ou a ausência de regularidade. As regularidades trazem como implicação a manifestação de padrões, a existência de nexos causais, cuja compreensão e generalização resultam no estabelecimento de leis que definem e descrevem a ocorrência de tais fatos e eventos. O racionalista não-cristão - e o cristão, na medida em que sua cosmovisão é incoerente - tende a se sentir confortável com a ideia de uma regularidade irrestrita que se sobrepõe a todos os fatos do universo, por mais dfícil que seja, na prática, discernir as leis e encaixar todos os fatos conhecidos em uma teoria unificada. Dessa aplicação irrestrita de um nexo causal inquebrantável decorre o determinismo. Embora eu esteja usando aqui o termo "racionalismo" em sentido consideravelmente amplo, o melhor exemplo dessa atitude que me ocorre vem de um racionalista no sentido estrito, Baruch Spinoza, cuja crença no determinismo decorria da confiança dogmática de que as eventuais ausências de regularidade observadas no mundo são apenas aparentes e decorrem unicamente de nossa ignorância quanto às causas que as produzem.
Já o irracionalista não-cristão - e o cristão, na medida em que sua cosmovisão é incoerente - tende a se sentir confortável com a ideia oposta. Trata-se de um espírito muito diferente do primeiro, sujeito a outros ídolos e tentações. Uma regularidade inescapável lhe parece demasiado sufocante, e seu coração exulta com a ideia da imprevisibilidade, do acaso, da transgressão de todas as regras, de um lugar autêntico para o absolutamente novo e original. Ele prefere o caos ao cosmos, e tende a dispensar as regularidades como irrelevantes, como exageros, ou mesmo como invencionices de uma mente ou cultura racionalista em demasia; ele vê no acaso a realidade fundamental. Decorre daí a simpatia pelo relativismo que é natural em ambientes culturais (ou subculturais) que aderem a tais valores. Creio que Paul Feyerabend, o célebre anarquista epistemológico do século XX, cai bem como exemplo típico do modo de ser irracionalista.
Acredito, como Van Til, que esses dois modos de ser são apenas dois polos de uma mesma estrutura de pensamento: pode-se preferir o racionalismo ou o irracionalismo, e nesse caso um dos dois polos dominará a cosmovisão do incrédulo, ainda que nunca de modo a excluir o outro polo. Pode-se também, embora isso seja um tanto difícil, alcançar um meio-termo, no qual ambos coexistem sem que nenhum prevaleça efetivamente sobre o outro. Com isso, ao menos se faz alguma justiça ao fato de que o mundo apresenta tanto regularidades quanto não-regularidades. Nesse caso, todavia, o melhor que se pode obter, aproveitando uma metáfora que Lewis usou em outro contexto, é algo semelhante a uma mistura entre óleo e água. O materialismo não tem nada melhor a oferecer em termos de explicação última. Pode-se notar isso, por exemplo, nas discussões dos físicos e filósofos materialistas sobre as implicações ontológicas da mecânica quântica, cuja teoria é inerentemente probabilística: há quem, com Spinoza, defenda um determinismo absoluto por trás do indeterminismo aparente, e há quem, com Hume, leve as aparências a sério a ponto de restringir o alcance da causalidade e permitir que ao menos alguns dos eventos do universo físico sejam inerentemente aleatórios em um sentido absoluto. Dentro da cosmovisão materialista, acaso e determinismo são as duas únicas soluções disponíveis, e são ambas impessoais; por isso mesmo, nenhuma resolve o problema.
Tudo muda radicalmente, e de várias formas, quando passamos a encarar o mundo como resultado do desígnio de um Deus pessoal, como o cristianismo nos ensina a fazer. Pois a vida e os desígnios de uma pessoa não se reduzem às duas categorias precedentes: há regularidade sem que haja determinismo, e há também quebra da regularidade sem que haja aleatoriedade. Há no modo de ser pessoal um elemento que escapa a tais reducionismos, e ao qual dou o nome de "liberdade". Esta se opõe tanto ao determinismo da cadeia causal de eventos quanto ao acaso cego dos fatos que surgem de lugar nenhum; não se confunde com o mecanicismo dos materialistas, nem com o fatalismo dos pagãos, e tampouco com o livre-arbítrio dos sinergistas ou a libertinagem ontológica dos existencialistas. Ao ouvir falar nessa liberdade, o racionalista me acusará de apelar ao acaso, e o irracionalista dirá que recorro ao determinismo. Mas estarão ambos errados: a personalidade não é compatível com uma simples aleatoriedade nas escolhas, e tampouco se encaixa como simples elo adicional em uma cadeia de eventos causalmente determinados de antemão. E, na verdade, acrescentar o adjetivo "pessoal" a um ou outro, falando em "determinismo pessoal" ou "acaso pessoal", é apenas um subterfúgio verbal que não ajuda a torná-los menos impessoais.
3 comentários:
André,
Excelente texto. Cheguei a ele pela indicação do blog da Norma e gostei muito. Dei uma olhada em textos anteriores e vejo que você se detêm sobre o assunto, então quero fazer uma pergunta: as leis da natureza podem ser interpretadas como a vontade regular de um Deus que não muda? Quero dizer: sabemos que as coisas caem porque sempre e podemos confiar nisso porque sabemos que Deus não vai "corrigir" a lei da gravidade amanhã. Dessa perspectiva, milagres são apenas quebras "de rotina", não de "leis rígidas" intrínsecas à natureza, quero dizer algo como alguém que costuma beber café de manhã mas, vez ou outra, toma chocolate quente.
Espero pela continuação e por mais textos. Abraço.
Caro Luiz,
Obrigado pela visita. Na verdade, na continuação do post devo me aproximar dessa questão que você levanta. Você pelo menos verá uma semelhança. Mas, como não lidarei com ela diretamente, acho melhor responder aqui.
Respondendo muito sucintamente: Sim. hehe Um pouco menos sucintamente, eu sou um físico um tanto rebelado contra o materialismo (ainda que só metodológico) da ciência moderna, o qual pressupõe uma certa ideia metafísica da inviolabilidade do curso da natureza, isto é, de suas leis. Eu resumiria minha opinião atual em três pontos: 1. as leis da natureza não são autossuficientes, isto é, não bastam para "gerenciar" o andamento de tudo o que ocorre, nem mesmo naturalmente; 2. as leis da natureza não são inquebráveis, no sentido de que exceções que convém à vontade de Deus não encontram nenhuma restrição de ordem ontológica ou metafísica (nesse sentido entra o seu exemplo do chocolate no café da manhã); 3. as leis também não são imutáveis, no sentido de que Deus pode revogar e estabelecer leis quando bem entender; acredito que isso foi feito na criação e na queda e será feito novamente na resturação futura de todas as coisas.
Por trás de todos esses três pontos está a ideia de uma, digamos, permeabilidade da natureza à ação de Deus e de causas secundárias por Ele criadas, como os anjos. Nesse sentido, eu aprecio muito a ênfase dos reformadores (sobretudo de Calvino) retomada por John Frame e outros em tempos mais recentes, sobre o caráter pactual da criação, o que aponta diretamente para o caráter pessoal de Deus em sua relação com o homem e a criação sub-humana. Nesse sentido, também aprecio algumas posições dos nominalistas do século XV, que, mais desconfiados que seus predecessores escolásticos em relação à metafísica, atribuíam sua confiança na regulaidade da natureza exclusivamente à confiabilidade de Deus. Se entendermos essa "confiabilidade" no sentido mais pessoal possível, considero essa uma das ideias mais importantes que alguém já teve sobre a natureza.
Bom, esse foi o meu "sim menos sucinto". hehe Mas, se não for suficiente, pode voltar a me procurar. Se quiser uma discussão mais cuidadosa, sugiro que me mande um e-mail (está no meu perfil do Blogger).
Abraços!
Olá, Luiz Renato e André,
Gostaria de contribuir para a resposta com uma pequena palavra acerca da tendência idólatra do ser humano. Ainda que sucinta, a resposta do Andre também é uma explicação muito boa para o fato de que os cientistas modernos erigiram as leis da natureza em um deus. Seu ídolo é a própria "inviolabilidade do curso da natureza".
Que possamos aprofundar o assunto, sempre com o auxílio do Espírito!
Abraços!
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