15 de janeiro de 2007

Declaração de guerra

Cerca de três anos atrás um colega recomendou-me um certo livro que tratava do Evangelho de Tomé e sua relação com Jesus e o Novo Testamento. Pouco tempo depois eu li o livro e constatei que o autor desconhecia certos fatos que eram fundamentais à compreensão historiográfica do assunto. É suficiente dizer aqui que a tese principal do livro baseava-se implicitamente numa única premissa, a qual, infelizmente para o autor, é demonstravelmente falsa. Inconformado, encontrei o e-mail do cavalheiro na internet, enviei-lhe um texto de apenas quatro páginas expondo minhas principais críticas à idéia central do livro e pedi que ele defendesse seu ponto de vista. Logo recebi em resposta uma carta na qual transparecia toda a bondade e boa educação do escritor, que agradeceu minha atenção e elogiou minha redação. Só não fez a única coisa que eu havia pedido. Sobre isso ele limitou-se a dizer que não era seu objetivo dissuadir ninguém de sua fé, pois cria ser essencial que houvesse respeito e tolerância entre pessoas de convicções teológicas distintas, como de fato não acontecia, por exemplo, no Oriente Médio (foi exatamente esse o contra-exemplo utilizado).

Não pretendo discutir aqui o conteúdo do livro, seja pelos acertos ou pelos erros. Também não pretendo especular se o gentil autor teria ou não respostas coerentes às minhas críticas, coisa que provavelmente nunca saberei com certeza. E tampouco vem ao caso o fato de que ele ignorou totalmente, em sua resposta, o conteúdo histórico da minha crítica, que era o que realmente importava, para concentrar-se apenas na questão religiosa, de que eu tratei apenas secundariamente. Se eu realmente tivesse feito críticas especificamente teológicas o caso não deixaria de ser inteiramente válido como um exemplo (dentre muitos que já presenciei) do que pretendo discutir hoje.

Refiro-me à confusão ou associação indevida de dois conceitos inteiramente diferentes: o de tolerância e o de concordância. Existe na cultura de hoje uma vaga intuição de que as diferenças entre as pessoas (em todos os níveis, incluindo-se aí as diferenças de idéias) são a causa de todas as hostilidades, ou pelo menos de muitas delas. Tanto quanto sei, essa é uma bobagem tipicamente moderna, ou melhor, pós-moderna; e, como normalmente acontece com idéias pós-modernas, essa é flagrantemente autocontraditória. Os tolerantes de outras culturas diriam que os homens devem aprender a conviver pacificamente com as diferenças. Os tolerantes pós-modernos ensinam que isso não basta, sendo necessário eliminar inteiramente os desacordos; ou seja, a tolerância às idéias diferentes deve ser convertida gradualmente em acentuada simpatia e daí em completo acordo; em sua ânsia extrema por respeitar as diferenças, o pós-modernista acaba negando que existam diferenças a respeitar.

Como se pode ver, eu discordo desse procedimento; e aqui reside a segunda contradição do mesmo. Posso discordar de quem sustente tal coisa, mantendo-me assim coerente com meus princípios. A pessoa em questão, entretanto, não pode fazer o mesmo. Ao afirmar que é errado discordar das pessoas, ela estará moralmente obrigada a concordar com quem discorde dela nesse ponto. Se o pós-modernista em questão concordar comigo a fim de evitar a intolerância, cairá obviamente em contradição; se discordar, será, de acordo com seus próprios critérios, um intolerante, caindo mais uma vez em contradição.

A opção restante para qualquer um que aprecie a boa lógica, portanto, é continuar acreditando que a veracidade da afirmação X acarreta necessariamente a falsidade da negação de X. Conseqüentemente, o cidadão que acredita em X deve ter o direito de dizer em voz alta que o cidadão que não acredita em X está errado. Deve também ter o direito de dizer isso na cara dele, e os dois têm o direito de gastar na discussão do assunto tanto tempo quanto lhes convenha. Cada um deles tem também o direito de tentar mostrar ao restante da comunidade que seu ponto de vista é correto, e que o do opositor é uma completa idiotice.

Aqui o nosso amigo pós-moderno provavelmente enxergará uma prova evidente de que a antipatia pela opinião alheia leva fatalmente à antipatia pelo portador da opinião em questão. "Encontra-se aqui", dirá ele, "a origem de toda sorte de intolerância, da perseguição por meios políticos e violentos a todos os dissidentes, culminando no estabelecimento de um pensamento único, hegemônico e totalitário." Mas eu não ficarei muito preocupado com o valor de semelhante objeção, a qual parte de alguém que, desde o começo, optou pela paz universal como valor máximo, erigindo-lhe um templo em cujo altar sacrificou sua própria capacidade de raciocínio. Esse último argumento é apenas mais uma demonstração desse fato.

A tirania não nasce da discussão, e sim do abandono da mesma. Enquanto duas pessoas mantiverem suas desavenças no plano argumentativo não haverá o menor problema. O problema surgirá justamente quando uma das duas não estiver mais disposta a discutir, mas ainda assim estiver disposta a fazer prevalecer seu ponto de vista. Só então a razão cederá lugar à política. As razões morais ou situacionais que podem levar alguém a desistir do convencimento racional e passar a outras formas de persuasão são, sem dúvida, muito variáveis. Permanece, porém, o fato de que, uma vez cessada a discussão, a via da opressão (de qualquer tipo) é a única que resta. O "pensador" pós-moderno, porém, nos ensina que é errado discordar e, portanto, é errado discutir. Eis como a sua grande contribuição à causa da tolerância converte-se automaticamente em um incentivo à atitude diametralmente oposta. E eis também a razão pela qual os Estados mais totalitários que o mundo já viu foram todos movidos pelas ideologias menos sustentáveis racionalmente, e que de fato não tinham em alta conta o debate honesto.

Convém esclarecer que o autor que citei no início não é de modo algum partidário de semelhante besteira. A doutrina que ele defende nada tem de pós-moderna; pelo contrário, considero-a até positivista demais. Citei aquele caso apenas como exemplo vivo de um aspecto do espírito do nosso tempo que eu deploro inteiramente. O referido autor provavelmente deixou-se levar sinceramente, embora irrefletidamente, por uma idéia que está no ar, mas que não pode ser abrigada por sua visão de mundo. Ou talvez ele não tivesse argumentos para refutar minhas críticas, e então utilizou a melhor desculpa que pôde arranjar para fugir da discussão. Mas, não tendo qualquer razão para pensar tão mal de uma pessoa que em tudo se mostrou tão boa, prefiro crer na primeira hipótese.

Tenho uma razão particularmente importante para ter dito tudo isso hoje: é que, como todos terão a oportunidade de ver, eu não consigo ficar muito tempo sem descer a lenha em alguém. Isso em termos puramente argumentativos, é claro. Dados os objetivos a que me proponho neste blog, não posso deixar de discordar de muitas pessoas cuja visão da realidade é diferente da minha, nem me sinto no direito de ignorar as objeções que essas pessoas podem ou poderiam me fazer. E quando eu começar a criticar as idéias dessas pessoas (e a lista de criticáveis eminentes é enorme), espero que ninguém me venha com comparações com os terroristas islâmicos ou outras bobagens desse tipo em nome da tolerância.

2 comentários:

Pérsio disse...

Caro amigo André.
Impressionante seu poder de argumentação. Fico espantado cada vez que leio um texto seu.

Mas parando de puxar o seu saco, creio que você seja um "tolerante pós-moderno totalmente fundamentado". Hehehehehehe.

Não importa a crítica à você feita ou ao seu texto, sempre haverá uma resposta superior e que deixará o autor da crítica acuado, dado o seu poder de argumentação. Ou talvez até de persuasão.
Antes que você me "desça a lenha", deixo bem claro que é uma persuasão muito bem fundamentada. Hauhauauhau. :)

Mas já vou avisando: se me criticar dou-lhe um TRIÂNGULO que lhe fará babar.
Acho que sou um TOLERANTE NEGATIVO!
Heheheheheehehe.

Abraços.

Anônimo disse...

André, gostei demais do seu texto, pois me faz refletir sobre um tipo de assunto (para alguns a diferença citada pode ser apenas um detalhe) aparentemente pequeno, mas de grande aplicação prática, pois discussões (no bom sentido) podemos ter a qualquer hora, com qualquer um.

Abraço