Já mencionei em algum post anterior o quanto a biblioteca da UFSCar foi importante na minha vida. Fiquei maravilhado quando a visitei pela primeira vez: eu nunca vira tantos livros juntos. E na medida em que fui andando por lá e explorando cada prateleira, fui encontrando cada vez mais obras que pareciam dignas de atenção. Ao longo dos meus cinco anos de faculdade as novas descobertas se deram muitas e muitas vezes, a ponto de se tornarem rotina. Creio que isso explica ao menos em parte o fato de, nesse período, eu ter lido tantos livros e relido tão poucos. Agora que me formei, embora continue morando em São Carlos, não vou mais com freqüência à universidade, até porque o campus fica um tanto fora de mão. Ainda restam muitas coisas boas pra ler naquela biblioteca, mas esse afastamento provavelmente é um dos fatores que me levaram a perceber a necessidade de corrigir essa minha falha com relação aos livros já lidos que são bons o suficiente para merecer uma releitura. A segunda leitura de um bom livro pode chegar a ser mais instrutiva que a primeira, especialmente se feita alguns anos depois. Eu já sabia disso, é claro, mas preferi prosseguir tentando dar conta do que aparecia pela frente a aprofundar e sedimentar o que já havia passado. Ultimamente, porém, notei que precisava dar uma pausa para reorganizar as coisas antes de prosseguir. Neste ano devo ter gastado mais tempo relendo do que propriamente lendo. Não pretendo permanecer nessa fase indefinidamente, mas vejo que tem sido uma experiência muito boa.
Meu tempo, porém, não tem sido suficiente para que eu releia tudo o que gostaria. E dentre os livros lidos que mais me causam saudades no momento estão, é claro, os de J. R. R. Tolkien, especialmente O Senhor dos Anéis, O Silmarillion e os Contos inacabados, todos os quais eu li há mais de três anos. Tolkien está seguramente entre os escritores que mais me ensinaram. Mas, não dispondo de tempo ou coragem para reler suas obras maiores, eu tento solucionar o impasse lendo de vez em quando as menores, que felizmente não faltam. O filólogo de Oxford publicou relativamente pouco em vida, mas deixou montanhas de textos inéditos, datilografados ou manuscritos, concluídos ou não, que seu filho Christopher compilou, editou e publicou ao longo de muitos anos (não sei se ele continua a fazê-lo). Esse tipo de coisa é bem fácil de se encontrar na internet, onde se vêem, por exemplo, muitas das cartas de Tolkien, bem como muitos dos textos que integram a série em doze volumes HoME (History of Middle-Earth). Num desses volumes está um dos mais belos textos de Tolkien que já li, o Athrabeth. Pretendo fazer hoje alguns breves comentários a respeito desse texto. Ele é um pouco longo, mas nada demais. Há uma tradução no site Valinor e outra no Dúvendor. A primeira está melhor (pelo menos não está repleta de erros de digitação e concordância) e possui algumas notas, de modo que a utilizarei em eventuais citações, mas indico também a segunda por conter logo no início alguns esclarecimentos textuais deixados por Christopher Tolkien.
Embora eu não apresente aqui um resumo do Athrabeth, tentarei escrever de modo que ninguém precise tê-lo lido para entender o que direi acerca dele. Mas eu recomendo entusiasticamente essa leitura a quem ainda não a realizou, seja antes, durante ou depois deste post (é claro que eu não dedicaria um post a um texto que não considero digno de ser conhecido pelos meus leitores). Apenas advirto que o Athrabeth insere-se num ponto preciso da narrativa ficcional criada por Tolkien, de modo que a leitura poderá ser muito melhor aproveitada por quem conhece ao menos os pontos essenciais dessa história. Não, porém, que o texto se torne incompreensível sem isso. Ao contrário, um dos principais motivos que me levam a gostar tanto dele é o fato de que ele trata de questões muito concretas e gerais da experiência humana, e qualquer um que prestar suficiente atenção em si mesmo e no texto poderá perceber isso sem grandes dificuldades. Ainda assim, provavelmente escaparão aos leitores que desconhecem a obra de Tolkien alguns detalhes que, embora secundários do ponto de vista da mensagem transmitida pelo texto, são relevantes de uma perspectiva estritamente literária, conferindo-lhe inclusive parte do seu mérito estético. De qualquer forma, vou tentar apresentar abaixo, em poucas linhas, alguns elementos da história da Terra-média para facilitar a leitura para quem desconhece o conteúdo de O Silmarillion.
A palavra athrabeth, num dos idiomas élficos inventados por Tolkien, o sindarin, significa "diálogo", "conversa" ou "debate". O nome completo do texto é, na verdade, Athrabeth Finrod ah Andreth ("Diálogo de Finrod e Andreth"). O contexto é o da guerra dos elfos Noldor contra Morgoth, de quem Sauron, o vilão de O Senhor dos Anéis, não era então senão um lacaio. Morgoth, cujo nome original era Melkor, foi o rebelde dentre os Valar, os poderosos espíritos que ordenaram o mundo e o governam desde sua morada em Aman, nos confins ocidentais do mundo. De lá ele fugiu, antes da criação do sol e da lua, carregando o mais precioso tesouro dos Noldor, sendo então perseguido por estes, contra a vontade dos Valar, até a Terra-média, onde eles sitiaram a fortaleza do Inimigo por mais de quatro séculos. Finrod Felagund era um dos príncipes mais sábios desse povo. Chegando ao novo continente ele fundou um poderoso reino e o governou até sua heróica morte. Foi ele ainda o primeiro elfo do Oeste a tomar conhecimento da existência dos homens, ao deparar-se com um grupo deles, liderados por Bëor, que veio a ser ancestral de muitos homens importantes na história da Terra-média. Entre seus descendentes, porém, também esteve Andreth, uma mulher sábia, respeitada por homens e elfos (edain e eldar, na língua destes). O texto não traz a data precisa do diálogo travado entre essas duas importantes figuras, mas certamente não foi muito antes do ano 455 da Primeira Era do Sol, data na qual as forças de Morgoth finalmente puseram fim ao cerco dos Noldor (isso significa que o diálogo ocorreu cerca de 6600 anos antes do aniversário de 111 anos do hobbit Bilbo Bolseiro, que é a primeira cena de O Senhor dos Anéis).
O tema central da conversa travada entre os dois sábios é a morte, com a qual as duas raças possuem relações muito distintas. Pois enquanto os homens têm uma vida de poucas décadas, que termina em velhice e decrepitude, com o espírito partindo para algum lugar além do mundo, e do qual nem homens nem elfos têm qualquer notícia, estes últimos não passam pela morte senão por acidente, e não compartilham do destino das demais criaturas vivas de Arda. Os elfos podem morrer em batalha ou definhar de tristeza, mas não sofrem envelhecimento ou doença, e suas habilidades e beleza muito dificilmente encontram rivais entre os mortais. E, mesmo quando morrem, os elfos têm seus espíritos conduzidos aos Salões de Espera, nos confins do mundo (mas ainda dentro dele), onde aguardam a oportunidade de serem reunidos aos seus corpos no futuro. Finrod e Andreth discutem longamente na tentativa de elucidar as causas e as implicações de tão profundas diferenças de constituição. Seriam os homens naturalmente destinados a não mais que uma curta estadia neste mundo, ou essa condição foi imposta por condições alheias à sua natureza intrínseca? Qual seria o papel da maldade de Melkor na progressiva degeneração da matéria de Arda em geral, e dos corpos humanos em particular? Quando o mundo atingir seu ocaso, o que será dos elfos, tão inseparavelmente ligados a ele? Qual seria nisso tudo o propósito de Eru, o Todo-Poderoso? Até que ponto são verdadeiras as tradições dos homens, tão profundamente conhecidas por Andreth? Até que ponto vai o conhecimento dos próprios Valar, cuja parcela transmitida aos elfos nas Terras Imortais é tão cuidadosamente guardada por Finrod? Qual é exatamente a relação entre hröa e fëa, corpo e espírito? Em quê deve se fundamentar a esperança de uma solução futura para todos esses problemas?
Essas e outras questões são tratadas ao longo do diálogo. Como eu disse num post anterior, considero esse o mais nitidamente cristão de todos os textos narrativos de Tolkien que já li (mais até que o Ainulindalë, o conto da criação de Arda). Boa parte dos elementos filosóficos e teológicos do Athrabeth é facilmente reconhecível até por um leitor bastante ignorante em matéria de religião. Já outros, creio eu, só serão notados por leitores com conhecimentos mais aprofundados sobre o assunto. Como não poderia deixar de ocorrer numa conversa entre sábios da Terra-média, essa relação não é explícita, muitas das idéias pertinentes não são plenamente desenvolvidas, e de algumas não há senão alusões implícitas. Mas há outros fatores que tornam a leitura interessante. Um deles é que, de ambas as partes, a morte aparece como problema concreto a ser enfrentado, e não como objeto de pura especulação teórica. Andreth é uma mulher idosa que já presenciou a partida de muitos queridos, e sofre intensamente pelo destino de seu povo, sofrimento esse que é agravado pela humilhante convivência com os elfos, sempre jovens, belos e sadios. Finrod não apenas vê com grande pesar o que lhe parece ser a rápida passagem dos membros da espécie humana, que ele tanto ama, mas também teme pela morte final e inevitável, embora distante, que acomete seu próprio povo, e para além da qual não há esperança conhecida. Além disso, tanto homens quanto elfos enfrentam os rigores da batalha contra um poderoso inimigo, de modo que há sempre o risco da morte trágica e violenta. Finalmente, há uma valiosíssima análise psicológica subjacente ao diálogo. O contraste com a maneira de ser dos elfos, tão semelhante à nossa e ao mesmo tempo tão diversa, acaba por revelar ao leitor interessantes traços da natureza humana. Sobre esses traços eu escreverei noutra ocasião, em conexão com outras reflexões. O que convém ressaltar aqui é a genialidade do artifício literário empregado por Tolkien. Aliando-se a isso a beleza própria da linguagem usada tipicamente nas obras de fantasia desse autor, resulta simplesmente uma peça magistral de literatura, tanto pela forma quanto pelo conteúdo, bem como pelo adequado relacionamento entre ambos.
Um comentário:
Quer dizer então que você está com saudades do SdA... Eu também... eu até achei os livros e estou pensando em ler novamente... só não comecei ainda porque eu quero ler O Silmarilion antes, e seguir a sequencia cronológica dos fatos...
Preciso confessar que bateu uma saudade das nossas longas conversas sobre Arda... De certa forma, éramos como Finrod e Andreth, pois discutíamos sobre todas estas questões, lembra-se? Isso foi há alguns milhares de anos também, rsss.
Um beijo no coração!
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