27 de julho de 2007

O impulso e o salto

Dando continuidade à postagem anterior, publico agora as cartas restantes do diálogo entre Sheldon Vanauken e C. S. Lewis. Talvez algum dia eu dedique um post à análise de alguns pontos interessantes nessa troca de correspondências. Quem quiser ler os textos em inglês pode fazê-lo acessando este blog, bastando procurar o post Encounter with Light e ir subindo até o Encounter with Light, part VI. Essas cartas foram publicadas pelo próprio Vanauken, juntamente com outras cartas de Lewis, no livro A severe mercy ("uma misericórdia severa").

Segunda carta de Vanauken

Meu dilema fundamental é este: não posso crer em Cristo a menos que eu tenha fé, mas não posso ter fé a menos que eu creia em Cristo. Este é "o salto". Se ser um cristão é ter fé (e claramente é), eu posso colocar isso assim: devo aceitar Cristo para me tornar um cristão, mas devo ser um cristão para aceitá-lo. Eu não tenho fé e assim ainda não creio; mas todo mundo parece dizer: "Você deve ter fé para crer." Como eu consigo isso? Ou você me dirá algo diferente? Há uma prova? Pode a Razão carregar alguém através do golfo... sem fé?

Por que Deus espera tanto de nós? Por que ele requer esse esforço para crer? Se Ele deixasse claro que Ele existe - tão claro quanto uma aurora, uma rocha ou o choro de um bebê - não estaríamos alegres em escolhê-Lo e a sua Lei? Por que deveria o correto exercício de nosso livre arbítrio conter esse medo da desonestidade intelectual?

Devo escrever mais sobre o tema "desejar que seja verdadeiro" - embora eu concorde que provavelmente tenho desejos em ambos os lados, e meu desejo não me ajuda a resolver problema algum. Seu argumento de que Hitler e Stalin (e eu) ficariam horrorizados ao descobrir um Mestre de quem nada poderia ser retido é muito forte. Realmente, não há nada no cristianismo que seja tão repugnante para mim quanto a humildade - os joelhos dobrados. Se eu soubesse além da esperança ou do desespero que o cristianismo é verdadeiro, minha luta para sempre a partir de então teria de ser contra o orgulho de "a espinha pode quebrar, mas não se dobrará". Ainda assim, Sir, não aceitaria eu (e até Stalin) a humilhação perante o Mestre para escapar ao horror de cessar de existir, do vazio na morte? Além do mais, o conhecimento de que Jesus é de fato o Senhor não seria meramente uma notícia agradável para alguns de nossos raros desejos. Significaria esmagadoramente: (a) que o Materialismo é Erro, assim como feiúra; (b) que os vários futuros bestiais preditos pelos marxistas, pelos freudianos e pelos sociólogos manipuladores não seriam reais (mesmo se acontecessem); (c) que o crescimento de alguém em direção à sabedoria - a construção da alma - não seria perdido; e (d), acima de tudo, que o bem e a beleza sobreviveriam. E então eu desejo que isso seja verdadeiro e aceitaria qualquer humilhação, penso eu, para que fosse verdadeiro. A parte ruim de desejar que isso seja verdadeiro é que qualquer impulso que eu sinta em direção à crença é considerado suspeito de ter se originado do desejo; a parte boa é que o desejo leva adiante. E eu prosseguirei; devo prosseguir, tanto quanto eu puder.

Segunda carta de Lewis

A contradição "nós devemos ter fé para crer e devemos crer para ter fé" pertence à mesma classe daquelas pelas quais os filósofos eleatas provaram que todo movimento é impossível. E há muitos outros. Você não pode nadar a menos que possa sustentar-se na água e não pode sustentar-se na água a menos que possa nadar. Ou, novamente, em um ato de volição (e.g., acordar pela manhã), o próprio início do ato em si é voluntário ou involuntário? Se for voluntário, então você deve tê-lo desejado, você já o estava desejando, ele não foi realmente o início. Se for involuntário, então a continuação do ato (sendo determinada pelo primeiro movimento) é involuntária também. Mas a despeito disso nós nadamos e saímos da cama.

Eu não penso que haja uma prova demonstrativa (como em Euclides) do cristianismo, nem da existência da matéria, nem da boa vontade e honestidade de meus melhores e mais antigos amigos. Penso que todos os três (exceto talvez o segundo) são muito mais prováveis que as alternativas. O argumento em favor do cristianismo em geral é bem dado por Chesterton; e eu tentei fazer algo em minhas Palestras radiofônicas. Quanto a por quê Deus não o faz demonstravelmente claro: estamos certos de que Ele está sequer interessado no tipo de teísmo que seria um assentimento logicamente compelido a um argumento conclusivo? Estamos nós interessados nisso em assuntos pessoais? Eu demando de meu amigo uma confiança em minha boa fé que seja certa sem prova demonstrativa. Não seria confiança de modo algum se ele esperasse por uma prova rigorosa. Além disso tudo, os próprios contos de fadas encarnam a verdade. Otelo acreditou na inocência de Desdêmona quando foi provada, mas era tarde demais. "O louvor de quem espera até que tudo o recomende é vão." A magnanimidade, a generosidade que confiará em uma probabilidade razoável, é requerida de nós. Mas suponha que alguém acreditou e estava errado no fim das contas. Pois então você teria prestado ao universo um cumprimento que ele não merece. Seu erro seria mesmo mais interessante e importante que a realidade. E, contudo, como poderia ser assim? Como poderia um universo idiota ter produzido criaturas cujos meros sonhos são tão mais fortes, melhores e mais sutis que ele próprio?

Note que a vida após a morte, que ainda parece a você a coisa essencial, foi ela própria uma revelação posterior. Deus treinou os hebreus por séculos para acreditarem nele sem prometer-lhes uma vida no além e, bendito seja Ele, treinou-me da mesma forma por cerca de um ano. É como o príncipe disfarçado do conto de fadas, que conquista o amor da heroína antes que ela saiba que ele é algo mais que um lenhador. O que seria um suborno se viesse antes teve melhor recepção depois. É muito claro, a partir do que você diz, que você tem desejos conscientes de ambos os lados. E agora outro ponto sobre desejos. Um desejo pode levar a falsas convicções, concedido. Mas o que a existência do desejo sugere? Em uma época eu me impressionava muito com o verso de Arnold: "Nem o estarmos famintos prova que teremos pão." Mas seguramente, embora não prove que um homem em particular conseguirá comida, prova que existe tal coisa como a comida! I.e., se fôssemos uma espécie que normalmente não come, se não fôssemos projetados para comer, sentir-nos-íamos famintos? Você diz que o universo materialista é "feio". Eu gostaria de saber como você descobriu isso! Se você é realmente um produto de um universo materialista, como é que você não se sente em casa nele? Os peixes se queixam do mar por estarem molhados? Ou, se o fizessem, esse fato por si mesmo não sugeriria que eles nem sempre foram, ou nem sempre serão, criaturas puramente aquáticas? Note o quanto nós estamos perpetuamente surpresos com o Tempo. ("Como o tempo voa! Imagine, John crescido e casado! Mal posso acreditar!") Em nome dos céus, por quê? A menos, realmente, que haja algo em nós que não é temporal.

Humildade total não está no Tao porque o Tao (como tal) nada diz sobre o Objeto ao qual ela seria a resposta correta: assim como não há lei sobre estradas de ferro nos atos da Rainha Elizabeth. Mas do grau de respeito que o Tao exige pelos ancestrais, pais, anciãos e professores, está muito claro o que o Tao prescreveria diante de um objeto tal como Deus. Mas eu penso que você já está nas malhas da teia! O Espírito Santo está atrás de você. Duvido que você consiga escapar!

Terceira carta de Vanauken

Eu escolho crer no Pai, Filho e Espírito Santo - em Cristo, meu Senhor e meu Deus. O cristianismo tem o som característico, a textura da verdade única. Da verdade essencial. Por ele a vida torna-se cheia em vez de vazia, significativa em vez de insignificante. O cosmos se torna bonito no Centro, em vez de ruidosamente feio sob o amável pathos da primavera. Mas o vazio, a insignificância e a feiúra podem apenas ser vistos, penso eu, quando se vislumbrou a plenitude, o significado e a beleza. É quando o céu e o inferno foram ambos vislumbrados que voltar é impossível. Mas prosseguir parecia impossível também. Um vislumbre não é uma visão. Uma escolha foi necessária, e não há certeza. Pode-se apenas escolher um lado. Assim eu - eu agora escolho meu lado: escolho a beleza; escolho o que amo. Mas escolher crer é crer. Isso é tudo o que posso fazer: escolher. Eu confesso minhas dúvidas e peço ao meu Senhor Cristo para entrar em minha vida. Eu não sei o que Deus é, não faço senão dizer: "Faça-se em mim conforme a Tua vontade." Não afirmo que estou sem dúvida, não faço senão pedir ajuda, tendo escolhido, para superá-la. Não faço senão dizer: "Senhor, eu creio - ajuda-me em minha incredulidade."

Terceira carta de Lewis

Minhas orações foram respondidas. Não, um vislumbre não é uma visão. Mas para um homem em uma estrada montanhosa à noite, um vislumbre dos próximos três pés de estrada pode importar mais que uma visão do horizonte. E talvez deva haver sempre a falta estritamente necessária de certeza demonstrativa para tornar a livre escolha possível. Pois o que poderíamos fazer senão aceitar se a fé fosse como a tábua de multiplicação?

Haverá um contra-ataque sobre você, você sabe, então não fique muito alarmado quando ele vier. O inimigo não verá você desaparecer na companhia de Deus sem um esforço para reclamá-lo. Ocupe-se em aprender a orar e (se você já chegou a uma conclusão sobre a questão denominacional) faça a confirmação.

Bendito seja você, e seja cem mil vezes bem-vindo. Faça uso de mim de qualquer forma que lhe agrade, e oremos um pelo outro sempre.

2 comentários:

Gustavo Nagel disse...

Ah, que coisa mais bonita. Está certo que ando sensível, mas cheguei ao fim da leitura da última carta com lágrimas nos olhos, hehe.

Grande abraço.

Anônimo disse...

Acho engraçado a religião que se diz humilde (cristianismo) afirmar que é a verdadeira!!

Tanta humildade!!
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Aff..

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O único Lewis que troxe algo de novo e importante para o mundo foi mesmo o Gilbert Newton, os outros nada...