Já perdi a conta de quantas histórias ouvi sobre missionários cristãos engajados em missões transculturais, seja em civilizações do Oriente, seja entre povos primitivos a ponto de viverem num estado de completa barbárie, seja em países abertamente hostis ao cristianismo. Essas narrativas fazem parte da minha vida e da minha memória praticamente desde que me tornei capaz de prestar atenção a aulas e preleções (embora ainda hoje eu tenha grandes dificuldades em fazer isso sem me distrair uma dezena de vezes). Livros específicos sobre o tema, porém, eu não li muitos. Mas nenhum dos que li me impressionou tanto quanto O totem da paz (cujo título original, muito mais apropriado, aliás, é The peace child). Posso dizer sem hesitação que esse foi um dos livros de influência mais decisiva sobre os rumos da minha formação pessoal. Creio que isso se deve em parte ao fato de eu tê-lo lido aos 15 anos, quando minha vida intelectual ainda não havia sequer começado, de modo que aprendi ali várias coisas que poderia perfeitamente ter aprendido em outros lugares. Algum dia talvez eu escreva um texto sobre livros que chegam a mim na hora errada; acredito, por exemplo, que teria apreciado Júlio Verne muito melhor se o tivesse lido aos doze anos, e não aos dezoito. Mas voltemos ao assunto. Minha intenção original era dar aqui um breve resumo dessa obra e explicitar algumas lições importantes que aprendi com ela. Porém, logo descobri que isso é serviço demais para um único post. Sendo assim, vou me limitar a contar a história hoje, deixando a análise da mesma para uma oportunidade futura.
O autor do livro é o canadense Don Richardson, e a história narrada é a sua própria. Tendo se convertido ao cristianismo na adolescência, ele decidiu dedicar sua vida à pregação do Evangelho, e com esse intuito se matriculou no Prairie Bible Institute, um centro de treinamento missionário localizado na cidadezinha canadense de Three Hilla. Ali, em 1955, aos vinte anos, ele ouviu falar pela primeira vez nas centenas de povos primitivos da parte ocidental da Nova Guiné Holandesa (atualmente um país independente, a Nova Guiné Papua). Depois de um longo período de preparação, Richardson finalmente chegou em 1962 à Nova Guiné, acompanhado de sua esposa Carol e seu filho Stephen, então com um ano e meio. Foi viver então entre os sawis, um povo que jamais tivera qualquer contato prolongado com o homem branco, e cujas relações mesmo com outros povos nativos dos arredores era bastante dificultosa. E na medida em que ia vivendo ali, tentando aprender a língua e compreender a mentalidade de seus novos vizinhos, num esforço para penetrar no mais íntimo do espírito daquelas pessoas, o missionário foi vendo e percebendo coisas absolutamente surpreendentes.
Para começar, posso dizer que os sawis são canibais e colecionadores de cabeças. Na verdade, nada há de surpreendente nisso; é algo até corriqueiro por aquelas bandas. Talvez até fosse difícil lembrar disso diante da calorosa e honrosa recepção que os forasteiros tiveram, mas logo a verdadeira natureza daquele povo se revelou. Aquela sociedade cultuava a violência e utilizava-a freqüentemente como a única maneira conhecida de resolver suas pendências. A própria maneira pela qual os sawis educavam seus filhos já bastava para incentivar a agressividade, o orgulho e a vingança como modos essenciais de ser, sem os quais, aliás, qualquer indivíduo tornar-se-ia vítima fácil de seus inimigos, ou mesmo de seus amigos. Os sawis, porém, não se limitavam a venerar a brutalidade, a crueldade e o rancor, mas elevavam-nas ao status de uma autêntica arte. As tradições desse povo estavam repletas de histórias de vingança requintadas pela traição. Matar sumariamente o ofensor e comer seus miolos era algo que qualquer um podia fazer, e era por isso mesmo que as pessoas o faziam com freqüência relativamente alta. Mas as grandes vinganças, aquelas dignas de lembrança pelas gerações futuras, eram as precedidas pelo perdão aparente, pela conquista da confiança do adversário. Como diziam os próprios sawis, é como criar e engordar porcos tendo em vista um futuro banquete. O ideal de todo sawi era fazer o mesmo com seus inimigos, exatamente o mesmo, inclusive no que diz respeito ao banquete.
O resultado disso é óbvio, e pode ser perfeitamente compreendido à luz daquilo que dizia o político, historiador e jornalista (dentre outras coisas) francês Alain Peyrefitte: o fator mais decisivo para o progresso de uma comunidade é a mútua confiança entre seus membros. No mundo dos sawis tal confiança era praticamente inexistente, como não poderia deixar de ser, pois ninguém podia estar absolutamente seguro da sinceridade dos demais, e mesmo uma sinceridade autêntica poderia transformar-se em fúria repentina por motivos absolutamente insignificantes, dado o caráter eminentemente agressivo, irritadiço e orgulhoso dos indivíduos sawis. Não podia haver confiança plena, pois nenhuma prova de confiança poderia, em última análise, ser considerada suficiente. Somem-se a isso alguns fatores culturais altamente promissores enquanto fomentadores de discórdia, como a poligamia, e o resultado é simplesmente catastrófico. Parece que os sawis só puderam salvar-se do completo aniquilamento porque suas interações sociais eram reduzidas ao mínimo necessário: viviam dispersos em aldeias pequenas e distantes entre si tanto quanto possível, raramente entrando em contato umas com as outras. Apenas a chegada dos brancos (e dos benefícios que os acompanharam, naturalmente) foi capaz de fazer com que membros de duas aldeias consentissem em morar juntos. (Esqueci de dizer lá em cima, mas os sawis eram seminômades.)
A questão, porém, é: haveria de fato alguma possibilidade de sucesso por parte de Richardson? Não estaria ele agindo como um maluco ao mudar-se para um local tão inóspito, com sua mulher e seu filhinho, esperando que aquelas pessoas abdicassem de seu modo de vida hediondo, embora talvez milenar? Poder-se-ia de fato esperar que um povo inteiro, tendo aprendido, exercitado e valorizado deliberadamente a violência, a crueldade, a falsidade e tudo o que há de mais perverso na natureza humana, passasse de repente a prezar os valores diametralmente opostos da moral cristã? Seriam os sawis capazes de dar importância à notícia de um evento ocorrido há quase dois milênios numa terra que eles jamais sonharam existir? Seriam sequer capazes de ver algum sentido nisso? Um povo tão afeiçoado à traição enxergaria algum valor nos atos de Jesus em contraste com os de Judas Iscariotes? Foram essas as questões que passaram a assaltar Don e Carol na medida em que conviviam com aquela gente e iam presenciando diariamente cenas de violência gratuita. Ao compreender a língua e os costumes dos sawis, seu caráter e, finalmente, suas tradições, o ânimo dos missionários degenerou gradualmente numa compaixão impotente, acompanhada, naturalmente, por uma avassaladora sensação de fracasso.
Essa sensação se agravou quando eles perceberam que, mesmo involuntariamente, sua presença era uma fonte constante de discórdia, já que foi por causa deles que as duas aldeias passaram a compartilhar o mesmo território, tornando assim muito mais freqüentes as lutas e os ferimentos que de outra forma seriam apenas esporádicos. Desolados, os dois canadenses se deram conta de que, além de não obterem progresso algum, estavam agravando a situação pelo simples fato de estarem ali. Os combates, embora constantes, ainda não haviam resultado em mortes; felizmente, pois isso daria início a um ciclo de retaliações mútuas que provavelmente se estenderia por várias gerações. Assim, para evitar que tal coisa acontecesse, Richardson e sua esposa decidiram, cheios de pesar, que o melhor a fazer era reconhecer abertamente o fracasso da sua missão e ir embora dali.
O que se seguiu é apenas mais um exemplo daquelas curiosas situações que a vida nos apresenta, nas quais só conseguimos alguma coisa depois que desistimos de consegui-la. No momento mesmo em que anunciou aos sawis que iriam embora para evitar derramamento de sangue, Richardson descobriu o inesperado: os selvagens na verdade possuíam, sim, um método infalível, embora doloroso, de promover a paz completa e sem desconfiança; e decidiram usar esse método extremo apenas quando perceberam que essa era a única maneira de impedir a partida dos missionários. O método era simples, assim como a lógica subjacente ao mesmo: a única maneira de assegurar um estado de coexistência plenamente pacífica consiste em entregar um filho ao inimigo. Sim, pois o homem que faz isso está ao mesmo tempo demonstrando confiança irrestrita e provando ser ele próprio digno de receber em troca essa mesma atitude. Isso é, como eu disse, muito doloroso, pois os pais sawis, apesar de tudo, amam seus filhos, como qualquer ser humano faria. Mas bastou que um pai de cada aldeia levasse seu filho e o colocasse sob os cuidados de um guerreiro da aldeia adversária, e todas as disputas terminaram.
Foi assim que Don e Carol contemplaram, quase incrédulos, a cessação súbita não apenas de todos os atos de violência entre os membros das duas aldeias, mas também de todos os rancores e mágoas resultantes de contendas anteriores, e mesmo de qualquer indisposição ou cara feia. Homens que no dia anterior estavam prontos a matar um ao outro agora sorriam afavelmente e trocavam presentes, sem falsidade e sem medo. Tudo isso por causa de dois bebês cujas vidas agora eram sagradas, e que os novos anfitriões protegeriam com mais ardor que às de seus próprios filhos. Os sawis dão a cada um deles o nome de tarop tim - um filho da paz. Contra ele não haverá traição; atentar contra a vida de um tarop tim é o pior crime que se pode cometer no universo dos sawis. E, enquanto ele viver, a paz entre as duas partes reconciliadas está garantida. Do ponto de vista da antropologia cultural isso talvez não passe de mera curiosidade ou problema científico. Mas não pareceu assim a Don e Carol Richardson; foi graças a isso que eles puderam permanecer entre aqueles que já haviam aprendido a amar, e foi também graças a esse estranho acontecimento que puderam, mais tarde, falar àqueles nativos sobre Alguém que um dia também propôs uma reconciliação enviando seu Filho para viver no meio de seus inimigos.
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